Desafio Macabro - Entre o Sonho e o Pesadelo

O gato preto atravessou a pista à minha frente a passos lentos, preguiçosos. Ao perceber minha presença, parou, arqueou a coluna e me encarou, exibindo os olhos amarelos e cheios de rancor, deu um miado zangado e correu, desaparecendo na escuridão. Um arrepio percorreu-me o corpo, pensei em desistir.

Quando os sonhos começaram, acordava ofegante e suada, muitas vezes, chorava, desesperada. Depois, à medida que eles foram se repetindo, comecei a tomar notas dos detalhes, informações que pudessem ajudar-me e entendê-los. Agora, eles se repetiam diariamente. Bastava fechar os olhos e cochilar por alguns instantes para que as imagens surgissem, como num filme, sempre iguais. Repassei as anotações por vários dias antes de me decidir: o nome das ruas, o número do ônibus que me levaria até lá, o horário... Finalmente, a ânsia de voltar a vê-lo foi mais forte do que o meu bom senso e ali estava eu, quase chegando ao meu destino. Ainda não podia acreditar no que estava fazendo, nunca estivera naquele lado da cidade, porém minhas lembranças tinham uma correspondência absurda com a realidade: os sons de meus passos rápidos na calçada úmida da chuva de há pouco, seu eco quando passei em frente ao beco, o gato preto, o hotel: o letreiro com duas letras apagadas, a porta de ferro fundido pintada de branco acetinado, meio descascada pela maresia, os vidros embaçados. Ainda observava esses detalhes quando ouvi a gargalhada histérica. O coração saltou-me no peito. Havia esquecido deste som estridente que sempre me apavorava no sonho, essa risada de mulher que vinha de algum dos quartos acima de mim e que mais pareciam os estertores da morte de uma bruxa. Mais uma vez, congelei. Senti mesmo amolecerem-me as pernas. Podia ouvir minha pulsação, podia sentir a fúria do sangue a percorrer-me as veias. Por que não esquecê-lo, viver minha vida? Tudo estava tão perfeitamente igual até aqui... não deveria me bastar?

Sorri. Sabia que não poderia jamais conviver com esta dúvida, por menor que fosse. Por mais que as coisas estivessem se encaixando tão perfeitamente, precisava ver, só me convenceria com a mais absoluta certeza.

Mais alguns passos e vi a casa. Bonita, luminosa, flores no quintal. Sem grades. Aproximei-me. O estômago embrulhado, a cabeça doendo. Mas, agora, faltava pouco. Sabia que bastaria caminhar ao longo desta parede, passar por esta janela, por mais esta outra e enfim, posicionar-me, para vê-lo lá dentro. Agarrei a esquadria. Lembrei-me da vertigem que sentiria ao vislumbrar seu rosto, não queria estragar tudo, como nas primeiras vezes. Sim. Embora o sonho se repetisse sempre, eu era capaz de mudar algumas coisas, se agisse de forma diferente. No início, quando eu o via, desmaiava. Então, nas vezes seguintes, aprendi a segurar-me firmemente na janela, para poder vê-lo por mais tempo. E, se já tinha chegado até aqui, não ia mesmo cometer nenhum erro estúpido que me impedisse de aproveitar todos os segundos.

Não demorou muito e ele entrou. Lindo! Bem vestido, penteado... Trazia um enorme sorriso nos lábios. Seu olhar expressava a mais doce e plena felicidade. Senti a vertigem. Apertei mais os dedos contra o ferro, respirei fundo... Aos poucos, recuperei o controle. Olhei novamente. Ele vinha de mãos dadas com ela. Ela, que o roubara de mim, que quase me deixara louca, ao desaparecer com ele de minha vida, sem deixar vestígios. Os dois sentaram-se no sofá suntuoso. Ela lhe alcançou um pacote dourado. Ele estava radiante, abraçou-a com força, como costumava me abraçar, beijou-a. Senti ciúmes, inveja, raiva. Queria entrar, matá-la, tomá-lo de volta... Ele rasgou o embrulho, de onde tirou um carrinho desses com controle remoto que eu via nas propagandas da TV, mas que jamais poderia comprar para ele. Então, eles sentaram-se no tapete fofo e ficaram brincando. Finalmente, a confirmação. Por mais que os sonhos me dissessem isso, por mais que repetidas vezes eu os tenha assitido, precisava mesmo ver com meus olhos. Ver que ele estava bem, que ele era amado, que teria uma vida infinitamente melhor do que a que eu poderia lhe dar. Ver que, nesses últimos dois anos em que eu jamais deixei de pensar nele, ele parecia ter-me esquecido completamente. Não se admira. Era apenas um bebê e eu estava longe de ser uma mãe exemplar. Sozinha, usuária de drogas, por mais que o amasse, por mais que desejasse melhorar por ele, o vício era mais forte e, acabava por descontar nele meu desespero e frustração. Já não conseguia mais disfarçar-lhe os hematomas. Lembrei do dia em que eles o levaram, da violência, da forma como ela o arrancou de meus braços enquanto o marido segurava meus cabelos e o pescoço, até jogar-me no chão como um trapo, do quanto eu quis levantar-me e tomá-lo de volta, mas apenas fiquei lá, encolhida, chorando, imobilizada pela quase overdose que havia tomado mais cedo. Olhei para ela. Tão serena, tão amorosa... Sabia que eles eram boas pessoas, ansiosos por ter um bebê como o meu, um bebê que eu acabaria por matar, numa crise de abstinência ou num transe.

Aliviada, certa de que seu destino agora seria muito melhor do que o que lhe esperava ao meu lado, soltei-me da janela e caminhei de volta para a rua.

O sonho estava perto de acabar. Este final eu tentei evitar de todas as formas e nunca consegui. Somente por causa dele demorei tanto a vir. Ouvi os passos dele, do homem que o tomou de mim. Senti seu pânico, o medo de que eu o fosse exigir de volta. Sabia que não adiantaria tentar dizer-lhe nada, mas disse assim mesmo:

- Apenas o faça feliz.

Não sei se ele ouviu, o barulho do tiro abafando minha voz.

Num último gesto de nobreza, ainda consegui retirar a faca do bolso. Queria ter certeza de que a polícia me encontraria drogada, armada e perigosa. Que ele não seria condenado pelo tiro que me esmagou os miolos. Qualquer rábula iria livrá-lo das grades sob o argumento de legítima defesa.

Meu filho teria uma família e seria feliz como eu nunca fui.

Um tímido raio de sol atravessou a vidraça, atingindo meu rosto. Acordei. Levei a mão à cabeça, procurando o sangue, o tiro. Nada. Comecei a perceber onde estava: meu quarto, minúsculo, as paredes sujas, o teto cheio de teias de aranha, a pequena janela quebrada, as garrafas e seringas vazias na mesinha de cabeceira. Com muito esforço, consegui sentar-me na cama.

As lembranças começavam a tomar forma. A tentativa da assistente social em me tomar o bebê, o enfermeiro desajeitado que me jogou no chão e a forma como eu consegui livrar-me deles e corri, agarrada ao meu filho, até em casa. Depois, uma incontrolável necessidade de um trago, uma dose... E tudo se perde numa densa nuvem de heroína e álcool.

Olho para o berço. Vazio! Um enorme desespero me domina. Meu bebê! Vieram atrás de mim? Levaram meu bebê?

Tento levantar-me mas, desequilibrada, acabo caindo novamente na cama.

Vem-me a lembrança do choro insistente... fome, dor, medo? Não me lembro. Lembro das minhas tentativas inúteis de acalmá-lo, fazê-lo calar-se.

Sinto um volume ao meu lado. Um pequeno pacote, envolto em lã. Meu filhinho! Ele dorme.

Apalpo, encontro seu rostinho. Frio. Muito frio. Inerte.

Na ânsia de acordá-lo, encontro a seringa. Uma das minhas... ainda espetada em seu bracinho mirrado.

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Este texto faz parte do 1º Desafio Recantista de 2009.

O tema definido desta vez foi o de Contos Macabros, contemplando textos sobre horror sobrenatural ou realista, densos e sérios ou divertidos e leves.

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