TERROR, SOB TODAS AS FORMAS...
Sentenças zuniam pela cabeça. As aulas de geografia de outrora se misturavam com as de filosofia e Processo Civil. Aquilo não era possível. Seria sonho? Delírio ou flash-back? Só Jesus! Um ruído mais forte o tirou da cama e enquanto calçava suas havaianas foi surpreendido pelo cano gelado de um revólver. Senta e fica quietinho, nenhum piu! Sentiu os pelos arrepiarem, a garganta secar e as pernas imediatamente principiaram a tremer. Urinou ali mesmo, sentado à beira da cama e junto com o calor do líquido, sentiu o ardido de um tabefe bem dado que lhe zuniu a orelha. Começou a ouvir os gritos da empregada. Sua reação instantânea de se mover foi contida por novo safanão acompanhado de uma coronhada. Desmaiou e voltou para as aulas de geografia. Horas depois, ou terão sido dias, acordou em uma cama de hospital e a primeira imagem que viu foi sua noiva chorosa segurando sua mão. Quando o viu de olho aberto, a morena desatou a chorar soluçando. Chamaram o médico de plantão, que como de costume, não compareceu e coube à enfermeira, brusca e mal humorada, informa-lhe seu estado e a data do dia. A noiva mal podia falar, mas teve suficiente discernimento para usar o celular e chamar o amigo advogado. Poucas horas depois, uma pequena reunião lhe pôs a par dos acontecimentos. Ia ser indiciado pelo estupro seguido de morte daquela que a serviu durante anos. Josefina tinha sido empregada da mãe dele e desde que se conhecia por gente ela lhe fazia as vontades. Só podia ser brincadeira, aliás de muito mau gosto, imputarem-lhe crime tão violento, sendo ele um notório advogado pacifista. As circunstâncias todas eram desfavoráveis. Ninguém tinha visto nada, e as câmeras de segurança do prédio não tinham imagens que pudessem corroborar a sua versão dos fatos. Depois de depor, ainda na cama do hospital sua situação ficou ainda mais complicada. Nenhuma marca havia da violência alegada, nem dos tapas muito menos da coronhada. Foi encontrado desmaiado no centro da sala e a arma do crime, uma faca de cozinha ensangüentada, estava por perto e continha suas digitais. Um preservativo com seu DNA foi encontrado no cesto de lixo do banheiro. A casa caiu, ouviu do delegado enquanto este deixava seu quarto do hospital após ter-lhe colocado uma algema cuja outra ponta estava presa à cama. A família da noiva, aos poucos foi convencendo a moça de que era melhor ela começar a dar seu apoio à distância se abstendo de ir tanto ao hospital. O caso caiu na imprensa, que à sua maneira, transformou-o num grande circo. Entrevistas, furos de reportagem, antecipação do resultado dos laudos, especulações, depoimentos de peritos de ocasião invadiram a programação dos meios de comunicação, ocupando espaços nobres na televisão, no rádio e nos principais jornais. Grupos de discussão se formaram na internet e comunidades foram montadas em nome da Josefina. Acabou julgado pela opinião pública, sem direito à defesa e uma multidão tentou invadir o hospital com o intuito de linchá-lo. Foi preciso reforço policial e a sua remoção para um hospital penitenciário. O inquérito foi concluído em tempo recorde e o promotor apressou-se em oferecer a denúncia, que as más línguas dizem, já estava pronta antes mesmo do respectivo inquérito. Os dias foram passando, seguidos das semanas e meses que um processo desse tipo demora para seguir seu caminho. Nesse meio tempo, novos casos ganharam o interesse do público, guiado como gado pela imprensa. Os companheiros de cadeia, no entanto, entenderam ser o crime por demais bárbaro, ainda por cima por ter sido perpetrado contra uma senhora indefesa e slogans foram pichados pelos muros e celas dando conta do destino dele. Não tardou e a ameaça se tornou realidade, quando numa manhã de domingo o encontraram esquartejado em sua cela. Uma pequena nota de pé de página deu conta do fato para que a opinião pública não pudesse se dizer desinformada. Neste dia, o vizinho do andar de cima entendeu que a impunidade era realmente uma das componentes básicas do Direito Penal Brasileiro. Afinal, fora ele que arquitetara tudo aquilo e levara a cabo com os mínimos detalhes executados dentro do planejado. Primeiro obteve a cópia da chave, sem muito esforço pois o dono daquele apartamento e sua empregada tinham o hábito ingênuo de deixar uma chave sempre sob o tapete da porta. Depois estudou os hábitos da dupla e anotou detalhadamente horários e rotinas. Bastava executar o plano e para isso contou com a sorte de na noite anterior a noiva ter estado por lá (o que para nós explica o preservativo). Primeiro atacou a empregada, amarrando e amordaçando-a. Depois foi se certificar de que o dono do apartamento não interferiria na sua busca por jóias e dólares. Quando se preparava para neutralizá-lo, Josefina conseguiu se livra da mordaça e principiou a gritar. Neste instante, golpeou-o com a coronha da arma e o que era pra ser um simples roubo, transformou-se em festim diabólico. Foi dar uns safanões na Josefina e esta caiu de forma que passou a ser chutada e espancada. Suas vestes foram rasgadas com o furor cego do qual o criminoso se viu acometido. Daí para o estupro e os golpes finais com a faca da cozinha, não precisou de muito. É claro que este tipo de coisa não dura muito tempo, pois o vizinho perpetrou outro crime dentro de poucos meses, no mesmo prédio. Mas somente quando o terceiro estupro seguido de morte foi cometido, coisa de um ano e meio após os fatos aqui narrados, é que a polícia e a imprensa passaram a desconfiar de que somente um morador do prédio seria capaz de executar estes crimes, na medida em que a s câmeras de segurança nunca tinham nada para mostrar. A esta altura do campeonato, ninguém mais se importava com o destino da fama do Dr. Arnaldo, há muito comido pelos vermes. O criminoso, atento ao noticiário e à movimentação dos repórteres, tratou de se mudar, inclusive de cidade. Principiou seu jogo macabro em outro prédio de modo que apenas vinte anos depois do primeiro crime, um estudioso de estatísticas forenses e policiais estabeleceu uma lógica entre os diversos fatos. Passaram-se mais doze anos até que um padrão pudesse ser identificado, estabelecendo a correlação entre os crimes e os moradores novos dos respectivos edifícios. O caso foi tese de doutorado em psicologia forense e depois de muito estudo e cruzamento de informações chegou-se ao verdadeiro criminoso cujo endereço, a esta altura dos acontecimentos, já era o cemitério do Araçá.