OS OSSOS DO REI

Até alguns instantes atrás eu não conseguia entender ao certo o que estava acontecendo, nenhuma lembrança se apresentava, mas, de forma repentina, um tipo de intuição instruiu-me a revirar os bolsos a procura de alguma coisa que eu não sabia exatamente o que era.

Apalpei algo que a princípio o meu tato assemelhou a um grão de milho, no entanto, o peso percebido rapidamente desfez essa impressão. Abri a palma da mão e no mesmo instante em que visualizei aquele dente reluzente, uma série de informações começou a se desenrolar em minha mente como se fosse mágica.

Vi claramente o nosso grupo caminhando por aquela trilha que se abria como uma cicatriz em meio à exuberância da floresta tropical, mosquitos de dimensões impressionantes nos faziam companhia no calor daquele inferno verde.

Seguíamos em direção a uma tribo isolada a fim de levarmos suprimentos para um outro grupo, que fazia um estudo sobre a cultura dos indígenas que ainda mantinham o mesmo modo de vida através dos séculos. Um índio, este sim mais socializado, de uma outra tribo, nos servia de guia. Apesar dos contratempos que esse tipo de incursão geralmente costuma proporcionar, tudo seguia dentro da normalidade, até que nos deparamos com aquilo.

Sinceramente eu não conseguia entender como, até hoje, nunca fora noticiado nada a respeito do que estava diante de nossos olhos. Afinal, estávamos em uma trilha, obviamente aquele caminho já fora utilizado várias vezes. Questionei ao guia, e para minha surpresa o jovem indígena dizia não querer se envolver, pedia que continuássemos a andar.

Mas, como seria possível simplesmente ignorar aquela cena? Não dava. Nesse instante o rapaz ficou desnorteado, começou a proferir palavras que não faziam o menor sentido e correu, sim, correu de forma desesperada e desapareceu, engolido pela imensidão da mata fechada.

Ficamos sem entender o motivo da reação do guia e permanecemos parados por algum tempo diante daquela magnífica edificação. Uma parede, enorme, que mesmo revestida por toda sorte de vegetação e musgo permitia facilmente a visualização de entalhes em alto relevo esculpidos sobre a pedra maciça.

Podíamos diferenciar duas mãos espalmadas, dois olhos e um vórtice cujo centro era enfeitado por um crânio. Poderia ser algum tipo de ilusão de ótica, mas tive a impressão de um brilho reluzente percorrer a superfície dos desenhos como um rastro intermitente.

Estávamos todos boquiabertos, àquela altura já não nos importávamos com o desaparecimento do guia, da nossa missão, ou de estarmos no meio da mata sem saber ao certo como voltar. Naquele momento, só nos preocupávamos em admirar aquele painel que nos hipnotizava.

Como um acordo inconsciente, nos dirigimos até a parede, alisávamos a superfície rochosa quase como por devoção e juro que era possível perceber um calor percorrer o meu corpo toda vez que o brilho passava perto de mim. Entramos em uma espécie de transe e quando abrimos os olhos estávamos do outro lado da parede.

Era uma câmara ampla onde o calor insuportável da floresta não se fazia presente, uma luminosidade tênue e improvável se espalhava por todo o ambiente, assim como um som irritante, parecido com o de inúmeras abelhas zumbindo ao mesmo tempo. O ar era pesado e nos causava uma sensação de desconforto, caminhamos por alguns minutos, o local era enfeitado por inúmeros blocos de pedra nos quais inscrições indecifráveis estavam incrustadas.

Conforme percorríamos os longos corredores, mais angustiados ficávamos pela sensação claustrofóbica proporcionada pela perspectiva fechada das paredes lisas que nos cercavam. Até então, excetuando-se o som dos zumbidos, o silêncio era total, e só fora interrompido quando um dos colegas do grupo comentou saber onde nos encontrávamos.

Nesse momento, todos nós direcionamos a atenção para ele, e de acordo com a sua opinião, o local seria o templo de um rei que comandou essas terras antes das grandes navegações. Esse rei era conhecido pelo apego excessivo a tudo que lhe pertencia, a ponto de fazer uma espécie de pacto com as forças malignas que envolvem tudo que é vivo, para que a sua riqueza ficasse inacessível durante a sua vida. Mas, como sempre há margem para uma dupla interpretação, dizem que seu tesouro ficou, de fato, protegido durante a sua existência, só que esta, não durara mais do que alguns minutos após o pacto ser selado. Porque o seu ouro mais puro simplesmente tomou o lugar de seus ossos, causando-lhe uma morte dolorosa e sofrida, perturbadora para quem a presenciou.

Nenhum dos seus súditos jamais ousou mexer no seu tesouro, e este, de maneira inexplicável, permanecera intocável mesmo diante do domínio português e espanhol.

De fato pareceria uma narrativa demasiadamente fantasiosa, pareceria, se não estivéssemos envolvidos até o pescoço em uma situação que por si só seria inexplicável. Novamente, quase como por telepatia, um pensamento nos invadiu, sim, pude ter certeza que todos nós pensávamos a mesmíssima coisa. Se estamos aqui, poderíamos reivindicar o tesouro!

Corremos de forma desabalada em direção ao clarão que se formava no final do longo corredor, o ruído aumentava cada vez mais.

Quando cheguei na origem da luz e do som não pude crer no que meus olhos me mostravam. Um mar de ouro, pedras multicoloridas, artefatos, armas, o próprio chão parecia revestido pelo metal precioso. Então, tudo aconteceu. O zumbido gradativamente cedeu lugar a gritos histéricos como se milhares de pessoas estivessem envolvidos em algo que transmitia o mais profundo desespero.

Logo, nossas vozes faziam coro aos gritos enlouquecidos e começamos a nos atacar, gargalhadas ecoavam pela sala dourada como se todos participassem de uma peça teatral onde comédia e tragédia se alternavam como tema principal.

O escarlate de nosso sangue ficava mais vivo enquanto escorria pelas placas de ouro, ou espirrava nas paredes cravejadas de pedras preciosas. Os mais fracos começaram a tombar sobrepujados pela ira insana dos mais fortes ( ou seriam dos mais enfeitiçados pelo poder da riqueza? ), colegas, amigos, companheiros de inúmeras expedições estavam ali, arrancando a pele, ferindo a carne uns dos outros, movidos por uma força inexplicável.

Eu empunhava uma pequena espada, cujo valor precisaria de mais duas vidas para poder acumular, e com ela matava aqueles que tentavam se apoderar daquilo que era meu. Logo, apenas eu e um outro homem restávamos de pé. Seus olhos estavam injetados pelo vermelho da ira, sua boca espumava com um cão enraivecido, acredito que minha fisionomia não estava tão diferente daquilo. Em minha cabeça só passava a idéia de arrancar a sua cabeça e assim poder levar o tesouro que me era de direito.

O rapaz atirou-me uma pepita com tamanha violência que o impacto me fez ir ao chão. O sangue vertia em minha testa, enturvando-me a visão, então, o rapaz saltou sobre mim, mas fui mais rápido e pude enterrar a lâmina dourada em seu coração. Seus olhos, bem próximos dos meus, pareciam perguntar o porquê. Eu não sabia a resposta, e pouco me importava.

Com os corpos dos meus companheiros espalhados ao redor, fiquei de pé, e não sabia por onde começar. Fui acometido por uma avalanche de ansiedade, eu gritava, gargalhava, corria de um lado para o outro, os zumbidos haviam voltado. Então, eu a vi, uma arca tão dourada quanto um sol de verão, segui apressado na direção de onde estava.

Sobre a tampa estava escrito algo em um alfabeto desconhecido por mim, mas que de uma maneira inexplicável fazia sentido, e eu conseguia compreender o que aquelas palavras queriam me transmitir: Olhe; sinta; mas não carregue.

Abri a tampa e visualizei a coisa mais incrível que jamais vi na vida. Ossos. Humanos. Reluzentes. Era o ouro mais intenso que poderia existir, toquei o crânio, suave, morno, inacreditavelmente puro e...lindo.

Agarrei-o com ambas as mãos e apertei forte buscando sentir o calor que dali emanava, mas, a sensação boa fora apenas no início, logo uma dor indescritível percorreu meu corpo da cabeça aos pés, a dor fora tão intensa que desmaiei. Eu podia sentir como se estivesse em uma espécie de transe, sonho, delírio, não sei, sentia meu corpo flutuar ou talvez ser carregado, de fato era impossível precisar.

Quando acordei para a realidade já estava no monomotor sendo atendido por esse médico que está diante de mim. Ele parece tentar falar alguma coisa comigo, mas tenho olhos apenas para esse dente dourado. Como ele é belo!

A atitude violenta do médico denunciou que essa opinião não era de exclusividade minha, mas ele não iria levar o que me pertence, não sem luta. Infelizmente para mim, as forças estavam favoráveis a ele, um golpe violento na cabeça me tirou qualquer possibilidade de reação.

Percebi a felicidade se apoderar do homem que cuidava de mim. Aquela dor, aquela maldita dor retornava com intensidade, me consumindo de dentro para fora. O que é aquilo? O piloto está atacando o médico?!? Não! Que idiota, ela vai matar a todos! Não! A dor é insuportável! Está rasgando a minha pele! Meus ossos! Estão visíveis, não! Eu não agüento essa dor! Os ossos, eles estão brilhando em dourado?!? O avião está em queda livre! Eles nada fazem?!? Dor! Que dor! Por que eles me olham assim?

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 22/05/2009
Reeditado em 18/11/2009
Código do texto: T1608713
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