Ceifador - Deuses e Elevadores

Todo tipo de situação, por mais dramático que possa parecer, possui um lado engraçado. Em alguns casos, basta um pouco de senso de humor para enxergar esse lado, em outros, é necessário uma verdadeira tendência psicopata. Não direi que o caso a seguir se enquadra na segunda opção porque isso equivaleria a chamar uma grande parcela da humanidade de psicopata, porque poucos não ririam da situação, a não ser que o morto em questão fosse alguém da sua família. Parafraseando o ditado popular, morte engraçada na família dos outros é piada.

Para mim, é claro, não existe a opção de achar algum tipo de morte extremamente deprimente, inaceitável ou revoltante. Porque se eu fosse me incomodar com essas coisas acabaria chegando ao ponto de tentar me matar, e, garanto com toda certeza, que isso seria uma tarefa realmente complicada.

Tudo se passou em uma repartição pública, mas precisamente, uma repartição do poder judiciário. Como sabemos, a figura central do poder judiciário são os juízes, e reza um velho ditado que uma parte deles acha que é Deus e a outra parte tem certeza. Não tenho certeza sobre a veracidade disso, porque nunca perscrutei a mente de todos eles, e jamais o faria apenas para responder a esta questão, porque a considero absolutamente irrelevante. Enfim, o que sei é que todos os juízes sabem que as pessoas os respeitam, pois para desempenhar uma nobre função a lei lhes concede uma série de garantias que alguns deles usam para fins não tão nobres.

A repartição em questão possuía diversos tipos de funcionários, e também diversos tipos de juízes. Existiam no prédio dois elevadores. Um deles era destinado a uso comum de funcionários e cidadãos e o outro de exclusivo uso dos juízes, o que não queria dizer muita coisa porque as pessoas continuavam usando-o como se fosse de uso comum, o que certamente não costumava comprometer o trabalho de nenhum juiz, porque nunca nenhum deles reclamara, até aquele dia.

O juiz Antonio Batalha saiu de seu escritório para fazer uma coisa qualquer em outro andar do edifício, ele não notou, mas eu estava seguindo-o por toda parte. Apesar de ser de meia idade, não fazia muito tempo que tinha a função de magistrado, mas vinha de família tradicional nesse meio, o que o fazia agir ás vezes como se o cargo tivesse sido recebido por herança. Ele saiu andando pelo longo corredor dirigindo-se ao elevador mais próximo, conduzindo seu pequeno corpo que mais parecia um boneco de marionete vestido de terno e gravata, e só não era confundido com um porque lhe faltavam os fios e certamente ele não agia como alguém que era controlado por outros.

Ele era uma pessoa divertida, talvez provocasse algumas risadas contidas assistir a passagens de sua vida. Mas com certeza nada que se compare a sua morte. Apertou ele o botão do elevador, e postou-se elegantemente defronte o mesmo esperando que as portas abrissem. Qual não foi sua surpresa, ao ver que quando abriu, oito rostos de funcionários o olhavam de dentro do mesmo.

Foram alguns segundos de suspense. De um lado as oito pessoas com as porta do elevador aberta não sabendo o que fazer. Do outro um juiz com uma cara de poucos amigos olhando para as mesmas como se elas estivessem com um odor incrivelmente desagradável.

Coube ao Juiz Antonio quebrar o clima, sua expressão desconfiada se transformou em questionadora, que por sua vez, se transformou em uma indignada, que também veio a se transformar, dessa vez em uma frase extremamente agressiva:

--- O que vocês estão fazendo nesse elevador? Não sabem que ele não é para vocês? Pode sair todo mundo agora! AGORA!

A expressão das pessoas do lado de dentro também viram-se obrigadas a mudar sua expressão. De surpresa para momentaneamente desesperadas, todos de abalaram para fora do elevador imediatamente, temendo que ao ficar pudessem sofrer alguma conseqüência mais severa.

O juiz, ao ver todos fora, fechou ainda mais a cara e entrou no elevador. Assim que a porta fechou-se a sua frente, ele ouviu algo que realmente não esperava ouvir, a voz de outra pessoa:

--- Sobe ou desce? --- Era eu, mas uma vez tentando fazer um contato amigável antes de encaminhar um pré defunto para o outro lado.

--- O que? Como você ousou permanecer aqui dentro? Você está em maus lençóis seu moleque? Qual sua função aqui? --- Seu rosto ficou repentinamente rubro de cólera, e isso me fez soltar uma leve risada que o fez ficar mais furioso ainda.

--- Vou lhe dar voz de prisão, isso é desacato.

--- Calma, Doutor, não precisa chegar a esses extremos, eu vim aqui apenas pegar uma encomenda.

--- Não perguntei o que você veio fazer, deve ser um estagiário ignorante, mas nem mesmo está vestido de forma decente, aguarde o tempo até essa porta abrir, é o tempo que lhe resta de liberdade.

--- Sério? Isso me deixa muito feliz.

--- Feliz? Feliz? Porque feliz? Esta zombando com a minha cara?

--- Não Doutor, não estou zombando, fico realmente feliz, porque se o tempo que me resta de liberdade é até abrir a porta, significa que serei livre para sempre, porque esta porta não tornará a abrir.

Minhas palavras pela primeira vez deixaram-no na defensiva, ele me encarou com um olhar interrogador:

--- Como assim? Você parece o drogado, por acaso vai me atacar?

--- Não doutor --- o tranqüilizei --- Eu não seria capaz de uma brutalidade dessas. Apenas vou esperar até o elevador cair. A lei da gravidade fará todo o trabalho sujo por mim.

---- Elevador cair? Isso por acaso é um atentado?

--- Você se acha muito importante para achar que fariam um atentado para te matar não é? Vou te contar o que vai acontecer, lembra que perguntei sobe ou desce? Eu não estava sendo sincero, porque não há opções, o elevador irá descer de qualquer forma, e isso será em uma velocidade não muito recomendada para portadores de problemas cardíacos ou qualquer outro ser humano que queira manter todas as partes do corpo nos devidos lugares.

Ele dessa vez olhou realmente assustado, devia ser algum presságio de morte que acabara de sentir. Chegou a abrir a boca para falar algo mas não houve tempo de soltar nenhuma sílaba. O elevador despencou no fosso direto do 14 andar. Não durou muito tempo, eu nem mesmo senti direito a queda, mas o Doutor realmente sentiu. Minutos depois ele acorda e eu o puxo do que sobrou do seu corpo.

--- Bem vindo à morte, Doutor Batalha.

--- Morte? O que aconteceu? Fale seu moleque, ainda posso te prender.

--- Na verdade você não pode não. Porque você está morto, e seu cargo que eu saiba é automaticamente desocupado com a morte, assim como todo e qualquer cargo do mundo material, a partir do exato momento em que você morre, passa a ser uma simples alma como outra qualquer. Sei que não está entendendo absolutamente nada, isso vem com o tempo, realmente não tenho tempo a perder, devemos ir agora.

Após o impacto da minha torrente de palavras ele parecia bem mais calmo, apesar de ainda não totalmente convencido do que houve.

--- Ir para onde? Para onde vou? Serei julgado?

--- Não sei se você vai ser julgado, mas advirto que as coisas não devem ser das mais fáceis. Me diz uma coisa, você é dos juízes que acham que são deuses ou dos que tem certeza?

--- Porque?

--- Porque se você for dos que acham, é bem simples, acabou de constatar que o que achava era errado e pode seguir seu caminho mas em paz consigo mesmo.

--- E se eu for do outro tipo?

--- Bem, se você for do tipo que tem certeza, está realmente ferrado, porque aqui é bem diferente do outro lado. Aqui você não estará cercado de tolos para apoiar seu delírio.

Ian Morais
Enviado por Ian Morais em 18/04/2009
Reeditado em 18/04/2009
Código do texto: T1545745
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