GIRASSOL

Girassóis. Observar o campo extenso, destacado em dourado, refletindo os últimos raios do sol poente, as nuanças avermelhadas no fundo azul anil, esticar a sua visão até o horizonte, onde os contornos da serra se destacavam na ausência de nuvens. Campo de girassóis.

Para ele, este era um dos poucos elementos que lhe proporcionavam paz e prazer, mesmo trazendo várias décadas em seu histórico de vida, a longevidade não se traduziu em boas recordações, ou mesmo, em bons relatos e lembranças para serem compartilhadas com seus inexistentes descendentes.

Tornara-se um solitário, não constituíra família, seus tormentos internos o intimidaram a comprometer novas vidas em uma existência cuja a incerteza era protagonista, no fundo de seu coração enegrecido, não desejava trazer para outros o mesmo destino que se abateu sobre aqueles que carregavam o mesmo sangue que ele nas veias, não, ele deveria ser o último a caminhar pelo chão desse mundo com essa tarefa, precisava centralizar em si todo o peso e horror que seus olhos vislumbraram e que sua mente jamais o permitiria esquecer.

Até hoje não compreendia qual teria sido o plano que a vida havia lhe reservado, qual teria sido o motivo de ter sido o único a resistir àqueles improváveis acontecimentos. Como um vilarejo inteiro pôde ter simplesmente desaparecido daquela maneira? Como a pequena residência de sua família veio a tornar-se o epicentro daquela manifestação?

Já perdera a noção da quantidade de noites em claro que passara refletindo sobre os questionamentos sem conclusões satisfatórias. Ele esperava ansiosamente pela visita da dama da foice, sua fé não permitia antecipar o encontro, mas já havia se tornado cansativo esperar por mais de vinte décadas, fato que já era algo por si só extraordinário, único e ao mesmo tempo penoso e extremamente sacrificante.

Desejava a morte, talvez o único desejo que teve em sua longa existência, mas não poderia privar-se da vida por sua próprias mãos. As rugas que lhe revestiam o corpo não condiziam com a vitalidade que sentia, às vezes imaginava que jamais embarcaria em sua última jornada, e isso, certamente teria relação com as suas memórias sombrias e com as lacunas abertas e sem perspectivas.

Seus olhos, que ainda conservavam o mesmo brilho da juventude, foram encobertos pelas pálpebras pesadas, no exato instante em que o véu da noite desceu sobre o vale que ele escolhera como refúgio. O céu escuro, salpicado por pontos luminosos exibia a presença imponente de um círculo branco, radiante e perfeito.

Um longo suspiro denunciou um sono profundo, invadido por um sonho, um delírio que o transportava pelo tempo, até uma época em que sua pele era viçosa e lisa e sua mente tranqüila e sonhadora. Corria pelos campos verdejantes, a sola dos pés em contato com a terra fria, o trigo a alisar-lhe as pernas, o sopro do vento sentido um cada detalhe. Uma menina lhe sorria, e um sorriso escapou de sua boca enquanto dormia, retribuía espontaneamente, ela trazia nas mãos uma flor, de pétalas grandes em cor de ouro.

Naquele final de tarde um lamento que viria a carregar durante toda a vida, ele poderia ter feito alguma coisa, tomado alguma atitude, mas, talvez a ingenuidade, ou a confiança, ou ainda a total submissão tenham sido os ingredientes que o impeliram.

Ao cruzar a entrada do que considerava o lugar mais seguro do mundo, o único ato que conseguira fazer fora o de apertar forte a pequena mão da irmã, mas sua força não se mostrara suficiente para mantê-la ao seu lado. A perplexidade da cena o deixara completamente paralisado, o choro incontido de sua mãe, a incapacidade do pai, e a brutalidade com a qual a menina fora puxada por aquelas pessoas, lembrar da pequena se debatendo no ar fez o seu corpo se contorcer durante o sono.

Ele não compreendia o que estava acontecendo, eles falavam que alguém estava chegando, e esse alguém era por todos temido, seria o próprio emissor da desgraça na face da Terra, nesse instante ele percebeu o pânico no rosto de todos, ao olhar pela janela notou as casas fechadas.

Demorou a entender o que queriam com a sua irmã, até visualizar os instrumentos nas mãos dos invasores, antes que pudesse demonstrar qualquer reação para impedi-los, uma mão pesada atingiu o seu rosto, jogando-o ao chão. O medo se misturava à histeria, em instantes inúmeras pessoas apareceram e cercaram a casa, traziam velas acesas e lamentavam pela chegada iminente.

Debaixo da mesa de madeira, chutada instantes antes, havia um círculo riscado no assoalho, diante dos seus olhos e de maneira inexplicável, o chão cedeu e um vão se mostrava, um som perturbador e uma brisa quente era expelido por ele , ninguém seria insano o suficiente para se aproximar dele. O semblante da garotinha denunciava todo o pavor que lhe atormentava, ela não vertia lágrimas e não largava a flor que trazia nas mãos.

Lethiel, Lethiel, Lethiel, todos gritavam em uníssono, o desespero se fez presente quando viu as últimas esperanças partirem com seus pais que, de forma deliberada, se atiraram no círculo aberto. Uma forte explosão e um fenômeno que ele só viria a perceber semelhança muitos anos depois, ao assistir um documentário onde era mostrado um gêiser, aconteceram.

Todos foram ao chão, a última coisa que vira, antes de perder os sentidos, fora o corpo de sua irmã amarrado e entregue, a tristeza estampada em seus olhos negros nunca mais sairia de sua lembrança.

Quando acordou estava cercado por destroços, nenhuma edificação se mantinha de pé, sua pele queimava imensamente, não havia ninguém perto dele, nem sinal de corpos, nada. Parecia que todos haviam simplesmente desaparecido. Seu corpo estava entorpecido, mas não apresentava ferimentos, apenas uma sensação de falta de ar. O círculo ainda se mostrava aberto no solo, mas não apresentava calor ou qualquer outra manifestação. Estava totalmente só no vilarejo e assim permaneceria por toda a vida.

Sentia uma profunda angústia percorrer a sua alma ao abrir as pálpebras enrugadas. Essa sensação sempre o acometia quando despertava desse sonho recorrente.

Não, não dava mais para passar os dias daquela maneira, precisava tomar uma atitude, não havia mais como prolongar o sofrimento. Ele sabia o que deveria fazer, o problema era enfrentar o temor que preenchia o seu peito e que o levara a abandonar aquelas terras sem ao menos olhar para trás. Postergar não era mais uma opção, ele enterraria os seus fantasmas naquela noite.

A ansiedade e a urgência fizeram com que vencesse a distância em menos de seis horas, a madrugada seguia alta quando colocou os pés naquela terra maldita. Um calafrio percorreu-lhe a espinha acompanhado pelo zumbido de um sopro de vento.

No mesmo instante o motor do carro morreu, as luzes dos faróis e lanternas piscaram por um breve momento, para em seguida apagarem-se por completo.

O vilarejo não fora reconstruído, não havia vestígio dos escombros, nem uma árvore ou vegetação rasteira, nem um arbusto ou animal, nem um simples inseto, nenhuma espécie de vida brotava naquele pedaço esquecido de chão.

O imenso deserto frio e escuro se mostrava diante de seus olhos, não havia uma mera lembrança do que outrora fora aquele lugar.

Ele sabia que não poderia ser levado pela melancolia, deveria ser forte e tentar se lembrar da localização exata do que buscava. E a tarefa não se mostrara difícil, quase que de forma automática suas pernas tomaram um rumo independente de sua vontade, vozes em murmurinho martelavam em sua cabeça, uma em especial se destacava, ela era rouca e arrastada, falava em um dialeto incompreensível, onde apenas uma palavra era reconhecida por ele – Lethiel.

O ritmo das batidas de seu coração aumentava na mesma proporção do volume das vozes, aos poucos ele começou a vislumbrar uma luz tênue envolta por uma cortina de fumaça. Um medo imensurável se apoderou dele, mas era impossível retornar, seu corpo não respondia aos comandos do cérebro, ele cerrou os olhos, apertando fortemente as pálpebras, tentava trazer um pensamento bom à mente. Imaginava um campo sem fim, totalmente revestido por belos girassóis dourados, tentava trazer alegria ao coração, mas não conseguia, sua pele começou a arder, impulsionado por um filete de coragem abriu os olhos e arrependeu-se de tê-lo feito.

Estava suspenso no ar, sob seus pés estava o vazio da abertura no chão, suas pernas balançavam no espaço aberto, um calor que não queimava a pele apenas, mas que ardia também na alma, era expelido através daquele buraco. Um sucessão de imagens rolava logo abaixo de onde estava. Rostos conhecidos, lembranças passadas, vizinhos, amigos distantes, pai, mãe, o rosto inocente de sua irmã. Via também coisas horríveis, em cenários que não apresentavam nenhuma lógica, não faziam o menor sentido para os seus olhos, mas em seu interior ele sentia que eram coisas que estavam por vir. Gritou e o som que surgiu da garganta não correspondia à sua voz.

A queimação que sentia tornou-se insuportável, bolhas começaram a surgir em sua pele que esfarelava conforme estas explodiam, ouvia o som de ossos quebrando, sofria uma sucessão de espasmos.

Lentamente começou a compreender a razão de ter sido preservado, sua longevidade começava a fazer sentido, puxou do bolso da calça, que ainda resistia, uma pétala plastificada, a lembrança que guardava da irmã, tentou chorar, mas as lágrimas não vieram. Sua consciência aos poucos começou a abandoná-lo, e em poucos segundos ele não mais existia.

O silêncio voltou a reinar. Não havia mais luminosidade ou fumaça. Apenas uma coisa se movia, algo grande e negro, com um balançar de corpo a coisa se livrou dos restos das roupas que teimavam em se prender nela. O par de olhos rubros ignorou por completo a pétala do girassol. Lethiel estava livre.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 24/04/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1557432