INFERNO NA TERRA
Um deserto. Um cenário pós-apocalíptico. Essa era a idéia que passava em minha cabeça enquanto olhava pela vão da janela semi-aberta. Tudo começou tão de repente, em instantes o inferno havia se instalado em nossas vidas. Não sei se o mundo todo está assim, ou se esse fenômeno se instalou apenas nos limites de nosso bairro. Pobre bairro, isolado do resto da cidade por natureza, e agora totalmente inacessível, restrito e irremediavelmente destruído. Olho para o céu e a melhor maneira que encontro para descrever o que vejo é comparar com a sensação que temos quando estamos imersos em uma piscina e direcionamos a atenção para o alto, parece que o céu fica revestido por uma película gelatinosa, embaçada e maleável. E é assim, exatamente assim, que ele se apresenta há algumas semanas. Parece que ninguém consegue nos ver, a ponte que costumava nos ligar ao continente está no chão. Ninguém entra e ninguém pode sair. Não há sinal de televisão, não há rádio nem energia elétrica, a água está escassa, os postos de combustível estão em chamas. Esperança? Preciso ter, caso contrário já teria encurtado a minha própria existência nessa terra devastada. Saio do transe ao vislumbrar ao longe um círculo amarelado se aproximando, o que faz a minha tensão aumentar na mesma proporção em que a distância diminui. Do alto do terceiro andar do edifício faço mira no meu rifle, o tom esverdeado que preenche a minha visão através do visor torna a cena ainda mais perturbadora. A aflição me abandona momentaneamente, pois a figura que aparece diante de mim não representa perigo, mas o alívio durou pouco, pois o que vi logo atrás do carro despertou-me um sinal de urgência.
Inicio uma corrida desabalada derrubando o lampião que me trazia um pouco de iluminação em meio àquelas trevas que se instalaram ao meu redor, não ligo para isso, não tenho tempo, deixo o fogo queimar os restos dos trapos que me acompanhavam nos últimos dias. Retiro a barreira que instalei na porta de forma atabalhoada, isso sempre acontece quando temos pressa. O prédio está abandonado, sou o único habitante naquele imenso esqueleto vazio, não enxergo um palmo diante de mim enquanto tento vencer os degraus da escadaria, sinto um impacto nas costas e vou ao chão. Fico atordoado pela pancada na cabeça ao rolar até o hall de entrada do edifício. Fiquei sem ter a menor noção do que me atacou até notar aquelas duas órbitas azuis brilhantes pairando em minha frente. Mal tive tempo de alcançar o rifle e efetuar um disparo tendo como convicção a incerteza sobre a eficiência da investida. Na primeira tentativa os olhos insanos continuaram a descer as escadas em minha direção, não poderia errar novamente, não só a minha vida dependia disso. Fechei um olho e com o outro tentei acurar a visão fazendo uso do visor para esse fim. Pela primeira vez vislumbrei os contornos da criatura que me ameaçava, e por mais incrível que possa parecer mesmo com o ambiente tomado pelo verde da lente, as órbitas oculares continuavam a faiscar em azul radiante. Mirei bem entre eles e apertei o gatilho sabendo que seria a tentativa derradeira. Ele tombou. Quase que de forma simultânea ouvi o som característico de uma freada brusca e um grunhir estridente. Disparos. Pelo estampido provocados por uma arma de baixo calibre, uma pistola provavelmente. Levantei o mais depressa que pude e ganhei a parte externa do edifício, atravessei o vão que costumava ser guardado por portões e grades de ferro e cheguei às ruas. Minha respiração denunciava o grau de agitação na qual me encontrava. Eu seguia em frente utilizando a lente para visão noturna para me guiar, o luar mal atravessava o revestimento semitransparente que cercava tudo sobre as nossas cabeças. Vi o rapaz em pé sobre o capô do jipe atirando contra as bestas que o cercavam. Logo fui percebido por elas e duas partiram em minha direção, ficando uma mantendo o garoto no carro. Desta vez elas não me pegariam desprevenido. Atirei com gosto, com vontade, descarregava toda a minha raiva e frustração naqueles seres que eu não compreendia a existência. As feras salivavam e exibiam os dentes dispostos a dilacerar a minha carne, de uma forma estranha parecia que conseguia compreender o que pensavam, sim, aquelas malditas bestas pensavam e tinham plena consciência de que eu poderia compreendê-las, e elas queria isso, queriam que eu soubesse que não haveria escapatória, que uma nova ordem acabava de se instalar e de onde eles vieram só sofrimento, dor e morte trouxeram. Gritei enquanto apertava o gatilho incessantemente, elas absorviam o impacto dos projéteis, mas o desânimo não me dominava. Uma no chão, mais chumbo na outra, a distância já era curta, arma vazia, estava próximo, tombou e seu corpo deslizou até próximo aos meus pés. Olhei para o veículo, o garoto havia vencido a batalha contra a fera. Desviei a visão para a criatura diante de mim e para a minha surpresa não havia mais os contornos do estranho animal, tudo o que ali estava não passava de um simples cão de médio porte com o corpo revestido pelos buracos abertos pela minha arma.
Aproximei-me do rapaz que aparentava cansaço, perturbação, mas não medo. De seus olhos fluía um ar de autoconfiança e decisão. Leonardo. Esse era o seu nome. Costumava servir ao Exército brasileiro enquanto havia alguma lógica no mundo. Ouvi seu breve relato, e através de suas palavras fiquei sabendo que havia uma esperança de encontrar mantimentos e combustível em um quartel do Corpo de Fuzileiros Navais que se localizava no final da estrada que beirava a orla. Ele me explicou que sabia da localização exata do reservatório, pois seu pai prestava serviço ali e havia lhe explicado de forma detalhada como chegar ao local. Se tivessemos sorte poderíamos levar recursos para um dos abrigos, um dos poucos vestígios de humanidade, um lugar que se mantivera seguro das pessoas que enlouqueceram e se tornaram uma ameaça para a minoria que agora se escondia. Não havia mais classes sociais, não havia mais distinção, ricos e pobres, negros e brancos, católicos e protestantes, favelados e empresários, traficantes e trabalhadores, doentes e sãos, todos os que restaram partilhavam do mesmo objetivo, sobreviver. Alguns, poucos é verdade, pensavam e agiam por todos, saíam as ruas para encontrar condições de lutar por mais um dia. Por mais difícil que a situação se expusesse para nós, como eu disse, ainda havia esperança, e onde há esperança há vida e por ela continuamos a lutar.
Continua no conto "A MORTE É AZUL" de Flávio de Souza, boa leitura!