NEVE RUBRA, SANGUE E GELO
Havia mais de vinte e quatro horas que não conseguíamos contato com a base Comandante Ferraz, posto brasileiro de exploração e pesquisa no Continente Antártico. As transmissões de rádio e telefone via satélite não funcionavam, em um primeiro momento tentaríamos a todo custo evitar qualquer envolvimento estrangeiro nessa pendência, deveríamos descobrir o que estava acontecendo por nós mesmos.
Esperamos quase três dias para que as condições climáticas adversas permitissem que decolássemos com o helicóptero, o porta-aviões São Paulo não poderia se aproximar demais da terra gelada, primeiro porque não haveria condições físicas para isso, segundo porque quaisquer operações militares que não fossem ligadas às atividades científicas eram totalmente proibidas, só o fato de estarmos ali já seria motivo para exaustivas explicações.
Estávamos com sorte, quando o SH3 Sea King tocou o heliponto da base, a neve começou a cair com ímpeto, se tivéssemos demorado um pouco mais, teríamos tido sérios problemas. Eu liderava a equipe, composta por mais três soldados, a escuridão do local insinuava que algo estranho acontecia.
Assim que pusemos os pés no solo branco experimentei o rádio para contatar o São Paulo, não fiquei surpreso com a estática que chegava aos meus ouvidos, mas surpreendi-me com o fato do navio oceanográfico quebra-gelo Ary Rongel, que estava atracado na parte de trás da base, estar em aparente abandono, a parte do deck onde deveria estar o helicóptero Esquilo estava completamente vazia.
Naquele momento comecei a lamentar pelo fato do Sea King não dispor de nenhum tipo de armamento, mas trazer as pistolas em punho me dava um pouco de conforto, afinal, àquela altura tudo seria possível.
A tempestade aumentava de forma considerável, quase não conseguíamos enxergar através daquela cortina branca, o vento gelado nos açoitava produzindo danos mesmo com as vestimentas apropriadas para a situação.
O caminhar era difícil e levamos mais tempo do que o usual para chegar até as instalações. Lá chegando, nossa apreensão aumentou na mesma proporção da neve que caía, as portas da entrada estavam escancaradas. Ordenei para que os soldados se preparassem para um confronto, adentramos com o maior cuidado possível fazendo uso das potentes lanternas para desvendar os obstáculos escondidos em meio àquele breu absoluto.
A sala principal estava estranhamente vazia, os aparelhos quebrados, parecia que o local havia sido invadido e tudo o que ali estava destruído. Por alguns instantes ficamos nos entreolhando sem saber o que fazer, o silêncio foi quebrado pelo gotejar que surgiu no círculo formado à nossa frente, ao mesmo tempo olhamos para cima e nessa hora nos desesperamos.
Ouvimos o som das portas de aço sendo fechadas, desviamos o foco de luz para a posição oposta e começamos a correr pelo corredor que levaria à saída do outro bloco, em minha mente não saía a imagem que havíamos presenciado.
Rodrigues, o soldado que seguia na vanguarda gritou, para em seguida desaparecer, desviamos novamente o olhar para o teto, um outro soldado viu uma movimentação e começou a atirar, acompanhamos seus disparos contra o vazio até que a lucidez voltou a mim e ordenei que parassem. Não sabíamos o que estava acontecendo, mas uma coisa era certa, não poderíamos desperdiçar munição.
Tentei mais uma vez o rádio, e obtive a mesma resposta nula. Um calor me sufocava apesar do frio que cercava a todos nós, deveríamos sair dali, a situação estava fora de controle, retornar para o helicóptero era a prioridade.
Ganhamos a parte externa novamente, procurávamos nos manter unidos, próximos uns dos outros, agora éramos três e esse deveria ser o número a pousar no São Paulo. Tomei a dianteira desta vez, logo atrás de mim vinha a dupla de soldados, as rajadas de vento eram cruéis, o zumbido ensurdecia, olhei para trás, os homens não estavam mais lá.
Chamei por eles, gritei a plenos pulmões, minha garganta doía e queimava, eu estava em um inferno, um inferno branco e gelado.
Eu praticamente me arrastava em busca do helicóptero, e conforme me aproximava, um calor estranho era perceptível. Dobrei um grande monte de neve e me deparei com o helicóptero, aliás, com os helicópteros, pois o que deveria estar no convés do quebra-gelo estava ali, depositado sobre o meu passaporte para a fuga, ambos em chamas, uma fumaça negra subia aos céus mesclando-se à neve que caía. Uma explosão. Fui atirado longe e caí com violência, o impacto minou o restante das minhas forças, pois as esperanças já haviam se partido pela situação desolada em que me encontrava, engatilhei a arma e me preparei para enfrentar o inimigo desconhecido, mas, a dor fora mais forte do que eu, e com isso desmaiei.
Acordei com rostos estranhos me olhando, a bandeira estampada em seus uniformes denunciava a nacionalidade norte-americana, me perguntavam se eu estava bem. As forças me faltavam até mesmo para responder, não sei por quanto tempo permaneci desacordado, os sinais da hipotermia já me atacavam.
Meu corpo estava em frangalhos, mas consegui sobreviver, um soldado, aparentemente médico, se aproximava de mim, os outros ficavam mais ao fundo, desviei o olhar para o local onde estavam, foi quando vi.
O pavor tomou minha alma ao visualizar ao longe dois pontos vermelhos e nada mais, apenas isso, o que quer que fosse estava oculto pela cortina alva, mas eu sabia que aquilo que se aproximava era o responsável por toda a desgraça que se abatera sobre a base, minha equipe e a mim.
Tentei esticar o braço para avisá-los, não consegui, tentei falar, a voz não saiu, tive a certeza de que o médico notara o desespero em meu semblante, mas tudo o que fez foi pedir que me acalmasse, ele estava totalmente alheio sobre o perigo que corríamos.
Tudo aconteceu rápido demais, eles não tiveram a menor chance, não conseguiram efetuar um disparo eficiente, mediante a cena que se desenrolava à minha frente, pude entender como os meus companheiro ficaram naquele estado, somente com vestígios de carne sobre os ossos triturados e pendurados no teto da base. O jovem médico que me prestava socorro tentou correr, ele o acertou em plena fuga, com um salto impressionante que enterrou o rapaz na neve, esmagando o seu corpo.
Embora a criatura fosse pesada e forte, movimentava-se com a leveza do vento, seus olhos vermelhos contrastavam com o pelagem alva que lhe revestia e que enfeitava o cenário ao redor.
Um a um todos tombaram subjugados pela ira e fome da fera. Como se eu fosse um prêmio final, ou talvez uma sobremesa apetitosa, ele me deixou por último. Olhava diretamente em meus olhos, naquele momento eu pensava em meus filhos e em tudo o que ainda desejava fazer na vida. Seus olhos, aquelas órbitas hediondas eram tudo o que eu conseguia distinguir, além dos dentes lavados pelo líquido dos corpos dilacerados.
E esses olhos me diziam que eu seria o próximo, brincavam com o meu medo. A criatura caminhava lentamente em minha direção, sorria, parecia que sentia prazer em torturar a alma alheia. Não, eu não poderia me entregar à sua vontade, não poderia morrer pelas mãos daquilo que eu nem sabia o que era. Com um esforço, que julguei ser incapaz de produzir, consegui levantar o braço, a pistola ainda estava em minha mão que tremia descontroladamente. Apontei a arma e disparei. Em seguida veio o silêncio e a paz. Eu não seria devorado vivo, não, não poderia, por isso espalhei minha essência vital por todos os lados, deixando naquela noite fria apenas sangue e gelo, tornando a neve rubra.
Réplica dos amigos:
Fábio Codonho
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Suzana Barbi
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Maith
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