LEGIÃO

Na sociedade em que vivemos existe um mundo paralelo. Um mundo cruel e impiedoso, onde a liberdade e o desejo individual são controlados por interesses alheios às normas pré-estabelecidas pela lei. Os domínios deste mundo são conquistados a base de muito sofrimento, sangue, chumbo e morte. Um destes feudos pertence a um dos mais violentos e sanguinários líderes do tráfico. Quem interferisse em seus interesses conhecia um destino certo e irremediável. Quem ousasse questionar sua autoridade ou vontade, tinha duas opções, fugir ou enfrentar as conseqüências.

Desta forma, Doquinha conquistou o seu famigerado império. Naquela comunidade ele era o rei, o soberano máximo, ditava as regras, as quais deveriam ser obedecidas à risca, quem as burlasse teria de enfrentar o tribunal do crime, onde um habeas-corpus nunca era concedido.

Neste momento uma sessão estava aberta. Em julgamento estava um dos soldados de seu próprio exército. Este praticara uma falta terrível, imperdoável. O imprudente marginal cometera um delito nas cercanias da favela, o que não era permitido, pelo simples fato deste ato atrair a atenção da polícia, e conseqüentemente, prejudicar os negócios.

O jovem, pois não passava dos vinte anos, apresentava vários ferimentos e escoriações, resultado das horas seguidas de espancamento, o castigo nunca era o suficiente.

Seus braços e pernas estavam atados por fitas adesivas, assim como sua boca estava lacrada pelo mesmo material. A dor causada pelos ossos quebrados e pela carne dilacerada não era a sua maior preocupação.

O que os colegas traziam é que lhe causava desespero, ele sabia o que viria a seguir. Tentava se lembrar de uma oração, mas há muito sua fé fora colocada de lado. Estava só, a única companhia que teria seriam suas lágrimas e seu medo.

Fora erguido, sob seus pés coloraram um pneu, e em seguida, por cima de sua cabeça, mais um, e outro, e mais outro. Desta forma encontrava-se como um recheio na pilha que chegava até o seu peito. Estava sob a mira de fuzis, e por mais que desejasse uma morte rápida, esta não seria concedida, não àqueles que ousavam quebrar a lei do morro.

Atearam gasolina, o rapaz se sacudia de forma incontrolável, caiu e seu corpo começou a rolar com os pneus, os bandidos gargalhavam mediante o desespero do ex-comparsa de criminalidade. O líder do grupo acendeu um palito de fósforo e atirou sobre o conjunto de carne e borracha. Logo as chamas queimavam intensamente, consumindo o corpo do rapaz, proporcionando a ele uma dor jamais imaginada.

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Doquinha raramente saía de seus domínios, a enorme casa no alto do morro proporcionava, além de uma bela vista para o mar, algo que ele não conseguiria no asfalto: segurança. O quartel-general do tráfico era protegido por um sem número de soldados, e o acesso difícil, garantido pelas vielas estreitas, só reforçava sua invulnerabilidade.

No entanto, naquela noite, sua segurança seria colocada à prova.

Ele estava sentado em uma confortável poltrona, na sua não menos confortável suíte. Minutos antes, ele havia colocado para fora duas garotas que lhe faziam companhia, sob o pretexto de que queria ficar só. Obviamente, o fato fora executado da mesma forma descontrolada e explosiva de sempre, elas mal tiveram tempo de recolher as roupas. Fumava um cigarro de natureza ilícita quando fora surpreendido pelo som de passos.

- Eu já falei que quero ficar so...- uma figura surgiu diante dele – quem é você?

Imediatamente já apontava uma pistola para o sujeito, estranhado o fato dos seus seguranças não terem impedido a sua entrada.

- Você me conhece – respondeu o estranho.

- Nunca te vi antes, rapaz! Quem é você? – Perguntou já deixando transparecer a usual impaciência.

- Já fiz alguns serviços para você.

- É? Que tipo de serviço.

- O que se refere à minha especialidade.

- E qual seria ela?

- Sou um matador, Doquinha, um assassino profissional, como você.

A voz do estranho era grave e arrastada, parecia um tanto metalizada.

- E o que você quer comigo? Deixei de te pagar?

- Não. Seus depósitos foram efetuados corretamente.

- Escute aqui meu amigo – posicionou a arma a um palmo de distância da indesejável companhia – se não te devo nada, então caia fora, antes que eu acabe com os seus dias de matador.

O homem não recuou um só passo diante da ameaça.

- Quero te fazer um comunicado – disse ao traficante.

O invasor estendeu os braços e posicionou as mãos espalmadas sobre os ouvidos do bandido, a ação fora executada com uma velocidade impressionante, ainda assim, o dedo nervoso pressionou o gatilho repetidas vezes, mas as balas não ousaram atravessar o cano da arma. Não ousaram porque ali não mais existia a lei do tráfico, naquele momento, só valia uma vontade, só havia o desejo de muitos.

O traficante gritava enquanto o matador o forçava a olhar em seus olhos. Os gritos chamaram a atenção dos seguranças, mas estes não conseguiam se mover dentro daquele ambiente, o ar que ali circulava parecia ter sido convertido em uma espécie de geléia incolor. Por mais força que fizessem, seus músculos não executavam o que o cérebro lhes ordenava.

Um vazio profundo. Esta fora a visão de Doquinha num primeiro instante. Mas, logo em seguida, uma sucessão de choros, lamentos, e rostos se alternavam diante dele. Alguns conhecidos, outro não, porém, todos com o fato comum de terem sido suas vítimas, direta ou indiretamente.

Pessoas cruéis e assassinos famosos colocaram-se na seqüência de visualizações, até chegar ao rosto de uma menina, feições de anjo, mas com um ar de deboche e ódio no olhar. Ao olhar para ela, o traficante perdeu totalmente o controle de suas vontades, ele, que se considerava um rei, estava ali, a mercê de uma garotinha. Ela olhou para Doquinha como se pudesse enxergar a sua alma, manipulava as mãos do matador para tocar-lhe a pele, após um sorriso cínico ela disse:

- Sua aura negra e má agora é nossa, pois somos muitos, e muitos ainda queremos – várias vozes falavam através da boca da criança, diferentes timbres, várias maneiras de se dizer as mesmas palavras – diferentes nomes possuímos, pois somos inúmeros, somos aqueles que se movem em função da dor, a propagamos com o nosso existir, comunicamos a você neste momento, trabalharás a nosso favor, pois essa é a vontade da Legião!

Uma fumaça densa e escura deixou o corpo do traficante, sendo expelida através de seus poros. O mercenário, ainda de mãos espalmadas, absorvia a essência maléfica que esvaía do bandido. O corpo, já sem vida, ressecou até se tornar uma casca, e desta forma caiu no chão e se tornou uma pilha de farelos.

A alma do traficante somara-se a do mercenário, e a várias outras, todas prisioneiras daquele que era muitos.

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Em seu gabinete, o parlamentar se preparava para correr para o aeroporto, a fim de pegar o jato até sua cidade natal. Para ele, e muitos colegas, a semana de trabalho havia terminado. E o dia seguinte seria uma quinta-feira ensolarada, e ele desejava aproveitar ao máximo tudo que o poder e o dinheiro poderiam proporcionar.

De repente, ouviu passos na sala de espera. Quem seria? Nem ouvira o som da porta se abrindo...

- Quem são vocês? Como entraram aqui?

- Qual é deputado? Não está me reconhecendo? Já fiz várias distribuições do meu produto em suas festinhas...

- E eu já executei alguns serviços para vossa excelência também...

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Esta é a segunda parte de um conto em conjunto com o escritor Victor Meloni, não deixe de conferir a primeira parte, chamada " Vicissitude "

Um abraço a todos,

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 13/03/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1483791
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