ÉBANO E MORTE

No início eram poucos, mas em alguns minutos já eram inúmeros, milhares de olhos a espiar a cena. O local era uma grande fazenda localizada em um ponto remoto do país, semelhante a tantas outras, tanto na distribuição de suas instalações, como no modo de agir.

O canavial era extenso, ocupava a maior parte das dependências, o sol castigava os trabalhadores sem piedade. Piedade, também era algo inexistente no tratamento dado a eles, por parte dos donos daquelas terras. A liberdade deveria ser algo a que todos teriam direito, e embora o açoite das senzalas fosse algo esquecido, a escravidão, na prática, ainda existia, fosse pela ausência dos direitos trabalhistas, ou pela total dependência econômica a que eram submetidos.

Neste cenário, as crianças não eram poupadas, muito pelo contrário, eram peças importantes naquela engrenagem.

- Miguel! Miguel! – Chamava um garoto magricela – Miguel! Corra, é o seu irmão!

Miguel era um garoto de quatorze anos, em sua pouca idade já pesava o peso da responsabilidade. Não chegara a conhecer o pai, trabalhava duro para sustentar a família, ao lado da mãe e do irmão caçula.

Ao ouvir os gritos do garoto franzino, largou o facão de cortar cana e disparou no auxílio do irmão de oito anos.

O supervisor que observava a cena tratou de segui-lo, era uma afronta abandonar o local de trabalho daquela maneira.

Miguel chegou até o anexo onde se localizava uma carvoaria, onde trabalhavam os menores, aqueles que não possuíam força suficiente para manejar a lâmina no corte da cana.

Os olhos vermelhos do rapaz avistaram seu irmão caído ao chão, com sua pele negra coberta pela sujeira da fuligem, o garotinho tossia e se contorcia sem que ninguém o auxiliasse.

- Hei – gritou Miguel, em direção ao homem montado em um cavalo, era o supervisor da carvoaria – o que está acontecendo aqui?

- Esse moleque é fraco, rapaz! Não agüenta a lida sem reclamar!

Miguel se ajoelhou ao lado do irmão, lágrimas escorreram em seu rosto ao ver o pequeno naquele estado.

- Ele só queria parar para beber um pouco d´água – disse um dos colegas do menino caído – o feitor não deixou, o feitor não deixou – repetia aos berros.

- Olhe o que você fez com o meu irmão! Ele é pequeno! Ele é pequeno! - Gritava Miguel.

- Ele é fraco – replicava o supervisor, descendo do cavalo – ele não tem direito a descanso, ele não tem produzido o suficiente para pagar as dívidas feitas no armazém.

- Eu trabalho no lugar dele.

- Você já tem muito que fazer – disse o supervisor do canavial, que chegava naquele momento – você não tem tempo.

- Trabalharei após a minha jornada, poupem o meu irmão.

Um tapa violento jogou seu rosto para trás, a mão do homem era pesada. O couro da bota do outro fez tremer suas costelas, tirando-lhe o ar. A dor percorreu seu corpo, mas não desgrudou do irmão, permanecendo ambos abraçados no chão.

- Fiquem aí – o dia de hoje já está no fim.

- Vamos compadre – cuspiu sobre os meninos – vamos que vem chuva aí.

O tempo mudara repentinamente, o sol que brilhara durante todo o dia, tornando o trabalho mais penoso, cedera espaço para nuvens negras e pesadas que converteram em noite aquele final de tarde.

Miguel apertava forte o menino raquítico que possuía o mesmo sangue que ele, as mesmas marcas no corpo, a mesma pele negra e brilhante. Fazia uma prece, pedia que o mal os deixasse, pedia castigo para os carrascos, queria paz, queria algo melhor.

Gotas grossas começaram a cair, e uma ventania sem precedentes balançava forte os galhos das árvores.

A dupla de funcionários da fazenda apertava o passo por entre o matagal. Todas as crianças haviam corrido, apenas os irmãos permaneceram sob a chuva forte.

Milhares de olhos os observavam. O mato parecia crescer em todas as direções, os homens ficaram desnorteados por um momento. O cavalo que os acompanhava disparou de forma súbita. Estavam perdidos e cercados por paredes verdes, que tremulavam com o vento forte, a água da chuva machucava a pele de ambos, como açoites de chibata.

O grito estava estalado em suas gargantas, tentaram correr e caíram no chão, a lama os cobriu. Os olhos decidiram parar de observar e decidiram agir. Em segundos seus corpos foram manchados de negro, centenas de milhares de formigas, negras como o ébano, negras como os irmãos, negras como aquele que as comandava.

A cada mordida, sentiam a dor de uma lâmina quente perfurando sua pele. Quanto mais gritavam, mais formigas entravam por suas bocas, e desciam por suas gargantas, a fim de devorar-lhes por dentro.

Eram assassinas, comiam a carne daqueles que pecavam contra os inocentes. Devoravam velozmente a pele e os músculos. Antes de terem seus olhos consumidos pela fome insana dos insetos, os homens puderam ver, ali parado, diante deles, um menino, pele de ébano, uma aura luminosa o revestia, de seu semblante não partia misericórdia, ele conhecia a dor que aqueles homens experimentavam, pois há muito tempo, ele próprio tivera seu corpo consumido por elas, num ato de hedionda maldade.

Hoje, ele as comandava, e seguia em auxílio daqueles que precisavam, e os homens caídos na lama, e devorados até os ossos, tiveram o que mereceram.

A vingança seria eterna, e a morte, escura como sua pele.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 22/03/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1500294
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