O Milharal

Jeremias

Tinha mais ou menos quarenta anos e perdera tudo para o banco.Com as poucas coisas que lhe restavam, mudou-se para o campo e se tornou um tipo de pequeno fazendeiro. Com alguma vontade de prosseguir e viver como fosse possível, conseguiu arrendar um trecho de terra árida à margem de uma estrada rural. Alugara um trator vermelho caindo aos pedaços e sozinho tratou de cultivar aquele lugar desconhecido.

Ele não sabia, mas outros já haviam tentado fazer aquele solo estranho produzir e ninguém havia conseguido. Os fazendeiros locais chamavam-no de Couro do Diabo e diziam que nada seria capaz de vicejar nele.

No entanto, Jeremias fora persistente. Diariamente podia ser visto rodando com o trator, para lá e para cá. Parecia tão decidido que alguns chegaram a achar que desta vez alguma coisa iria brotar daquele chão. E eles tinham certa razão.

Na época propícia, Jeremias semeou o milho. Fez covas rasas e despejou sementes de boa qualidade dentro delas. Mas, talvez, as sementes não fossem de tão boa qualidade assim, visto que não germinaram no tempo esperado. Nem uma sequer.

Jeremias ficou abatido, já contava com o ferro-velho vermelho, pois não tinha mais como pagar o aluguel do implemento. E passou a fuçar a terra com uma enxada emprestada, solitário e cabisbaixo, debaixo do sol escaldante, engolindo a poeira que vinha dos pneus dos automóveis que passavam por perto, na estrada.

Fosse do trabalho árduo ou não, o fato foi que ele estava definhando pouco a pouco. E começou a cheirar muito mal.

O cheiro que o impregnava lembrava coisa em decomposição. Um fedor de podre. E ele imaginava muito bem como adquirira tal cheiro repugnante. Só podia ter sido da terra.

No início, não quis acreditar, mas aos poucos se tornou óbvio. E perturbador. O vento lhe soprava no rosto aquele miasma, fazendo arrepiar os cabelos do corpo inteiro. Quando chovia, piorava. Jeremias via vapor infecto subindo, em espirais invisíveis, do chão encharcado. Ele sentia cada vez mais medo ao imaginar o que poderia haver ali embaixo.

Adormecia à noite na casinha velha no meio daquele terreno vazio e despertava muitas vezes durante o sono, com frio e trêmulo de medo, pensando na sua própria desgraça. Só ele e o fedor que parecia rastejar para dentro do quarto onde dormia. O cheiro podre que parecia se esgueirar, feito fumaça, pelas frestas da casa. Jeremias passou a dormir muito pouco. E um, dia, com o nascer do sol, ele viu os dedinhos verdes despontando da terra. Os pés de milho finalmente nasciam.

Dias depois, milagrosamente, o milho atingira a altura de um homem e o arrendador, estupefato, fora parabenizar o responsável por tal proeza.

— Não entendo – explicava o homem para uma plateia no bar local. A maioria já conhecia uma dúzia de histórias a respeito daquele trecho à beira da estrada. – Não consigo entender. Ele conseguira, não? O milho cresceu que é uma beleza e nunca pensei que fosse viver o bastante para ver isso naquelas minhas terras.

Os homens entreolharam-se significativamente por cima de suas cervejas geladas.

— E ele se mata. O pobre devia estar sofrendo de alguma perturbação mental. É a única explicação.

Ele tomou um longo gole de sua caneca, preparando-se para entrar em detalhes sórdidos:

— Quando senti aquele odor de podridão, fiquei gelado e entrei na casa. Meu Deus! Ele devia ter morrido há dias. Acho que não vou conseguir dormir sem ter pesadelos pelo resto da minha vida.

Jeremias se enforcara e o arrendador o encontrara pendurado na ponta de uma corda desfiada, amarrada a uma viga no teto, sobre uma poça escura coberta de moscas enormes e, bem perto, uma cadeira tombada.

Ele quase tivera um troço. Os olhos do morto estavam abertos e brancos, larvas passeavam sobre eles. A língua pendia da boca como um pedaço negro de borracha velha. O resto do cadáver exibia uma cor doentia, amarela.

O arrendador não pode deixar de compará-lo a um espantalho. A semelhança era considerável. Só que o milharal estava lá fora.

— Agora não sei o que vou fazer com todo aquele milho. Por bem, acho que vou deixar que colham e aceitar um pagamento abaixo do mercado por ele. O que me dizem?

Ninguém disse nada.

A lagarta do milho

Só por curiosidade, as pessoas foram ao milharal. E ficaram encantadas.

Da beira da estrada, admiraram os corredores verdes, altos, sem nenhum pé de mato no meio. As espigas gordas, as mais graúdas que já viram na vida.

Um grupo de pessoas intrigadas resolveu mexer no milhararl ver se o milho era tão bom quanto parecia. Ou se havia ali algo de estranho.

Algumas espigas foram abertas e atiradas paa longe logo em seguida. Todos que viram o que havia dentro delas fugiram gritando horrorizados.

Não era milho o que havia sob a palha verde. Em vez e um sabugo incrustado de grãos dourados, havia um tipo aterrador de lagarta que estava enrolada em seu próprio corpo, o qual era recoberto por uma estrutura de cor marrom, provida de múltiplas pernas. A cabeça possuía apenas um olho e uma porção de dentes pontiagudos.

Felizmente, aquelas lagartas não estavam prontas para despertar. Mas, todos sabiam que, quando chegasse o momento, a colheita seria feita.

Cada um cuida dos seus assuntos

Eduardo dirigia tranquilamente pela pista, seu conversível voava suavemente através da paisagem rural e ele se regozijava olhando para os campos cultivados.

Acelerou um pouco mais e viu um vasto milharal aproximar-se. O mais vistoso milharal do mundo.

Eduardo recordou-se do tempo em que sua avó preparava deliciosos bolos de milho no forno à lenha, em uma fazenda que ele já não visitava havia muito tempo.

Os pés de milho estendiam-se ao seu redor, convidativamente, tão bem cuidados.

Ele não resistiu.

Parou no acostamento e saiu sorridente do carro, bateu a porta e resolveu dar uma aliviada na bexiga já que não havia ninguém olhando.

Assim que terminou, ajeitou as roupas e se preparou para apanhar uma braçada daquelas espigas gordas e enormes. Mas, assim que se aproximou:

— Caramba, que cheiro é esse?

Imaginou se alguém teria atropelado algum bicho e largado o cadáver por ali mesmo. Tentando ignorar o cheiro de podre, entrou no meio dos pés altos de milho e iniciou a sua colheita.

Já tinha um bom tanto de espigas acomodadas na camisa quando viu uma delas se abrir e um bicho estranho sair saltar da palha em direção ao seu rosto.

— Cristo, o que é isso?

A lagarta grudou com os dentes em sua bochecha. Um esguicho de sangue manchou sua visão. Outras lagartas saíam da espigas caídas no chão. Eduardo se desesperou.

— Socorro! Alguém me ajude!

As criaturinhas subiam-lhe pelas pernas, mordendo e guinchando, devorando a carne junto com as roupas. Um delas fez o pobre cidadão se ajoelhar quando arrancou um pedaço sangrento de uma das nádegas.

Quase cego de pavor, Eduardo tentou se arrastar em direção ao carro. Uma lagarta especialmente gorda rastejava pelo seu rosto, fitando-o com seu olho, grande e preto.

— Oh, meu Deus, por favor...

Ela usou seus dentes e numa pequena impulsão atacou um dos olhos esbugalhados diante de si, arrancando-o da órbita e esmagando-o como se fosse um ovo cozido.

Olhando para a pista com o seu binóculo de longo alcance, o delegado falou para o secretário:

— Ele pegou mais um.

— Mas, que droga, chefe!

— Ligue para os rapazes tirarem o carro de lá, antes que escureça.

— Certo.

Quando o secretário saiu, a fim de chamar o grupo de homens que iriam buscar o carro da última vítima do milharal, o delegado se recostou em sua cadeira e olhou, através da janela, o estacionamento atrás da delegacia.

Havia uma porção de carros, antigos e novos, abandonados e desgastados pelas intempéries dos anos. Os seus donos haviam tido a brilhante ideia de se meterem no milharal. Era melhor assim, pensava o gordo delegado, melhor do que ter os seus amigos devorados vivos. Cada um cuida dos seus assuntos. E o milharal tinha os dele.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 20/05/2009
Reeditado em 16/11/2011
Código do texto: T1604494
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.