A MORTE É AZUL

Entramos no veículo e seguimos, inúmeros buracos se espalhavam pela estrada, era muito difícil atravessá-la, mesmo com a tração quatro por quatro do carro. A velocidade, que tornava-se algo fundamental para a nossa segurança, era impossível de se obter. O único farol que funcionava produzia uma iluminação insuficiente nas trevas que derramavam a incerteza a nossa volta.

Leonardo seguia firme na direção do veículo, mesmo estando há mais de vinte e quatro horas acordado e mal alimentado. De fuzil em punho eu mantinha a guarda para que nada se aproximasse. Tínhamos como objetivo chegar a uma base militar onde poderia haver comida, água e combustível para que levássemos ao acampamento base, na qual dezenas de pessoas, sobreviventes, se escondiam daqueles que haviam enlouquecido e que converteram-se em seres que não mais poderiam ser classificados como humanos, pois a linha que nos separa e distingue dos demais seres havia sido rompida desde o início de todo esse inferno.

Conhecidos, amigos, parentes, muitos perderam a lucidez tornando-se agressivos e vorazes, movidos única e exclusivamente pelo desejo de uma força que estava além da compreensão.

Passamos próximo a um condomínio residencial, o prédio estava em chamas, provavelmente o fogo teve início por obra dos inumanos, muitos deles usavam a gasolina retirada dos postos para esse fim. O fato que mais me perturbava nessa situação era não entender como poderíamos permanecer sem receber ajuda.

Será que seria possível um bairro inteiro dentro de uma grande cidade ter sido completamente destruído por obra de uma força desconhecida e ninguém ter percebido? Sinceramente não creio. Mas o fato de estarmos isolados só nos dá a possibilidade da especulação, nada além disso.

Não sei se por sorte ou por obra de algo que nos protegeu, mas conseguimos nos aproximar das dependências do Corpo de Fuzileiros Navais. Como era de se esperar o local estava devastado, completamente destruído. Guaritas abandonadas, carros largados, armas pelo chão, mas não havia sinal algum de corpos. Os malditos haviam carregado todos para alimentarem-se deles. Pelo menos não havia fogo, seria mais fácil procurar pelos mantimentos sem ter que nos preocuparmos com as chamas.

Leonardo permanecera calado durante todo o percurso, não o culpo por agir assim, toda a civilidade que o rapaz tem encontrado nesse dias ele obteve através de mim, e convenhamos, não sou uma das pessoas mais sociáveis do mundo.

Descemos de arma em punho e mente aberta, dispostos a fazer valer a nossa condição de representantes dos donos da terra, mesmo que esta tenha sido tomada pelo inferno. Meu amigo, de fato, sabia exatamente para onde seguir. Caminhamos por alguns minutos até o prédio que servia como laboratório, o fuzil recarregado com a munição que havia no jipe me trazia uma sensação de segurança, tolo pensamento, eu sei, mas perante a situação que se apresentava eu precisava me agarrar a alguma coisa para manter a sanidade, e, pelo menos para isso, continuar a enfrentar a escuridão servia, encontrar um sentido para permanecer existindo.

Escutamos um ruído, um sibilar que nos causava arrepios. Seria necessário atravessar o laboratório para chegar ao armazém e aos tonéis de combustível. Seguimos um de costas para o outro, caminhando de forma rotatória para não sermos pegos de surpresa.

O rapaz gritou e foi ao chão e no processo disparou para o alto, não dava para distinguir o que o atacava, apenas um brilho azulado que rolava pelo chão era perceptível no meio da escuridão. Logo inúmeros pontos luminosos surgiram e comecei a disparar contra eles. Um clarão surgiu na sala, Leonardo havia disparado um sinalizador que trouxe luz às trevas e vi que uma grande serpente havia se enrolado em seu corpo.

Não pude lhe oferecer ajuda, pois minha arma estava ocupada com os lagartos, macacos e sapos, todos movidos por uma ira incomum e com os olhos brilhando como um fogo azul. O rapaz se saíra bem, livrara-se da cobra fazendo uso de uma lâmina e já estava de pé disparando contra os animais que nos cercavam. Um a um foram caindo, o que nos permitiu iniciar a fuga do local que já começava a ser tomado pela escuridão novamente.

Atravessamos a porta dos fundos e nos deparamos com o ápice do terrível mal que se abatera sobre a vida de todos. Centenas de inumanos se agrupavam diante de nós, e ao redor deles vários corpos estavam sendo devorados com desespero. Uma matilha se posicionava entre nós, formava uma enorme letra “v”, o cão que encabeçava o grupo nos olhava, e dizia, sem mover a boca: “ Eis que surge o fim para todo ser vivente que caminha pela terra esquecida que serve de limite entre os mundos há muito separados”.

Olhei para Leonardo, parecia que ele havia percebido a mesma mensagem, mas, assim como eu, quase ou nenhuma importância deu. O garoto engatilhou o fuzil, cuspiu de lado e começou a atirar.

Os cães partiram em nossa direção, não sei o que deu em mim, mas empurrei-o para dentro da sala e tranquei a porta, não que eu imaginasse ser capaz de deter a todos sozinhos, mas...

Antes de perder a consciência, me lembro de ter sido coberto por uma massa de pêlos, dentes, garras, olhos faiscando. Dor, meu sangue jorrando. Mas, de todas as coisas idiotas que fiz na vida, me oferecer ao abate fora a melhor, melhor do que eu poderia imaginar.

Tão logo senti minha carne ser rasgada, notei algo diferente, algo percorrer meu sistema circulatório e me dominar. Nesses poucos instantes pude vislumbrar tudo que estava destinado ao mundo, iniciando-se pelo bairro. Nele havia um elo esquecido entre a luz e a escuridão, que estava sendo reaberto. De forma inexplicável, durante esse processo, o restante do mundo simplesmente ignorava a existência do local onde estávamos, era como se nunca tivéssemos existido. Era perturbador só de imaginar.

A dor me consumia, mas percebi algo que o emissário das terras distantes não contava, eu havia descoberto algo capaz de reverter a situação, seria uma última tentativa, mas, de qualquer forma, eu não possuía outra escolha mesmo.

Busquei forças para trazer o fuzil próximo ao peito, posicionei o cano embaixo do queixo, pedi perdão e apertei o gatilho, espalhando a minha vida por todos os lados.

Como eu estava em um ponto entre a sombra e a luminosidade, percebi que eu possuía a essência dos mundos dentro de mim, e assim, naquela fração de segundos, eu poderia por fim a tudo, utilizando a mim mesmo como veículo para a quebra entre os elos, e desta forma fiz.

Quando despertei não estava mais na terra dos viventes, eu flutuava em um ambiente sem paredes e chão, várias pessoas me acompanhavam, todas sem expressão nos rostos. Senti uma profunda tristeza me dominar, pois sabia que ali eu permaneceria durante muito tempo, até que eu pudesse me redimir pelo ato cometido contra mim mesmo.

Fechei os olhos e a imagem do meu mundo me dominou, e nessa imagem eu pude visualizar com nitidez o que aconteceu após a minha morte. O bairro havia voltado ao normal. Não havia destruição, nem fogo, nem céu isolado, nem ponte caída. Os animais circulavam tranqüilamente, sem alterações, as pessoas andavam normalmente pelas ruas, mas os que haviam morrido assim permaneceram, e esse ponto, esse detalhe tornara-se um mistério indecifrável para as autoridades.

Leonardo estava dentro do quartel com um fuzil em punho e com vários corpos a seus pés, logo viria a se tornar o culpado por tudo, mesmo que os mortos não apresentassem marcas de tiro e estivessem mutilados pelas mordidas.

Mas, senti que havia feito algo útil no meu último ato, não só para o mundo, mas sobretudo para o rapaz, que ganhara mais um tempo sob o sol. A única coisa que me incomodou fora um detalhe, uma leve impressão que tive. Eu poderia jurar ter visto um leve brilho azulado nos olhos do rapaz enquanto este estava sendo levado, mas, certamente não passava de uma sensação causada pela situação.

Este conto é uma continuação de "INFERNO NA TERRA" de Will Willians.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 01/06/2009
Reeditado em 19/11/2009
Código do texto: T1626693
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