A ÚLTIMA DANÇA

Sinto saudades daquele tempo. Inúmeras pessoas enchiam estes salões, deslizavam leves como o vento sobre a madeira reluzente do assoalho, traziam vida e brilho a essa edificação. Muitas dessas pessoas, em um primeiro momento, foram atraídas pela beleza exótica da professora de dança, eu me lembro bem da habilidade sedutora daquela mulher, irradiava uma atração irresistível, cativava todos aqueles que assistiam os movimentos marcantes, porém suaves, de seus passos, giros e rodopios, sua especialidade, o tango, fazia palpitar mais forte o coração dos pobres mortais do bairro da Consolação.

Posso afirmar, com todas as letras, não era apenas uma academia de dança de salão a atividade daquela instituição, era uma razão de vida.

Hoje estou aqui, diante dos escombros desse prédio, meu coração se enche de tristeza ao comparar o antes e o depois. Meus olhos cansados insistem em me mostrar o que a minha memória teimosa quer negar.

A mulher que ministrava as aulas de forma incomparável, simplesmente desistira de seu sonho, e partira para sempre, consumida pela desolação e amargura. Não a culpo, ao ver o líquido de tonalidade viva como o seu nome, espalhado no piso, manchando o local onde apenas a alegria e a arte deveriam estar presentes, não agüentou, foi demais para ela. A pessoa que ali tombara era de especial querer de sua parte, e esse fato contribuiu, e muito, para o seu total desapego à vida.

Pelo menos aqui, nunca mais chegou nenhuma notícia de Rubra, para nossa infelicidade.

Eu ainda insisto em vir até este local, talvez eu deseje encontrar uma certeza, uma prova de que a loucura não me dominou naquela noite.

Na mesma noite em que Flora se despediu, ou melhor, foi retirada da vida em pleno salão de dança. Eu estava no andar superior, a bebida havia sido a minha companhia durante todo aquele dia, temos o péssimo hábito de nos apoiarmos em tais válvulas de escape para amenizar sofrimentos ou decepções. Eu, como vigia noturno do prédio, possuía acesso irrestrito às dependências da academia, a qual, terminado o horário das aulas, forneceria o sossego necessário para a minha depressão.

No entanto, a quietude fora quebrada algumas horas depois por um casal familiar. A mulher acionou o aparelho de som e se posicionou no meio do salão, então, o homem, seu marido, correu em seu encontro e a convidou para uma dança.

Minha visão estava turva e a consciência por um fio, mas, ainda assim, julgo-me capaz de descrever o que vi. Duas pessoas executando algo que eu não classificaria como dança, era algo maior, algo mais profundo, uma total entrega de ambas as partes, uma mescla quase perfeita. A música se espalhava pelo ar, trazendo a alegria para os recém-casados. Cinco meses haviam se passado desde que contraíram o matrimônio, a academia e sua proprietária foram de vital importância para que isso fosse possível. Certamente este fora o motivo que conduzira Flora e Alfredo de volta àquele local. Gratidão, saudosismo e desejo.

Tudo estaria perfeito, se não fosse aquele leve brilho que começou a descer do teto, o estranho fenômeno passou bem perto de onde eu estava, esfreguei meus olhos para certificar-me de que não era uma ilusão ou alucinação.

A névoa envolveu o homem e, subitamente, desapareceu, o mais incrível foi que nenhum dos dois a perceberam.

Imediatamente Alfredo foi ao chão e começou a se contorcer, Flora se abaixou, procurando entender o que acontecia. O que veio a seguir foi a coisa mais estranha que testemunhei em toda a minha vida. O homem ficou de pé, sua fisionomia estava diferente, disforme, parecia outra pessoa, alguém que eu não conhecia, mas que Flora deveria se lembrar, pois ao visualizar o rosto do marido, suas pernas recuaram dois passos. Eu tentei dizer alguma coisa, mas apenas sons disformes e inaudíveis saíram de minha boca.

A mulher chamou o marido pelo nome de Agenor, ao que ele lhe respondeu. O homem falava com uma voz estranha, gutural, exigia explicações por ela tê-lo esquecido. Flora dizia que não, que nunca o esquecera, mas que ele havia morrido, e que ela merecia a felicidade que lhe era oferecida. Ao ouvir isso, o homem possuído pelo espírito de outro, retirou do bolso um molho de chaves, apertando fortemente uma delas, usou-a como se fosse o objeto mais afiado do mundo, e para isso não tenho explicação.

Fiz coro ao primeiro grito da mulher, mas não consegui voz pra acompanhar-lhe nos demais. A cada golpe desferido pelo marido, a vida da mulher se esvaía, sendo despejada ao solo através do líquido escarlate que vertia em profusão. Não sei se foi por desespero, por medo, ou simplesmente por covardia, mas decidi fugir dali, não me importando com o fato de minhas pernas não me obedecerem como deveriam. Antes de deixar o local, ainda pude presenciar o golpe derradeiro, e neste momento, nossos olhares se cruzaram, e eu notei todo o rancor que preenchia aquele ser.

No dia seguinte, encontraram o corpo da mulher, seu marido estava desacordado ao seu lado. Fora preso, julgado e condenado, não tivera a menor chance de defesa. Quanto a mim, limitei-me a dizer, em meu depoimento, que nada vi naquela noite. Não haveria jeito de ser diferente, quem acreditaria em minhas palavras? Sei que fui o mais execrável dos seres humanos por esse ato, mas eu não desejava me complicar.

Agora estou novamente aqui, caminhando pelas ruínas de um passado esquecido.

Sinto um calafrio me percorrer a espinha, apresso o passo em direção à saída. Lacrada. Como pode? Esse som...valsa? Não, tango! Não pode ser...o que é aquilo? Essa névoa verde...Agenor...Não! Flora?!? Isso só pode ser provocação...

* Este conto foi inspirado nas personagens e no ambiente do texto "Provocação" do meu amigo e escritor Álvaro Luís " O revolucionário do Planalto Central", a ele o meu muito obrigado pela força e inspiração.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 11/04/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1533190
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