Sra. Nimbus

Sra. Nimbus

Já ouvi várias histórias sobre fantasmas e imagino que todos já tenham lido ou ouvido falar de um: Sombras em um canto; olhos escuros, roupas ou cabelos negros. Todas as histórias de fantasmas que eu já escutara envolviam escuridão – só posso crer que isso atice mais os sentidos das pessoas. Mas a primeira vez que vi um realmente, era claro como um raio de sol.

Estava de férias na casa de praia dos meus pais. Tinha quase 20 anos – não faz muio tempo -, mas não consigo lembrar o nome do lugar (ultimamente, todas as minhas memórias parecem um livro após enfrentar um temporal: Posso entender algumas partes, mas há trechos em que está tudo borrado). De qualquer forma, chovia no dia em questão e eu, inconformado de ficar em casa durante as férias, fui dar uma volta na chuva.

Passava um pouco da hora do almoço, mas uma grande nuvem preta escurecia o dia. Ao longe, podia-se ver riscos azuis de céu e, quase na linha do horizonte, não havia mais nuvens; a tempestade já terminaria, então. Eu tirei meus óculos – Ah sim, eu era um adolescente magrelo e de óculos – para enxugá-los e fiquei contemplando a rua vazia, as poças se enchendo e sentindo a chuva no meu rosto.

Um lindo raio púrpura riscou o céu ao longe e, alguns segundos depois, um forte trovão estremeceu a rua. Eu gritei de susto, mas não pelo barulho. Com o raio, achei ter visto alguém subindo a rua do outro lado do riacho que a dividia em duas – mão e contra-mão para os carros. Recoloquei meus óculos, que estavam ainda mais molhados, e tentei acalmar meu estômago; não havia ninguém lá.

Outro relâmpago, outro estrondo e uma moça surgiu, do outro lado da rua, caminhando ao longo do riacho. Seu vestido e seus cabelos eram cinzas e molhados como o céu e ela andava tranquilamente, com a cabeça voltada para mim. Seus olhos denunciaram que eu deveria ficar atento; eles brilhavam como os relâmpagos e davam ao mundo ao redor um tom ainda mais cinza, mais sem vida.

Os cachorros com certeza a viram; ficaram latindo, loucos, enfrentando a chuva. Até eu senti vontade de latir para ela, mas estava sem ação. Sabe quando, em um filme de terror, o monstro finalmente surge, mas a mocinha fica estática? E você grita “Sai daí! Corre!”? Pois eu era a mocinha. A menina parou com seus olhos de luz bem em frente a mim e se virou de frente.

Eu via, com o canto dos olhos, relâmpagos atravessando o céu, mas o brilho da garota os sobrepujava. Ela pôs um pé para frente e eu tive o instinto de impedi-la, pedir que parasse ou cairia no rio, mas ela colocou um pé no ar, como se houvesse uma ponte ali, e veio para mim. Vinha devagar e cambaleava para os lados, parecendo esforçar-se para não cair de sua pequena ponte invisível. Quando chegou perto o bastante, pude ver a pele de seu rosto – cinza como o cabelo, o vestido e o céu – repuxada de forma nada simpática em um sorriso que revelava dentes amarelos e desalinhados.

Dei graças quando minhas pernas voltaram a me ouvir e pude correr para casa. Antes de entrar, dei uma olhada e vi a garota parada, de volta do outro lado do rio e ainda com seu sorriso débil. Voei pelo quintal e dei um encontrão em minha mãe na porta de casa:

-- Está encharcado!

-- Acho que vi um fantasma!

Ela deu tanta atenção ao meu comentário quanto eu ao dela. Fui para dentro.

Choveu o resto do dia, mas eu esqueci sobre a garota até dormir, quando sonhei com ela na porta do meu quarto. No sonho, seus olhos brilhavam forte, mas não iluminavam a penumbra aonde eu dormia; seu rosto, entretanto, estava encoberto pela luz.

No dia seguinte, continuou chovendo e eu fiquei em casa, no meu quarto, com medo de ir lá fora e ver o sorriso amarelo por entre relâmpagos.

No quarto dia consecutivo de tempestade, decidimos ir embora – meus pais decidiram; eu apenas apoiei com fervor. Dentro do carro, meu pai pronto para girar a ignição e iniciar a viagem, eu olhei distraído para o lado de fora e lá estava ela, com um pequeno sorriso – assustador em uma aparente tentativa de ser simpático – a centímetros do vidro. Com o susto, saltei para o outro lado do banco, quase sentando no colo da minha irmã. Ela me xingou e eu devo ter me desculpado. Ou xingado de volta, não me lembro, mas, ao olhar de volta para fora, só havia chuva.

Passei o resto da viagem fitando meus pés, mas, às vezes, com o canto dos olhos, via (ou achava ver) um rosto sorridente na janela.

Chegou uma hora, já perto do Rio de Janeiro, que a chuva cessou e eu achei seguro levantar a cabeça. A janela estava limpa: Nada de água, nada de meninas.

Meses se passaram até a próxima chuva e eu já quase havia me convencido de que tivera uma alucinação. Mas, assim que o primeiro trovão gemeu ao longe, eu vi o rosto cinzento de cabelos desgrenhados sorrindo para mim do lado de fora. Gritei. Então a compreensão bateu em mim e percebi que não a via do lado de fora, mas o reflexo dela em minha janela. Caí da cadeira em frente ao computador com outro grito, mais curto agora. Dignidade.

Ela caminhou devagar, tombando o corpo para os lados, como se andasse na corda bamba. Seu vestido era mais branco que cinza e seus olhos não brilhavam tanto quanto da outra vez, mas emitiam algum brilho. O sorriso torto e meio alucinado estava lá. Ela se inclinou com uma reverência até quase termos os rostos alinhados. Pensei em gritar mais uma vezinha, mas a menina ergueu uma mão aberta para mim. Achei que me mandasse parar, mas ela levou a mão de um lado para o outro em lentos e largos acenos. Eu acompanhei sua mão com os olhos e foi nessa hora que minha mãe apareceu no quarto:

-- Tudo bem? - A menina levantou-se e foi na direção dela enquanto falava. - Ouvimos você gritar. Está um pouco tarde.

Deitado no chão, eu observei a menina chegar o rosto bem perto do da minha mãe, ficando na ponta dos pés; e, ao ver que não havia reação, ela virou-se de volta para mim, segurando as mãos na frente do vestido. Foi um gesto tão suave, uma figura tão doce – apesar do sorriso – que meu medo foi embora:

-- Caí. Achei que tivesse me machucado, mas tô legal.

Minha mãe foi embora e fiquei sozinho com ... aquilo. Não posso crer que seja um fantasma e nem um anjo. É gentil demais para ser um e muito bizarro para ser outro. Mas alguns anos se passaram desde o dia em que compreendi o que queria.

A chamo de Senhora Nimbus. É nova para ser chamada de senhora e nimbus não é nuvem de tempestade, mas acho que combina bem. Ela está ao meu lado agora; sempre que chove, ela vem.

Agora que lhe contei sua história, ela provavelmente te visitará também; então, no próximo dia chuvoso, fique atento, procure ao redor, e você talvez enxergue uma menininha de vestido branco e um largo sorriso, ansiosa por atenção, ansiosa por ser vista.

Leo Pessoa
Enviado por Leo Pessoa em 09/04/2009
Código do texto: T1530585
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