O ÚLTIMO DESEJO DE UM CONDENADO

Durante toda a minha vida nunca fui um exemplo a ser seguido. Muitos dos que vivem como eu não tiveram a oportunidade de traçar seu próprio destino, mas, este não foi o meu caso. Nunca fui uma vítima das circunstâncias, sempre tive o total controle da minha vida e busquei os motivos que hoje me colocam nesta situação.

Não me arrependo de nada do que fiz, a convicção de meus atos pode não acompanhar a retidão do que a sociedade entende como padrão, mas, apenas atendo a uma necessidade básica que me impulsiona, e eu não posso negar que aprecio muito isso, nada me dá mais prazer do que tomar a vida de alguém, ser o senhor absoluto da vontade alheia, assistir ao último sopro da existência deixar o corpo da minha vítima.

Agora estou aqui, cercado por essas paredes circulares feitas de pedra bruta, as grades que me isolam do mundo mostraram-se totalmente intransponíveis. As celas ao lado estão vazias, ninguém para fazer companhia às últimas horas de um condenado. Não recrimino ninguém por isso, de fato, eu não me considero a pessoa mais indicada para uma conversa social.

Apesar da total escuridão, consigo perceber a silhueta do guarda que me observa de longe, no final do corredor, certamente ele desejaria estar eu outro lugar, com outra pessoa , ocupando sua mente com outros afazeres, sinto sua apreensão mesmo a essa distância.

Chamo por ele, mais de uma vez, é verdade. Sua hesitação tem razão de ser, mas sua função obriga que venha até mim, mesmo não sendo essa a ordem do seu bom senso. Sua fisionomia revela uma pessoa jovem e inexperiente, a mão esquerda no punho da arma indica a insegurança flagrante, mesmo existindo uma barreira de proteção entre nós.

Olho diretamente para ele, fato que o leva a desviar o olhar. Oculto pelas sombras peço-lhe um pouco d’água, uma gentileza para um condenado em seus últimos instantes. Sem dizer uma única palavra o jovem me dá as costas e segue em passos apressados pelo corredor. Em um primeiro momento eu desconfiei que ficaria sem o meu pedido, pois o incômodo do rapaz talvez o impedisse de regressar. No entanto, um lampejo de sorte recaiu sobre mim, provavelmente seria o último de minha existência, o garoto voltava com um caneca de metal em uma das mãos.

De arma em punho, ele ordena que eu permaneça encostado na parede rochosa, em seguida se agacha após a minha confirmação, lentamente e com a mão trêmula se aproxima da grade para deixar o recipiente.

A partir daí ele não percebeu mais nada, nem mesmo o deslocamento de ar resultante do meu movimento. Seguro o seu braço armado e com a maior facilidade quebro o osso, fazendo-o soltar o revólver e provocando um urro de dor.

Como uma sinfonia composta por um mestre, seus lamentos e gritos percorrem os meus canais auditivos quando puxo seu corpo de encontro às barras de prata da cela. Passo a minha língua áspera sobre a pele de seu pulso, causando-lhe uma sensação de dormência, como fora ingênua a minha vítima, não necessito de água, o líquido vital que o meu corpo clama é outro, o que circula livremente através de suas veias.

Cravo os meus dentes no pulso do jovem com todo o ímpeto que a situação pedia. Sinto o frescor e a força do sangue atravessando as paredes de minha garganta ressequida, percebo a vida do rapaz lentamente deixar seu corpo. Paralelamente, a grade de prata que lacrava o teto da cela é lentamente aberta, permitindo que os primeiros raios do sol de um novo dia entrem livremente até a minha última morada.

Não largo o braço do guarda, tento sorver os últimos momentos de prazer da última refeição que terei. Uma ardência insuportável atinge as minhas costas, meus gritos ecoam pelo corredor vazio, a luz inunda toda a cela, ao olhar o céu azul, deixei escapar uma lágrima negra, não pela dor lancinante da morte, mas por rever aquele que há muito tempo atrás eu escolhi esquecer. Minhas cinzas se espalham, levadas pela brisa da manhã, um preço justo pago pela realização do meu último desejo, contemplar novamente o sol.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 24/04/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1556417