ESTRELAS
A família estava reunida para o jantar. A jovem mãe distribuía os pratos e os talheres, ao passo que o marido e o filha de sete anos, já sentados à mesa, conversavam animadamente enquanto aguardavam.
O casal ainda tinha mais um filho, de apenas um ano de idade, que repousava em seu quarto no andar superior após ter sido alimentado com uma mamadeira preparada com zelo pela moça.
Haviam se casado cedo, pois a jovem engravidara ainda adolescente, no entanto, embora o casamento tivesse ocorrido não por planejamento, mas por conveniência, viviam muito bem e encontraram felicidade em seu estilo de vida.
Lá fora o granizo caía levemente, como era comum naquela época do ano no extremo sul do país, mas dentro da residência a temperatura era agradável e parecia estar tudo em paz. Parecia.
Enquanto apreciavam a comida, algo os espreitava posicionado nos galhos de uma árvore salpicada de branco. Os olhos atentos da criatura utilizavam a transparência do vidro da janela para monitorar cada movimento no interior da sala. A luz fraca do sobrado também não era ignorada por ela.
Um ruído nos fundos da casa chamou a atenção da família, e atendendo aos apelos da esposa, o homem decidiu verificar a proveniência de sua aflição. Seus passos eram executados de forma despreocupada, pois a certeza de segurança era total e ele achava que a única coisa que poderia acontecer seria a comida esfriar enquanto seguia até a garagem.
Abriu o pequeno portão que ladeava a entrada da garagem e fora surpreendido pelo som de algo metálico sendo arrastado. O susto o fez parar para tomar fôlego, já não estava tão seguro naquele momento, e em seguida ficou ainda pior, pois algo cruzou o seu caminho velozmente e o reflexo involuntário o fez projetar o corpo para trás, provocando uma queda desengonçada.
O cachorro, que procurava algum vestígio de comida nas latas de lixo naquela noite fria, havia decidido fugir devido à ameaça iminente causada pela presença do homem, e um sorriso sem graça brotou nos lábios deste, motivado pela cena patética na qual fora protagonista, ele agradecia por não ter havido nenhuma testemunha.
Caminhou rapidamente pelo corredor que dava acesso à sala, estava faminto e o pernil que esfriava estava perfeito. Ao chegar ao recinto perdera imediatamente o apetite. Seu sangue ficou gelado como a noite e o sorriso espontâneo desapareceu.
A mulher estava estirada sobre a mesa, o arroz e a salada espalhavam-se sobre o seu corpo inerte. Postado atrás da cabeça da jovem estava um ser diferente de tudo que os olhos do homem já haviam presenciado na vida. A estatura da criatura era normal, a fisionomia lembrava a de uma pessoa comum, mas, definitivamente, aquilo passava longe da normalidade.
A pele do ser apresentava uma aparência levemente escamosa, em um tom verde escuro, não havia um só fio de cabelo aparente, em seus olhos, a íris era delgada e brilhante e transmitia uma sensação de desconforto. A criatura mantinha a boca completamente fechada, o dedo indicado de sua mão direita alongava-se como um tentáculo e a extremidade estava fixada em uma das narinas da jovem. Um ondular perturbador tomava conta de sua garganta, acompanhado pelo ritmo e movimento do tentáculo, em uma espécie de efeito dominó que causava náuseas ao homem.
Tomado por uma ira inimaginável o rapaz agarrou um jarro de planta e atirou na criatura que foi ao chão pelo golpe na cabeça. O ódio aumentou no coração do humano ao vislumbrar os olhos vítreos da esposa e o material encefálico que escorria de seu nariz, naquele instante ele temeu pelo paradeiro da filha, e como se pudesse adivinhar esse pensamento, o ser desviou o olhar para as escadas que levavam ao andar superior e o rapaz compreendeu a situação e a intenção do invasor.
O homem gritou ao mesmo tempo em que agarrava uma faca que estava sobre a mesa, e que tinha como função inicial fatiar o pernil do jantar, mas que naquele momento teria como utilidade máxima acabar com a vida do maldito que atentara contra a vida de sua família.
O rapaz correu enlouquecido com a faca em punho, saltou sobre a criatura caída e golpeou o local onde deveriam estar suas costelas. Um chiado escapou da boca arredondada do ser, e esta era revestida por inúmeros filamentos afiados no lugar dos dentes, dando a impressão de um vórtice hediondo.
O invasor cravou as garras na nuca do rapaz e com a outra mão projetou um tentáculo sinuoso e esguio através de sua garganta. O homem se debatia, filetes de sangue escorriam de seus ouvidos, seus olhos reviravam enquanto as ondas na garganta esverdeada do ser se agitavam de forma incessante. Alguns minutos depois o corpo imóvel do humano era largado no chão acarpetado.
A criatura colocou-se de pé logo em seguida, fez como se estivesse se espreguiçando, girou a cabeça em direção à escadaria e dirigiu-se para lá.
Passos pausados venceram os vinte e dois degraus e um corredor com quatro portas se ofereceu a ela. Na primeira um cômodo vazio, no segundo o quarto do casal, vazio, no terceiro um quarto de menina, vazio, mas, no último, um berço encostado num dos cantos era protegido por uma garotinha de braços abertos.
O ser emitiu um grunhido e adentrou pela porta, seus olhos metálicos concentravam-se nas duas crianças, o bebê esperneava enquanto a irmã chorava e chamava pela mãe. A criatura apreciava cada momento do desespero infantil, parecia deliciar-se com o sofrimento alheio. Ganhou a distância que os separava, abaixou-se chegando bem próximo do rosto da menina assustada, abriu a boca arredondada e ouviu:
- Corta! Parabéns a todos! Excelente! Por hoje é só! Juliana – dirigia-se para a atriz mirim – você estava ótima, menina, bem convincente.
A equipe estava eufórica com o resultado das gravações, a atriz principal, a qual representava a mãe e era considerada a estrela da produção, nitidamente era a que se mostrava mais feliz dentre todos. Após um longo abraço no diretor, a jovem encaminhou-se para o camarim, estava exausta.
- Diretor – falava o assistente direto – estou muito empolgado com o trabalho, conseguimos dar uma nova vida ao gênero. O alienígena estava sensacional.
- É, tivemos um bom suporte para compô-lo.
- Sente-se aqui, querida – falava o responsável chefe pela maquiagem e figurino do elenco – precisamos limpar a sua pele, ficar tanto tempo com isso não faz bem.
- Tudo bem – disse a atriz, recostando-se na confortável poltrona, fechando os olhos em busca de relaxamento.
- Como assim diretor?
- O chefe da maquiagem, o rapaz entende bem do assunto, deve ser algum aficionado pelo gênero, ele nos deu idéias incríveis e detalhadas para compormos o monstro.
- É – concordava o assistente – o sujeito é bom mesmo...
No camarim, o maquiador cantarolava baixinho, em seus olhos era possível notar um leve brilho incomum, um reflexo prateado. Calmamente retirou uma das luvas emborrachadas, seus dedos esticavam-se em estranhos tentáculos, na extremidade do indicador era possível notar uma ventosa repleta de minúsculos fios.
- Ei! Cadê você? – Chamava impaciente a atriz.
- Já estou indo, querida, já estou indo. Tenho um presente das estrelas para a minha estrela...