Júlia

Casarão da Família Scariötto

Cidade de São Paulo

Sexta-feira, 13 de Dezembro de 2002

19h 17min.

Júlia revivera mentalmente, nas últimas oito horas, todos os momentos mais significativos de sua vida e tentava imaginar como ela iria mudar a partir daquele momento crucial. Ela percebia claramente que uma nova página era passada no livro que era sua existência terrena e que aquele rapaz era o responsável por aquela mudança.

Jean-Baptiste olhava ternamente para ela, como sempre fazia para incentiva-la a tomar alguma decisão, um olhar doce, sincero e tranqüilo que sempre passava para Júlia a mensagem de que não importava o que ela fizesse,seu amado a apoiaria. Ela se sentia feliz por ele estar ali, sentia-se segura, confortável, protegida junto a ele, mas havia ainda um resquício de dúvida, um receio obstinado que teimava a questionar toda a sua felicidade. Por fim, com um brilho de esperança no olhar, ela perguntou:

- O que será da minha família, dos meus amigos?

Jean-Baptiste desviou o olhar, um sinal claro de que ele iria dizer algo desagradável, e o coração de Júlia disparou. Ele caminhou para longe dela e, de costas, respondeu:

- Você terá que esquecê-los, meu amor.

Abriu a Bíblia e leu em voz alta:

- Portanto, deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, e, serão os dois uma só carne. Gênesis 2:24.

Júlia pensou em seus pais e sentiu uma pontada de dor no seu coração.

- É mesmo necessário, amor?

- Sim, meu anjo. É sim.

- Mas é tudo tão injusto. Tão , tão...

- Inumano? - Jean-Baptiste esboçou um sorriso - É sim, Ju...

- Não sei...

Silêncio.

- Não sei realmente se eu posso fazer isso.

Jean-Baptiste de costas, esperava uma resposta.

- Será que você pode entender isso, amor? Não sei se estou pronta a deixar tudo...por... por....

O francês voltou-se e a encarou:

- Por mim?

A dor no seu olhar assustou Júlia. Por um momento ela pensou em lhe pedir mais tempo para pensar, mas naquele instante ela percebia que teria de decidir-se ainda aquela noite. Por isso ele a levara a sua casa, por isso ela não podia ficar junto com a família e os amigos. Porque Jean-Baptiste confiara a ela seu segredo mais terrível, algo que mudara para sempre seus conceitos de bondade e de maldade. Agora ela teria que decidir juntar-se a ele ou deixá-lo.

Por fim seu amado acrescentou:

- Ju, eu vim até onde eu podia com você. A decisão deve ser sua. Não posso cruzar a porta por você, mas eu peço... eu imploro... - a voz faltou-lhe por um momento - Por favor, por favor, venha comigo. Porque eu não sei se vou poder suportar viver sem você.

Durante toda a sua adolescência Júlia fantasiou com um momento como aquele, quando jogaria toda a sua vida pela janela para seguir ao homem dos seus sonhos. Conforme fora crescendo, essas fantasias adolescentes desvaneceram e a realidade de um futuro casamento estável e o sonho de uma vida pacata dominaram seu coração. Fosse menina ainda, ela com certeza se atiraria de cabeça no desconhecido junto com ele, mas agora adulta, os receios começavam a se manifestar. Olhando para ele agora, percebia enfim que não o amava tanto quanto havia idealizado e chegava a sentir um pouco de autocomiseração, uma angústia diferente de tudo quanto experimentara até então, a sensação de ter traído a si mesma e ao homem a quem jurara amor eterno. Engolindo em seco, disse então:

- Não posso, Jean-Baptiste... sinto muito - não pôde mais reprimir o choro - Oh, Deus, sinto muito, mas não posso...

Passou a chorar desesperadamente, soluçava tanto que lhe doía o peito e dobrava-se para frente incapaz de manter a postura ereta.

Jean-Baptiste olhou ao seu redor, como a buscar respostas nos quadros das antigas batalhas da família Scariötto, como se um daqueles homens ali retratados pudesse lhe aconselhar. Quando finalmente falou, sua voz estava clara, perfeitamente cordial, mas sem nenhum traço de emoções mais fortes:

- Está tudo bem, Júlia - não tinha mais vontade de chamá-la de "querida", "amor", ou algo do gênero - Vá para casa, descanse. Amanhã será outro dia... para nós dois.

Tomou a Bíblia novamente e leu de maneira sentenciosa

- Que te farei, ó Efraim? Que te farei ó Judá? O vosso amor é como a nuvem de manhã, e como o orvalho da madrugada, que cedo passa. Oséias 6:4.

Depois ajudou Júlia a se recompor, sentando-a em um banco próximo.

- Tudo bem, Júlia? Está pronta para ir?

- Sim. Por favor, me perdoa.

- Está tudo bem, Júlia - sua voz adquirira o tom paternal que destruía toda a resistência de Júlia - Agora, olhe para mim.

Os olhos de Jean-Baptiste haviam adquirido um tom dourado, algo hipnótico, mas Júlia nem percebeu. Seu amor por aquele rapaz voltava com toda a intensidade naquele momento.

- Ouve, Júlia. Presta atenção a minha voz, filha de Eva, ouve o teu destino. Agora irás para o teu lar e para junto dos teus. Apagarás de tua alma a memória do meu rosto, te esquecerás de tudo quanto viveste nessa casa em minha companhia, esquecerás cada palavra da minha boca. Daqui a sete dias tu ceifarás a tua própria vida, porquanto a vida te será molesta. Sete dias e morrerás por tua mão. Até lá sofrerás toda sorte de pesadelos e visões monstruosas, temerás o terror noturno e a seta que voa de dia, temerás a peste que assola na escuridão e a praga que assola ao meio-dia. Não terás mais descanso até o dia em que tomares a tua própria vida. Sete dias, Júlia. Sete dias é o tempo que te resta.

Júlia assentia com a cabeça, sem saber ao certo o que estava ouvindo. A voz de Jean-Baptiste estava como que amortecida e Júlia era incapaz de entender as palavras. Sabia que ele devia estar falando de coisas lindas por causa do sorriso gentil que lhe iluminava a face angelical, mas era absolutamente incapaz de entender as palavras.

Tudo o que veio depois não era muito claro na cabeça de Júlia e cada vez que tentou pensar nisso a cabeça ameaçava-lhe doer horrivelmente. Lembrava-se de ter sido levada de carro para casa, mas não se lembrava do rosto do motorista. Na verdade, com o tempo esqueceu-se de onde viera naquela noite. Tinha a estranha sensação de que fora encontrar-se com alguém, mas não conseguia se lembrar de quem. Achou por fim, melhor esquecer de toda aquela tolice e voltar a fazer planos para o futuro

Afinal, tinha toda uma vida pela frente.

Pergamasco
Enviado por Pergamasco em 04/05/2005
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