Boa noite caro hóspede
Chovia abundantemente a mais de duas semanas, a situação era de calamidade na cidade, falta de água e alimentos, ruas bloqueadas, rios transbordaram e esgotos estavam entupidos. As famílias presas em suas casas olhavam tristemente para o que não sobraria de seus pertences enquanto migravam para os abrigos.
O desespero era visível em todas as faces, apenas algumas pessoas não pareciam notar que havia algo diferente. A falta de energia elétrica era fator comum da cidade inteira, exceto da grande mansão que ocupava o alto do morro da Glória, no centro da cidade.
Naquele morro, não havia casa nenhuma, exceto a grande mansão, ninguém sabia por que não havia mais residências ali, ou qual o fator que levou o milionário (pois devia ser um milionário) a comprar toda aquela região para deixá-la como mata intocada, onde moravam corujas, quatis, lobos, vampiros, e sabe Deus mais o quê.
Um grupo de moradores havia se mobilizado para invadir os grandes muros que cercavam o terreno e acampar na floresta, que era mais seca do que toda a cidade. Prepararam seus pertences e encaminhavam-se para a região, estavam em vinte três pessoas, dez homens, onze mulheres, e dois idosos.
Eles caminhavam com mochilas pesadas nas costas, sacolas nas mãos, guiados pela luz mórbida de um sol que não era visto há muito tempo. Os pés enfiados em botas de borracha estavam protegidos da umidade e da lama que tomava conta das ruas asfaltadas. O lixo boiava na água passando através deles.
O grande portão negro da grande propriedade era tão instransponível quanto as altas muralhas, mas era o único jeito de entrarem. Dois homens puseram-se a trabalhar com serrotes nas barras de aço, pretendiam abrir uma fenda suficiente para deixar todos entrarem.
Depois de algumas horas de trabalho as barras caíram ao solo, cansados, mas satisfeitos eles entraram. Subiram a ladeira pela estrada de tijolos até um ponto onde ainda não eram vistos pelas enormes janelas do casarão. Ali, mudaram a rota para o leste, embrenhando-se na floresta, ora densa, ora rarefeita do lugar.
Pararam em um ponto onde o solo era mais seco, coberto por um cascalho, mesmo estando totalmente coberto pela floresta. As copas das árvores fechavam o ambiente, e chuva penetrava de modo menos intenso, embora as gotas grandes caíssem pesadamente no solo de vez em quando. Ali montaram acampamento com algumas barracas improvisadas.
A noite chegou e lentamente o que já estava escuro, mais se tornou. Os sons dos habitantes noturnos daquela floresta trouxeram medo e receio aos corações, mas os homens mantiveram-se confiantes de que ficar ali era melhor do que permanecer nas casas inundadas.
Eles dividiram-se nas barracas, conforme as famílias se apresentavam. Passava da meia noite quando decidiram todos dormir, nada receavam mais após se acostumarem aos sons da noite.
No meio da madrugada o casal de idosos saiu de sua barraca para procurar um local para fazer suas necessidades. Eles não conseguiam evitar, suas funções fisiológicas não eram tão facilmente controladas.
- Aqui... – a velha comentou achando um canto atrás de uma árvore grande. Ali o velho também se agachou, e ficaram ambos concentrados.
Dois olhos castanhos espreitavam os idosos entre as árvores. O barulho suave dos passos não era escutado pelos ouvidos já deficientes, e os velhos foram surpreendidos quando o grande quadrúpede negro estava a menos de dez passos deles. O velho caiu no chão tremendo enquanto a mulher gritava com sua voz rouca.
O lobo avançava lentamente, aparentemente saboreando o terror. Sua saliva escorria pelo focinho comprido e entre os dentes afiados. Ele aumentou a velocidade, as patas impulsionavam o corpo no solo. Os lábios deixaram à mostra os dentes ferozes quando ele pulou sobre a velha acertando-lhe o pescoço. Os dentes rasgando a carne e a língua saboreando o sangue quente que lhe jorrava na boca.
O velho tremia no chão, chorando amedrontado. Os demais homens levantaram assustados para averiguar o que acontecia com a mulher. Encontraram-na morta sob o pesado corpo do lobo.
- Deus do céu! O que é esse monstro? – um dos homens perguntou assustado enquanto inconscientemente andava para trás.
O lobo parecia inconsciente do fato de mais de dez humanos o olharem. Saboreava com voracidade a carne da velha saciando seu apetite veroz.
Enquanto os humanos estavam parados assistindo a cena terrível, as luzes da casa se acenderam e a grande porta de mogno abriu-se. Dela saíram quatro pessoas. Eram dois homens e duas mulheres, que exibiam uma beleza frágil como seda, a pele branca como gesso.
Os quatro desceram o morro e encontraram o lobo sobre o cadáver da mulher. Sem pensar duas vezes um dos homens sacou uma pistola e atirou. O lobo caiu morto com uma bala na cabeça enquanto os homens respiravam aliviados agradecendo a salvação.
- Porque os nobres cavaleiros não nos acompanham para dentro da casa com suas damas? – perguntou o outro homem cuidadosamente.
Sem muita demora os homens e as mulheres pegaram seus pertences e seguiram os donos da casa para dentro do abrigo seco e quente. A mansão era enorme, havia cômodos suficientes para abrigar todos com muito conforto. Uma lareira deixava lenha crepitar esquentando uma grande sala de estar, na qual todos se reuniram após entrarem na casa.
- Podemos lhes perguntar o que faziam dentro de nossos terrenos? – uma das mulheres vestida num perfeito vestido cor de vinho perguntou.
- Estávamos apenas nos abrigando em algum lugar seco, sem enchente. – um dos homens tentou se defender.
- Nossos terrenos não são seguros. Os lobos não nos atacam porque os criamos, mas não nos responsabilizaremos por nenhum dos seus. – o homem que atirou no lobo falou enquanto servia vinho para o velho que ainda tremia.
- Melhor irmos embora então! – falou uma das mulheres histericamente.
- Fiquem até o sol nascer, pode ser que ele ilumine seus pensamentos. – falou o dono da mansão.
- O sol não nasce a semanas! – queixou-se um dos homens.
- Ao que somos muito gratos! – sussurrou uma das beldades de seda para outra, e elas riram baixinho deixando à mostra os dentes afiados e brancos.
- Fiquem a vontade para ir para seus aposentos. A porta ficará aberta para irem a hora que acharem mais prudente. Provável que não nos encontrem durante o dia. – o dono da casa fez uma reverência e acompanhou os outros três para fora da sala.
Minutos depois os homens rumaram para seus quartos, ansiosos por uma cama seca e algum conforto. As mulheres reconfortaram-se com o banho de água quente que lhes fora proporcionado.
O relógio bateu às quatro da manhã. Os homens e mulheres sonhavam em suas camas, e não viram e nem sentiram o que lhes trouxe o sono eterno, naquela fatídica noite chuvosa.