JUSTINE
Seus olhos permaneciam atentos a cada passo do inimigo. Nenhum movimento poderia passar sem ser notado, aguardava uma brecha, e aquela desatenção era tudo o que ele havia buscado em sua vigília constante. Ele sabia que seria questão de tempo até obter uma oportunidade, e esta aparecera justamente no meio daquele festim macabro.
Muitos poderiam julgá-lo por ter permanecido impassível diante da atrocidade que se abatera naquele campus estudantil. Mas, ele tinha plena consciência de que não poderia ser afoito, não poderia cometer o mesmo erro do inimigo. Pois este, em busca de um poder imediato, abrira mão de um pré-requisito essencial.
Um guerreiro como ele, cuja fama fora alicerçada através das carcaças ocas de cada vil criatura que abatera em sua escalada, saberia tirar proveito desta falha para reverter a situação a favor dos seus, e principalmente, daqueles que deveria proteger.
É um fato inegável, os que caminham livres se mostram completamente alheios à presença daqueles que os espreitam. Os que empreendem uma busca sem fim pelos nutrientes necessários à manutenção da essência de seu existir. Para estes, essa eterna procura não é uma tarefa executada apenas pelas leis que regem a fisiologia. Não, é muito mais do que isso, eles encontram prazer na ação que praticam. Espalhar a pestilência é algo usual para sua espécie, desde os tempos longínquos, os quais a nossa memória histórica não consegue atingir.
Durante todo o inimaginável período no qual essa guerra se desenrola, o equilíbrio sempre fora uma constante. Exceto, nos raros momentos em que um lado ou outro exerceu uma maior influência no campo de batalha. Para infelicidade dos viventes neste perímetro atual, o lado dos que se ocultam nas sombras aplica tal superioridade, talvez ajudado pela aura negra que reveste o mundo contemporâneo.
O guerreiro de pele prateada mantém suas atenções para a nova partidária da ordem inferior. A lua em sua plenitude colaborou na iniciação de sua nova condição de vida. Mas, tal conversão fora um passo precipitado do inimigo. Ele não calculara o risco em trazer para si, alguém cujos laços ao antigo estilo ainda eram demasiadamente significativos.
Longos dias ela teria pela frente, até o próximo plenilúnio, para que sua existência estivesse completa. O guerreiro não aguardaria todo esse tempo para investir contra esse ponto fraco.
Justine, esse costumava ser o nome da criatura, já não exibia a beleza exuberante do dia anterior. Seus olhos outrora negros e amendoados, não passavam agora de manchas esbranquiçadas e gosmentas. Sua pele, em nada lembrava a maciez alva que já ostentara. Espinhos afiados se mostravam onde antes era possível notar os fios escorridos e vistosos de seus cabelos. As placas duras e salientes exibiam um movimento cadenciado e intimidador. Seu corpo se locomovia de forma oculta, sustentado em quatro patas.
O guerreiro entendia o que se passava com a garota no estado em que estava. A dor insuportável que deveria estar sentindo, a ardência que lhe impunha ordens, a necessidade e o desejo que dominavam o seu raciocínio. Tudo isso a levaria a um objetivo traçado e nada poderia detê-la, a não ser, ele.
Justine havia se distanciado da Universidade. O local já não era propício para que pudesse agir. Um sem número de autoridades a obrigava a mudar de palco. Observando-a do alto, seguia o guerreiro de plumas prateadas, se ela fosse um pouco mais experiente, poderia ser capaz de notar sua presença.
O olfato sensível da garota percebeu um odor que se destacava entre os demais. Um suave aroma adocicado lhe aflorou os instintos. Uma sensação de urgência lhe acometeu, seu corpo estremeceu e a saliva surgiu de forma abundante em sua boca até então ressequida.
Um incauto transeunte caminhava apressado por entre as árvores daquele parque, no intuito de ganhar tempo. Se ele soubesse o que o aguardava, certamente teria ficado feliz em perder mais alguns minutos no que seria a rota usual. O incidente no campus era algo ignorado para ele até então. Logo, a razão da desgraça daquelas pessoas seria revelada a ele, e da pior forma possível.
Justine ainda não havia desenvolvido toda a habilidade que era peculiar aos da sua nova espécie, mas nem por isso fora menos eficiente.
Dentes, garras, fúria e sangue. Fome, sede, desejo e prazer. A mistura resultou no extermínio da carne. Um novo tom de cor se espalhou sobre o relvado. No entanto, a criatura buscava algo mais, algo que nos preenche e impulsiona, algo que nos diferencia. Ela queria a essência de nosso existir. Desejava aquilo que, na ausência de uma melhor definição, conhecemos como alma. Os hormônios de seu novo corpo ditavam as regras.
Uma flecha reluzente desceu do céu. Labaredas surgiram provenientes de seus braços. Não eram espadas o que portava, como muitos imaginam. Em seu corpo estavam inseridas armas muito mais eficientes, prontas para rasgar a pele e a carne das criaturas profanas.
Justine não esperava ser interrompida, na verdade, ela não sabia como agir. A seu favor existia apenas sua cólera incontida.
Saltou com ímpeto na direção daquele que a ameaçava, o guerreiro fora surpreendido por aquele ato desesperado de sua inimiga. As garras curvas e enegrecidas da garota rasgaram a pele prateada, fazendo brotar o sangue da mesma tonalidade. Em resposta, a criatura recebeu um golpe potente no tórax, o qual a levou ao chão. Fazendo uso de seus membros emplumados, o guerreiro saltou de forma veloz e decisiva sobre o inimigo caído. O poder das chamas não só queimaram, mas também abriram fendas na carapaça de Justine. A dor causada pelo fogo azulado trazia dúvidas à cabeça da garota, e era justamente isso o que buscava o guerreiro. Um ponto que fizesse ruir a fortaleza inimiga.
- Desista! Liberte-se desse mal, menina! Você ainda tem tempo de encontrar paz! Ainda te resta salvação.
O guerreiro alado exercia mais pressão enquanto falava. A criatura emitia sons indecifráveis.
- Desista! Rejeite essa substância que corre em suas veias! Esta não é sua natureza!
O corpo de Justine parecia se dilatar enquanto recebia os ataques. Um líquido escuro começou a brotar das emendas de sua nova pele, seus olhos ameaçaram saltar das órbitas. Suas forças já estavam no limite, o guerreiro dominado pela fervor que acomete os de sua espécie, permaneceu indiferente ao inevitável. Um ruído semelhante ao de vidro quebrando se espalhou. A vida da criatura fora ceifada pelo poder das chamas. Não tivera forças para resistir em sua nova condição, nem vontade suficiente para querer regressar.
A desolação tomou conta do soldado de prata, sentira que sua investida fora em vão. O único conforto que encontrava era saber que, ao menos, o exército inimigo perdera um combatente, já que a salvação fora impossível e o equilíbrio improvável.
Já se preparava para retornar a seu posto de observação, quando algo lhe chamou a atenção. Alguma coisa começou a se mover, misturada aos restos mortais da criatura. Seus olhos buscaram um melhor ângulo para tentar identificar o que acontecia. No entanto, um súbito deslocamento de ar fora a única coisa que pôde perceber, para sua infelicidade, não a tempo suficiente.
A cabeça reluzente caiu para um lado e o corpo alado para outro. A criatura líder, aquela que atraíra Justine, exibia as garras afiadas como lâminas, manchadas pelo sangue prateado do guerreiro.
Revestido pelo júbilo, o ser se abaixou até o corpo da garota, revirou a carcaça e recolheu aquilo que procurava. Suas mãos animalescas traziam uma criatura semelhante a ele próprio, de proporções mais reduzidas, mas que crescia de forma acelerada. O pequeno ser viria a ser o herdeiro do clã. A jovem servira bem a seu propósito.
- Criatura tola – disse para si mesmo – achava-se tão superior e não percebeu uma armadilha tão óbvia - desdenhava do inimigo abatido.
Seu plano mostrara-se perfeito. Desde o início ele sabia que o soldado de prata tentaria persuadir a novata. Com isso, usando de toda sua perspicácia, arquitetara um plano sórdido onde usaria a jovem para conseguir atingir dois objetivos: aniquilar um valente combatente inimigo e dar continuidade a sua linhagem.
- Uma nova ordem surgirá – gritava a criatura, com os braços erguidos.
Um baque seco, olhou para seu tórax, o líquido negro e pegajoso escorria. Dobrou os joelhos e caiu no chão. A cauda com ponta de seta havia atravessado seu corpo, tirando-lhe a vida. O ser que apresentava uma fisionomia tão semelhante a dele, e que agora já estava plenamente desenvolvido, limpava o sangue que maculava o revestimento de seu corpo. Disse em voz alta, como se ali existisse alguém para ouvi-lo:
- É, meu pai, uma nova ordem surgirá e eu estarei no comando.
Rumou para a escuridão, teria muito trabalho a fazer.
* Este texto é uma continuação do brilhante conto do meu amigo e escritor Victor Meloni, denominado "Hormônio". Se você ainda não o leu, não perca tempo, você não irá se arrepender. Um abraço,