O nascimento do monstro da lua cheia
A manada de bovinos corria através do pasto verdejante. A criatura estava no encalço dos animais com seus passos rápidos, as duas patas providas de garras poderosas proviam velocidade e força.
Os bois chegaram a metros da cerca de arame farpado e descreveram uma curva enquanto mantinham a velocidade de fuga. A chuva cruzava os campos com as rajadas do vento forte.
A criatura previu a rota e cortou caminho pelo campo aproximando-se dos animais. O corpo flexionou-se, as patas o impulsionaram e ele pulou para cima do ruminante que caiu ao solo rolando pela alta velocidade com que se encontrava. Dois outros bois não conseguiram desviar a tempo e acabaram caindo também no tumulto.
Triunfante a criatura quebrou o pescoço dos três animais e lambeu os lábios sedentos. A boca abriu-se deixando à mostra apenas um grande dente pontiagudo. Ele fincou o dente no tórax do animal atingindo um grande vaso na base do coração.
A língua tubular desceu guiada pelo dente e pôs-se a drenar o sangue do animal. O fluido quente descia-lhe pela garganta ressequida dando-lhe força e vitalidade.
A pele outrora seca e quebradiça devido à fome e a desnutrição agora estava tomando um aspecto mais macio e saudável. Ele descartou o primeiro animal e repetiu a operação no próximo e em seguida no terceiro.
Quando se levantou e limpou os lábios com a palma da mão ele parecia um humano normal. O grande dente recolheu-se para dentro da ossatura da face dele deixando-lhe apenas a arcada dentária normal de um humano.
As garras afiadas estraçalharam o corpo dos animais dando-lhes aparência de atacados por algum carnívoro de grande porte. Logo os urubus finalizariam o trabalho e não restaria nada para firmar alguma suspeita contra ele.
Os cabelos negros estavam brilhantes e sedosos, a pele clara estava macia, os músculos estavam firmes, a postura ereta. Ele flexionou os dedos, as articulações estalaram, rapidamente ele podou as unhas compridas e sujas com os dentes e pôs-se a caminhar.
Estava agora em uma grande fazenda no interior do Mato Grosso, um mês antes ele se arriscara demais em Minas Gerais. Jamais cometeria o mesmo erro. A imprensa caíra em cima do caso dos animais drenados como urubus sobre carniça, a notícia espalhou-se pelo mundo e em menos de um mês ele havia virado lenda: Chupa-cabras era como o chamaram.
A água gelada do rio banhou-lhe o corpo levando embora o resto dos pêlos e do sangue que ficaram grudados à sua pele. Os olhos potentes captaram um movimento em uma colina distante. Ele nadou silencioso até a margem e observou.
Doze pessoas estavam reunidas ali, formando um círculo, no centro havia algo que ele não conseguira identificar. Precisava se aproximar mais. Tomou um gole de ar e mergulhou nadando os metros que o separavam da colina. A margem ali era bem arborizada e ele podia sair da água sem se arriscar.
Uma plataforma de madeira fora erguida no centro do círculo, deitado nela um animal, parecia um canídeo de grande porte, a cauda balançava fora da plataforma enquanto o animal se torcia tentando se livrar das cordas que o prendiam a mesa com o ventre para cima.
Os homens se amontoaram sobre o animal que uivou seguidamente por cerca de dez minutos, e então se afastaram. Sangue escorria pela plataforma, o ventre aberto deixava à mostra os intestinos pulsantes.
A risada diabólica dos homens soou pelo ar, eles movimentaram-se rapidamente e sumiram em pleno ar desaparecendo em plena noite.
Ele levantou-se do seu esconderijo e caminhou até o alto da colina, o canídeo era um grande lobo negro, os olhos suplicantes ainda estavam conscientes, o sangue pingava drenando a abertura que havia no abdômen. Ele soltou as amarras que prendiam o animal, logo ele morreria.
O lobo uivou pulando sobre as quatro patas no chão, os intestinos arrastaram no chão, mas ele não parecia se importar, pulando sobre o ser que o soltara.
Num reflexo rápido de puro instinto o agora homem se esquivou, o lobo virou-se voltando para atacar. O homem partiu também para o ataque. As mãos dele agora sem garras eram fracas e o animal estava tomado pela adrenalina. A força lhe faltou e as garras do lobo arrancaram um pedaço de seu braço.
O homem gemeu, o dente afiado projetou-se, ele tomou posição de ataque e pulou abraçando o lobo, enquanto o dente perfurava o pescoço. Com ferocidade ele drenou o que restava do sangue do animal que caiu duro ao solo.
O braço dele regenerou-se rapidamente, e ele pode saciar a curiosidade que tinha pelo animal. Quebrando e abrindo o restante do corpo ele notou que o animal não possuía coração em seu peito, como era possível o lobo estar vivo sem o coração era algo que ele não entendia. Mesmo que aquelas coisas tivessem retirado o coração do lobo antes, ele deveria estar morto, e não tentando atacá-lo.
Uma dor perfurou-lhe o peito, seus joelhos atingiram o solo pedregoso, lhe faltou oxigênio. Ele ofegava sem forças, seu coração parecia ter tido uma parada. Ele massageou o peito com pancadas fortes tentando reavivar o órgão, mas este parecia não responder.
A chuva havia cessado, mas o vento continuava forte, o céu antes negro agora clareava, algumas estrelas estavam à mostra. A luz da lua cheia iluminou os campos.
O corpo dele convulsionou. Sua aparência repugnante de antes da caçada subitamente retornou, mas agora pior, a pele não estava apenas rachada, mas apresentava grandes tufos de pêlo negro, como os do lobo. As unhas cresceram em garras fortes como as que antes arrancaram um pedaço do seu braço.
Seu rosto alongou-se e ele tomou uma aparência lupina, sua própria consciência minou na escuridão da transformação enquanto o lobo tomava conta do corpo, seu desejo de vingança por aqueles que haviam retirado-lhe o coração lhe dava forças. O ser observava em silêncio o lobo assumir seu corpo e provocar o terror na cidade enquanto procurava por seus atacantes. Sua tentativa de não chamar atenção foram todas em vão e uma nova enxurrada de notícias veio à tona: Lobisomem ataca cidade em noites de lua cheia.