Estranho ritual

Os elementos estavam preparados: enxofre, alcatrão, sangue, carvão, dois quilos de carne moída. Ela estava parada em frente a mesa. Presos em uma jaula estavam os últimos ingredientes da fórmula.

O imenso caldeirão já borbulhava água fervente, a moça adicionou a carne moída e o carvão e deixou a mistura ferver por alguns minutos. O cheiro enjoativo da carne atingiu-lhe as narinas e ela teve uma ânsia de vômito, precisando correr até a janela. O ar gelado da noite veio acompanhado do turbulento barulho da vida noturna da cidade: buzinas, berros, tiroteio, som alto.

Assim que se acalmou, voltou para sua tarefa, precisava terminar tudo ainda àquela noite, não poderia postergar mais. A mão pousou no ventre abaulado.

- Não posso ter esse filho sem invocar o mestre – falou para si mesma enquanto adicionava enxofre, alcatrão e o sangue dentro do caldeirão. A mistura chiou e começou a soltar uma fumaça amarelada e fedorenta.

Ela tapou o nariz com a mão e com a outra puxou uma das crianças que estava na gaiola. A corda amarrava os pulsos de maneira tão firme chegando a cortar a carne. Os cabelos claros e encaracolados faziam a menina parecer uma destas imagens angelicais.

A mulher puxou a criança para perto do caldeirão e começou a recitar palavras de algum idioma estranho que estavam escritas em um pergaminho antigo. A criança esperneava, mas as pernas e a boca presas não permitiam nada muito lucrativo.

Assim que terminou o que precisava falar ela puxou uma adaga prateada que estava sobre a mesa e cortou a garganta da criança.

- Ofereço-lhe este primeiro sacrifício para garantir o futuro de nosso filho! – falou enquanto jogava o corpo dentro do caldeirão deixando um pouco da água derramar.

Puxou a segunda criança: era um menino de apenas dois anos de idade, os cabelos curtos eram negros, contrastavam com a pele clara e os olhos azuis. Ela preocupara-se em escolher as mais bonitas entre as crianças para o feitiço.

A mão da mulher alcançou uma agulha de ouro, ela banhou a agulha na solução borbulhante. Segurou a criança e com o ferro quente desenhou símbolos de invocação superior no rosto. O menino gritava embora som algum saísse.

A dor rasgou-lhe o corpo enquanto ela continuava a marcar-lhe, vez ou outra esquentando a agulha no líquido quente, o garoto desfaleceu pela dor. O rosto estava todo cheio de bolhas vermelhas, então a moça despiu o garoto e marcou-lhe no corpo inteiro.

- Ofereço-lhe este segundo sacrifício para garantir o sucesso do nosso plano para a criança que irá nascer! – jogando o corpo marcado no caldeirão, a água escorreu banhando o piso, mas ela não se importou, em cima do salto alto não se queimaria.

O terceiro sacrifício era um homem idoso, já cego e imponente. O homem choramingava assustado, não vira, mas entendia as atrocidades que a mulher fizera, entendia porque outrora ele também havia feito isso.

- E por último trago-lhe um presente, uma pessoa que a muito você quer ver ao seu lado, um antigo servo que foi castigado por sua desobediência.

Ela cutucou o velhote com a adaga, fazendo o caminhar e subir uma escada que levava ao topo do caldeirão. O velho sabia seu futuro, os passos eram curtos e fracos, por fim ele acabou sentindo o líquido quente queimar-lhe a pele do corpo inteiro e deixá-lo completamente incapacitado.

A mulher sento-se em um sofá e orou para seu senhor. O tempo para o feitiço se concretizar era de meia hora, tempo que não viu passar, as contrações uterinas começaram a ter regularidade quando ela arriou de dor acocorando-se ao solo.

Um longo corte apareceu no braço dela, o sangue jorrava sem parar formando letras no piso.

“Concedo-lhe a dádiva de tornar-se portadora do que será minha carne!” A água borbulhante que caia do caldeirão lavou as palavras enquanto outras tomavam o lugar.

“Protegida será até que a necessidade exija!” outra vez tudo foi lavado.

O bebê impulsionava-se para fora do corpo. Ela sentiu o cérvix e a vagina dilatando, os ossos da bacia abriram dando espaço para a cabeça da criança.

O pequeno recém-nascido caiu no piso gelado ainda preso ao cordão umbilical. A mãe segurou-o nas mãos e cortou o cordão com os dentes. O sangue jorrava de ambas as pontas, mas ela não se importou.

Levou o bebê e largou-o na mesa, precisava batizá-lo antes de qualquer coisa.

Encheu então uma taça com o líquido borbulhante e nele despejou o sangue do neném misturado ao seu. Com o composto molhou a testa e a nuca da criança, e deu-lhe de beber da poção. O bebê não chorava, apenas a olhava com olhos negros e grandes.

Ela arriou na cadeira e puxou a placenta com os dedos, sentiu a carne descolando de seu útero, os vasos rompendo a ligação que um dia a conectava com o feto.

O corpo do bebê era diferente do corpo de uma criança comum, a mãe notou quando amarrava o cordão e o limpava com uma toalha. Ele possuía uma estranha marcação no peito, era a criança marcada para abrigar seu senhor, o demônio da noite!

Emília Kesheh
Enviado por Emília Kesheh em 30/04/2009
Reeditado em 03/05/2009
Código do texto: T1568799
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