o abrigo

Autor: Fellipe Cavalcanti Freitas

Nós já estávamos lá há alguns dias. Nossos suprimentos estavam praticamente esgotados. Um único garrafão de 20l de água era o que tínhamos . Comida? Não mais que 20 pães, uma barra de queijo e 2 pacotes de biscoitos. Dormíamos mal em nosso esconderijo, sempre nos revezando em turnos de 2 horas para cada. Afinal, devíamos estar atentos à única porta de entrada e saída daquele porão frio e escuro em que nos encontrávamos Uma porta cuidadosamente reforçada com tábuas e pregos encontrados no próprio porão. Lá fora, ouvia- se apenas os passos... e inconstâncias sonoras; como que lamentos vindos de gargantas sem cordas vocais. Às vezes nos parecia familiar certos fonemas... palavras. Como podia isso estar acontecendo?! Como aquelas coisas surgiram? Por que surgiram?

Éramos em quatro, presos em nosso próprio abrigo. Eu, considerado líder pelos outros. Meu primo Lucas, excelente pessoa; formado em Jornalismo, dado a bebedeiras, surf e belas mulheres. Meu outro primo, Cláudio, era um cara mais sério que Lucas, porém igualmente excelente. Formado em Física, já cursando um doutorado, talvez fosse o mais inteligente de nós. Por último, meu irmão, Miro; não há palavras para descrever tamanho pessimismo e ironia que habita aquela mente perturbada. Somente por causa dele ainda estávamos no abrigo, pois toda vez que planejávamos uma fuga ele nos aconselhava o contrário. De qualquer modo nos dávamos muito bem.

-- Temos que sair daqui! Em pouco tempo não teremos o que beber ou comer —disse Lucas, com uma certa firmeza em sua voz.

-- Concordo — retruquei. — Ou saímos agora ou eles darão um jeito de entrar.

-- É? E como vamos fazer isso? Ao que me recordo, não aprendi a desaparecer e aparecer em outro canto — ironizou meu irmão com um sorriso sarcástico. Vamos ficar por aqui. Uma hora, essas coisas vão embora. Aí a gente sai — completou ele, voltando para os papelões onde dormíamos.

-- Deixa de ser burro, Miro! Eles têm todo o tempo do mundo. Nós, não!—ao falar isso os três me fitaram, apreensivos.

-- Beto está certo, Miro — disse Cláudio, após alguns minutos. Nós teremos alguma chance de sobreviver se sairmos daqui.

--- Vamos ao plano — falou Lucas decididamente.

Eu tinha uma pistola cal. 380 como 12 tiros, a qual havia comprado há algum tempo, sendo-me de grande valia naquela ocasião. Meu irmão estava com um revólver cal. 38, que pertenceu ao nosso falecido pai. Tinha, apenas, oito munições. No canto esquerdo do porão, próximo à porta, havia uma caixa de ferramentas da qual Lucas tirou um facão um pouco enferrujado. Quanto a Cláudio, coube- lhe a incumbência de retirar, cautelosamente, as tábuas da porta. Pois bem. O plano era o seguinte: deixar adentrar a primeira criatura para que nós a eliminássemos, ao passo que Cláudio verificaria se outros viriam ou não. Tentaríamos não disparar um único tiro a fim de não atrair a atenção dos demais. Se isto ocorresse, estaríamos perdidos.

Cláudio pôs- se a retirar as tábuas, lenta e cuidadosamente. Ao término da tarefa, ele conseguiu abrir a porta; apenas alguns centímetros. Foi o suficiente para observar o exterior que, com grande ansiedade, almejávamos. Ele observou que, lá fora, postava-se um dos seres que tanto nos atormentava. Era um morto! Sim! Um morto- vivo! Figura sórdida e desalmada que, agora, perambulava pelas ruas do planeta. Mas não era só um! Eram milhões... e milhões, devorando as carnes de nossos semelhantes numa fome insana!

A coisa voltou-se para Cláudio e, num ímpeto bestial, o agarrou pelo braço, puxando-o para fora do porão. Ao tentarmos ajudá-lo, ouvimos sua última ordem:

-- Fujam seus tolos! Os outros estão vindo!

Saímos correndo feitos loucos pela casa, que um dia foi bela e cheia de alegria, enquanto ouvíamos os gritos de Cláudio e identificávamos palavras como “ cérebro, carne” , proferidas por aquelas aberrações.

Outros mortos postaram-se à nossa frente, induzindo-nos ao uso de nossas armas. Explodi a cabeça de um deles como um tiro certeiro. Lucas decapitou outro com a precisão de uma guilhotina. Já meu irmão não teve a mesma sorte que nós. Apesar de também acertar um tiro em uma das várias criaturas, que agora chegavam, foi mordido por outro monstro que se aproximou sorrateiramente. Com isso ele gritou:

-- Porra! Eu disse que não ia dar certo!

Quanto a isto só pude lamentar tamanha desgraça!

-- Vão vocês! Eu ficarei aqui para segurar essas bestas imundas! Já estou morto, mesmo!

O que fazer diante de tal situação? Ser solidário e ficar para morrer como meu irmão? Ou ser covarde e fugir feito um louco ensandecido, procurando salvar a própria vida? A segunda opção me pareceu melhor.

Fugimos eu e Lucas, ouvindo meu irmão esbravejar em meio aos disparos do revólver, até que os estampidos cessaram.

À nossa frente, ainda restava um imenso corredor do antigo casarão e, logo após, o hall de entrada. Depois disto estaríamos livres. Ou não?

No corredor, passamos a caminhar cautelosamente, porquanto havia portas de muitos cômodos, aparentemente fechadas.

-- Não estou gostando disso, Beto! Está muito quieto aqui! – disse Lucas, um tanto apreensivo. Balancei a cabeça positivamente, enquanto me esgueirava pela parede suja de sangue e entranhas. A poucos metros de uma porta, podíamos ouvir aquelas coisas, sempre mastigando; sempre com fome. Pelo canto da porta, sem ser visto, constatei a presença de três zumbis devorando os restos de uma pessoa que não consegui reconhecer, tal era o estado desfigurado de sua face e de seu corpo. Continuamos prosseguindo, passando, como muito medo, pelas portas dos outros cômodos vazios, até chegarmos no hall de entrada da mansão. Lá, pude perceber a gravidade de nossa situação!

Trêmulo, contabilizei treze mortos- vivos em um espaço de oito metros quadrados; era o hall. Quando me voltei para meu primo, este me perguntou qual o motivo de meu espanto.

-- Olhe você mesmo! – sussurrei com um ar de surpresa e desolação.

-- Como vamos passar por ali?! – perguntou- me embasbacado.

-- Não sei, cara!

Arriscamo-nos um pouco ao ficarmos parados, no corredor, em frente à porta, sem saber qual decisão tomar.

-- Tive uma idéia, Lucas!

-- Qual?

-- Vamos pegar um cadáver qualquer e jogar para eles. Se funcionar, será uma distração e nós fugiremos.

-- Tudo bem. Mas teremos que voltar o corredor até sabe- se lá onde!

Voltamos ao corredor, tendo cuidado para não interromper a funesta refeição, chegando ao local onde meu irmão havia perecido. Seu cadáver jazia inerte e esquartejado no chão frio que o acolhia. Senti grande amargura e desespero, mas era a nossa única salvação. Pegamos os poucos restos mortais, embrulhados nas roupas dele mesmo, e retornamos pelo corredor até o hall. Lucas também pegou o revólver. Apenas um cartucho intacto, disse ele.

Da porta joguei os restos de Miro na direção de algumas aberrações. Deu certo! Com a fome com que eles estavam, aquilo era o melhor banquete, e nossa presença já não mais importava. Começamos a travessia pelo hall, muito apreensivos. Já havíamos combinado que, se algo desse errado, quem escapasse deveria correr como um louco, fugindo daquela insanidade, sem olhar para trás!

Ah! Se meu irmão estivesse aqui... diria que o plano não iria dar certo.

Uma daquelas bestas apocalípticas, não satisfeita como a refeição que lhes déramos, agarrou Lucas pela perna, derrubando- o ao chão. Isso atraiu os outros, lógico! Tratava-se de carne fresca! Eles o agarraram, esquecendo-se de mim por completo, dilacerando-lhe o tórax. Nesse momento, percebi Lucas puxar, com suas últimas forças, o gatilho do revólver, dando cabo da própria vida! Já não restava mais nada a fazer naquele local dos infernos. Fugi aos prantos daquele antro nefasto, pela rua, esquivando- me de alguns mortos que caminhavam. Tentavam me agarrar. Encontrei um carro aberto com a chave no banco e um monte de carne humana espalhada pelo banco e pelo chão. Dava para ver uns tufos de cabelo, um olho e muito sangue. Não pensei mais! Entrei no carro, limpando as vísceras que ali estavam, dei a partida e saí em disparada, atropelando mais daquelas coisas que estavam por toda a cidade.

Até hoje não consigo dormir direito. Estou em outro abrigo, agora. Tenho como única companhia minha pistola cal. 380. Tenho, também, mais água e comida do que o outro abrigo de três semanas atrás. Também tenho a certeza de que minhas provisões irão acabar.

Oh! Eles já batem à porta; e murmuram fonemas desconexos... aquele cheiro putrefato invade o abrigo. Só posso esperar!

fellipe cavalcante freitas

fellipe freitas
Enviado por fellipe freitas em 25/03/2009
Código do texto: T1505681
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.