CONDE KRAIG
Uma leve brisa entrava pela janela semi-aberta ondulando o tecido transparente da cortina. A escuridão da noite intimidava a presença das estrelas, até mesmo a dama branca teimava em se esconder atrás das densas nuvens. Os sonhos da moça eram recheados pelas possibilidades que a sua idade sugeria, e na doçura de seus pensamentos noturnos não havia espaço para nada que pudesse desviá-la do caminho que ela mesma havia traçado em alcançar.
Um sorriso limpo e espontâneo brotou em seus lábios dando a certeza de felicidade a quem acaso o testemunhasse. O vento invasor se tornava mais gélido, os pêlos aloirados que revestiam a pele extremamente alva dos delicados braços da menina se eriçaram ao mesmo tempo em que a corrente de ar circulou sobre o seu leito.
De forma automática sua mão buscava a segurança e o conforto do lençol, mas não foi preciso, um calor reconfortante se espalhou de forma repentina pelo seu corpo, a sensação fora tão impactante que um suspiro escapou de sua boca simultaneamente a ela, no entanto, seu sono fora preservado.
Mas, seu sonho de menina não era mais realçado por pinturas ricas em detalhes belos e finos, seu pensamento antes limpo e hospitaleiro deu lugar a uma sombra pesada e densa, onde uma mistura de tristeza e incerta melancolia preenchia de forma plena o seu coração.
Ela não sabia a causa, não sabia a razão, a única certeza que tinha era apenas a sensação de pesar absoluto que a envolvia e lhe dizia, sim, a sensação lhe dizia que a tristeza seria eterna e a única vontade que tinha naquele momento era a de morrer, e ela, ainda que não soubesse disso, seria atendida, pois seus olhos de esmeralda rara não mais veriam a luz do sol que tanto amava, não sentiria mais o calor tomar-lhe o corpo, só existiria o vazio, como o seu corpo estava agora, onde apenas um filete de sangue ainda resistia mesclado ao louro reluzente de seus cabelos cacheados.
Abertas e imponentes as asas da raposa voadora* recebiam os açoites da massa de ar que guiava o animal até seu destino. O vão aberto e decorado por pedras polidas e cuidadosamente esculpidas demarcava o caminho a ser seguido por ele. Com extrema competência alicerçada pela prática, o ser atravessou a passagem através da torre mais alta. Conforme ele caminhava, os pavios apagados das velas derretidas tornavam-se em luz simplesmente por sua presença. Embora andasse naturalmente, seus pés mal tocavam o solo, a poeira do chão de pedra subia e formava uma nuvem espessa , parecia que ele flutuava.
Suas visitas estavam se tornando cada vez mais raras, de uma forma estranha parecia que o peso dos séculos já estava inibindo o seu apetite, talvez apenas a necessidade o guiasse nos últimos tempos.
Até mesmo a arte da sedução fora deixada um pouco de lado, utilizava-se cada vez mais da prática de investidas furtivas, até mesmo para ele o cansaço parecia chegar.
Ratos de dimensões desproporcionais escalavam as paredes irregulares revestidas por teias cultivadas através dos séculos, o instinto dos bichos os ordenava a fugir, a simples presença dele os intimidava.
A escadaria em caracol era imensa, mas o percurso fora realizado de maneira eficiente e rápida. No salão principal, decorado por quadros e esculturas tão antigas quanto realistas, a bem da verdade, os olhos pareciam denunciar vida na arte. Um homem deformado e de estatura reduzida o aguardava, mas não ousou lhe dirigir a palavra, o temperamento do senhor era algo já enraizado nele por obra das eras, e um comentário inoportuno poderia significar o passa final na linha tênue entre o existir e o além.
A iminência da chegada do astro rei sempre ocasionava uma sensação de urgência no castelo, uma ironia para alguém que dispunha plenamente das vontades do tempo.
O ataúde de madeira de lei, entalhado por um mestre carpinteiro, cujo único propósito em vida fora construí-lo e como prêmio recebera o abraço gélido da dama de negro, o esperava de braços abertos. Seu forro dispunha de tonalidade semelhante ao fundo da capa de seu dono. Um pouso suave e apressado, a tampa fora cerrada sem que ele a tocasse. Mãos cruzadas no centro do peito, os olhos enigmáticos repousaram imediatamente, deixando à mostra apenas dois círculos perfeitos formados pelas olheiras profundas e roxas, as quais contrastavam com a palidez mórbida de sua pele.
Ao surgir dos primeiros raios, um ladrar de cães de caça misturados a um burburinho que aumentava gradativamente fora ouvido. O fiel serviçal, cujo sono nunca era permitido, fitou com um susto estampado no rosto torto ao que parecia impossível.
Mortais armados e dispostos enfrentavam com fúria e ousadia os combatentes do senhor. A batalha pendia para o lado dos inimigos e pela primeira vez em sua vil existência ele vislumbrava a possibilidade real de conflito, não um conflito armado, pois não possuía atributos para isso, o que o invadiu fora a dúvida entre tentar escapar e salvar a própria vida, ou avisar ao mestre, a quem de fato queriam, e morrerem juntos.
A fuja para o senhor do castelo seria limitada pelo calor do dia, pensava ele. A rigidez da porta de entrada ameaçava ruir, o fogo se espalhava com a velocidade de um pensamento, a ira dos homens era evidente, ele não deveria ter atentado contra a vontade do rei daquelas terras, o título de nobreza e pacto de não agressão já não teriam mais validade. Eles o queriam.
O serviçal não precisou utilizar toda a capacidade do seu cérebro limitado, ensaiou uma fuga desabalada pelos fundos do castelo, e desapareceu por entre a vegetação fechada da floresta escura, não seria seguido.
Os homens movidos pela vontade inabalável e pela promessa de recompensa irromperam com ímpeto pelas dependências do castelo, cientes da estrutura dos aposentos seguiram furiosos e apressados pelos corredores estreitos que levavam à câmara escura no subsolo, o líder do grupo logo avistou a enorme caixa de madeira que guardaria aquele de quem queriam a morte.
Ao abrirem a tampa, um ser que personificava a morte se ergueu sem dobrar os joelhos ou se apoiar com as mãos, não chegou a abrir os olhos, a lâmina afiada de uma foice tratou de separar-lhe a cabeça do corpo. O rei teria o seu troféu.
Os guerreiros foram recebidos com honras no palácio, sobre um tapete rubro de tecido fino desfilaram até o trono, o líder detentor de todas as honras abriu a tampa de prata, o rei reagiu com surpresa e espanto.
À noite, dentro de uma caverna escura e fétida, o serviçal agradecia aos infernos pela possibilidade de ter escapado intacto daquela investida humana, no entanto, não mais teria a proteção do mestre.
Um som semelhante a um bater de asas, névoa, uma silhueta conhecida surgiu. Os olhos apavorados do pequeno homem não acreditavam no que viam.
- Aquele que esperava o fim em meu caixão serviu bem a seu propósito, diferentemente de você. Será muito difícil de entender que Conde Kraig é eterno?
Garras afiadas foram usadas para decapitar o traidor.
A raposa voadora voltava a bater as asas.
Este conto é uma homenagem a Silvan Kraig, um admirador dos vampiros à moda antiga, leiam seus textos, não irão se arrepender!
* raposa voadora é um tipo de morcego de grande porte