O Tesouro do Morto
Foi incrível a forma como aquela propriedade perdeu vida quando o velho Donato se foi. Era como se até as plantas estivessem esquecendo a maneira correta de sugar pelas raízes os nutrientes do solo e pelas folhas a energia solar. Todos culpavam o Chico por isso, claro, ele era o único filho do velho, que o criou sozinho porque a mãe morreu no parto. Após a morte do pai, tudo que Chico fazia era sair para pescar todas as tardes no ribeirinho próximo, as vezes pescava algo, as vezes não. Sobrevivia com o ralo dinheiro que sua esposa Maria tirava trabalhando de doméstica, algo difícil naqueles velhos rincões, o que tornava o relacionamento dos dois por demais difícil em virtude dos constantes nomes de frouxo, preguiçoso e mosca morta que Chico recebia da mulher.
As histórias que contavam sobre a miséria de Chico era que seu pai, homem que diziam possuir muitas posses, juntou tudo que tinha e enterrou dentro de um pote antes de morrer, um costume muito comum naquela época. Diziam também, que como o Velho não revelou onde estava todo seu dinheiro enterrado, sua alma não havia conseguido passar para o outro mundo. Ele só encontraria a paz quando alguém desenterrasse sua botija, nome que davam ao tal pote de dinheiro.
Chico claro, não acreditava muito naquelas coisas, pelo menos, não até o que aconteceu naquele dia. Era apenas mais uma tarde de pesca, aproximava-se o cair da noite e não havia pego nem mesmo uma mísera piaba, a Maria iria ficar furiosa, a única coisa que ainda a acalmava era quando conseguia alguns peixes para o jantar. Mas o tempo estava acabando, já estava quase tudo escuro e ele teria que ir para casa. Retirou o anzol da água e ajeitava seus apetrechos quando de repente sentiu um imenso calafrio de cima a baixo da espinha, isso o paralisou completamente e por um instante ele ficou apenas ouvindo os barulhos dos grilos á beira da água, quando tal ruído foi interrompido por uma voz que, apesar de ser claramente sobrenatural, não era possível de ser confundida:
--- Chicooooooooooooooooooo.
Era seu pai, com certeza era o velho Donato. A voz de um estalo tirou-lhe toda a paralisia, e saiu correndo deixando tudo para trás.
Chegou em casa suando, branco como uma vela de sete dias.
--- Que foi isso, home, está correndo do tinhoso? --- Perguntou Maria ao ver seu estado.
--- Você não vai acreditar no que eu vi, mulher.
--- Se tu não contar num tem mesmo como acreditar, fala logo home, desembucha.
--- Meu pai, eu vi o velho na beira do ribeirinho.
--- Tu viu a alma do velho? Que ele te disse Chico?
--- Nada Maria, só ouvi chamar meu nome, sai correndo como uma sereba no rumo de casa.
--- Mas que home frouxo tu foi me dar meu Santo Antonio. Porque tu num ficou lá e ouviu o que o velho queria falar seu trouxa, ele bem queria te mostrar onde tá a botija.
--- Será Maria?
--- Será nada, era sim, amanha o senhor vai voltar naquele ribeirinho. E vai ouvir tudinho que a alma tem para falar. E não me volte aqui de mãos abanando.
O outro dia foi realmente terrível para o Chico, caminhou para o ribeirinho como um boi caminha para o abatedouro. Sua mão tremia tanto que sequer conseguia manter firme o anzol, como era de se esperar, novamente não pescou nada. Quanto mais o sol descia no horizonte, mas aumentava o medo dentro dele. Quando finalmente as sombras começaram a dominar, seu coração batia tão acelerado que parecia que iria sair pela boca. De repente, o frio, aquele mesmo frio familiar na espinha. Era como se o tempo tivesse parado novamente, nem mesmo seu coração conseguia mais ouvir. Então, o que ele mais temia aconteceu.
--- Chicoooooooooooo.
--- Chicoooooooooooo.
Ficou dividido entre o medo da alma e o medo da Maria, até que o último venceu e ele falou de forma tão enrolada que mal se conseguia distinguir:
--- F-f-a-a-a-le-e-e-e....
--- Chicooooooooooo. Você quer ficar rico Chicoooooooo?
A Maria tinha razão, conseguiu pensar ele em meio a todo aquele medo. Ouvir uma frase inteira do espírito foi demais para o coitado, a urina escorreu farta pelas pernas. Diante do seu silencio, a alma novamente balbucia:
--- Chicooooooooooo. Você quer ficar rico Chicoooooooo?
Tinha que responder, juntou todas as forças que não possuía e soltou as palavras:
--- Que-e-e-ro-o-o sim-m-m-m.
--- Quer mesmo Chicooooo?
--- Que-e-e-ro-o-o sim-m-m-m.
--- Pois vai trabalhar assim como eu trabalhei seu vagabundo.
Aquilo foi demais para a capacidade mental do Chico. Poderia agüentar qualquer coisa, menos lição de moral de um defunto. Levantou-se as pressas e saiu correndo sem olhar para trás enquanto gritava:
--- Vá você, sua alma sem-vergonha. Vá você!