O Translado

RELATO DE LIONEL AMARAL, JULHO de 2002

1.

Chamamos este corredor de Pavilhão K. Não sei o porquê desta denominação, já que este é o quinto corredor a partir da entrada. Deveria ser o corredor “E”, ou o corredor “5”. Sinceramente, este bem que podia ser o Pavilhão Z... só assim eu me livraria da iminência da sombra que por aqui ronda todas as noites, ceifando a alma de mais um pobre diabo, já condenado pela justiça.

No início eu acreditava que o filho da puta fosse algum carcereiro que, entediado, entrava aqui todas as malditas noites de inverno para torturar um infeliz, escolhido aleatoriamente. Todos acreditavam nisso. Ignorávamos os alertas de Miguel – um sujeito condenado por estupro que estava instalado na mesma cela que eu. Ele dizia que não era um carcereiro entediado, ou talvez um prisioneiro fugitivo, que passeava por aqueles pavilhões. Ele dizia que a criatura em questão era ninguém menos que o diabo.

Devo alertar, e até admitir, que a esta altura supúnhamos que as idéias de Miguel eram tão creditáveis quanto às de Fernando Collor. Perdoe-me por usar um exemplo tão ultrapassado... mas estou preso nesta penitenciária desde 1991, e tão desligado às notícias que não consegui achar outro exemplo. Mas estou desviando-me do assunto, eu sei, e tentando achar palavras para descrever o que presenciei.

Antes de falar mais sobre esta figura, Miguel de Cervantes (não é uma analogia ou alcunha em referência ao grande poeta espanhol, o homem chamava-se mesmo Miguel de Cervantes... ou dizia que este era seu nome), gostaria de falar um pouco sobre as condições que me levaram à penitenciária. Gostaria de falar um pouco sobre mim.

Sem querer soar hipócrita, digno de pena, ou até poltrão, digo que nunca fiz nada em minha vida que julgasse pecado. Nunca agredi uma pessoa de maneira covarde, nunca duvidei de minha própria fé e nunca deixei faltar comida na mesa de minha velha mãe. Mesmo assim não me orgulho deste currículo. Muito pelo contrário: gostaria de ter cometido todos estes deslizes, exceto o fato de que, de uma maneira ou de outra, continuaria pondo o pão e o leite na casa de minha mãe. A velha não tem culpa nenhuma de minhas amarguras.

Digo para você, que lê agora essas linhas garranchadas, que é impossível viver tranquilamente, trabalhando honestamente, suportando sujeira e promiscuidade, injustiça, ingratidão, falsidade... todas essas merdas com o bico calado. Não, não dá! Eu não acredito nisso, e isso está fora de discussão para mim.

Acontece que eu suportei, meu amigo. Suportei mais do que qualquer outra pessoa, acredito. Para não me alongar muito: um miserável tentou violentar uma prima minha, que eu considerava uma irmã. Então eu tomei coragem e decidi me pronunciar. Eu o matei.

No dia seguinte fui até a delegacia, confessei o crime e revelei onde havia escondido o defunto. Aguardei julgamento em uma cela desumana, sem entrada para ar, que mais parecia um contêiner para guardar carne podre. Peguei quinze anos de prisão. Foi uma pena branda, e você também pensaria isso, se soubesse a maneira cruel com a qual assassinei aquele verme. Mas isso também não vem ao caso.

Tenho poucas páginas neste caderno velho, por isso não poderei ser tão detalhista quanto queria. Também não sei se tenho tanto tempo, e isso precisa ficar registrado. Agora voltarei a falar de Miguel.

2.

Era um sujeito muito feio. Alto, moreno... moreno não, parecia ter uma cor de pele desbotada que me lembrava um rack carcomido onde eu costumava desenhar em minha infância. Cabelo loiro definidamente não natural, bigode ralo... e lhe faltava o braço direito. Ora, eu poderia fazer mais comparações pretensiosas e escarnecidas, mas neste momento eu não tenho humor suficiente para tal. O sujeito era mais feio do que você pode imaginar, e isso basta.

E ele era louco. Um psicótico que Freud teria prazer em curar... até porque, pra quem nunca curou ninguém, tornar lúcido um caso perdido como Miguel seria uma realização e tanto. Entre as milhares de babaquices que ele falou para nós, elegemos a “pérola”: É nesta época que o mundo expira. É neste inferno que minha alma expia. O fato se dará no mundo do amanhã. Os que são de Deus a Deus, e os condenados, a Satã.

Dito isso, pouco tempo depois, os “eventos” começaram. Eu pensei, no início, que era uma armação de Miguel com algum carcereiro – mas quando me deparei com o espectro, a poucos metros de mim, soube que era verdade. “Ele” passou, caminhou devagar e pesadamente bem próximo a minha cela, de maneira retilínea, como quem já tem um objetivo muito claro em mente. E me olhou... o que é curioso, pois “ele” não tinha nada parecido com olhos.

Todos os dias desse inverno “ele” vem. Sempre à noite, mas não há um horário pré-definido. E este curto relato escrevo neste caderno velho, e deixarei escondido na minha cela, pois “ele” tem agido exatamente neste pavilhão, o Pavilhão K, e muito provavelmente esta noite Miguel e eu seremos vitimados por sua foice. Mas não vou prantear. Aceito o meu destino.

FRAGMENTO DA ENTREVISTA COM JONAS W. DUCINI, PARANORMAL DA CASA DE RECUPERAÇÃO DE ALMAS NOSSA SENHORA DE COPACABANA, COM O RADIALISTA HUMBERTO MENDES, FOI AO AR EM 13 de AGOSTO de 2003

Humberto: Soubemos de alguns eventos ocorridos na Penitenciária de Linha-Norte, em Belém do Pará, e nas últimas semanas temos trazido este assunto à tona em nosso programa. Ao que parece, tudo começou quando o prefeito daquela cidade do interior permitiu sua entrada no complexo. Como o senhor conseguiu convencer a justiça a fazer uma visita, como médium?

Jonas W. Ducini: Aos poucos o cidadão do mundo, e o brasileiro principalmente, tem aceitado a realidade do espiritismo como efeito natural – e a ciência tem acompanhado este “despertar”. Este “convencimento” não foi tão penoso quanto achei. De alguma maneira, funcionários, policiais e membros do alto escalão do governo paraense pareciam saber que nos corredores daquela penitenciária, um mal transcendental rondava... talvez há muitos e muitos séculos, adormecido. Desta maneira não demorei muito a convencê-los a fazer uma inspeção naquele local, e cheguei a resultados surpreendentes.

Humberto: Antes de perguntar sobre estes resultados, gostaria de saber o que as pessoas passaram a chamar de “Inimigo”, em referência às séries de mortes consecutivas ocorridas na penitenciária, e que ainda estão sem solução oficial dada pela justiça.

Jonas W. Ducini: E você e quem estiver me ouvindo pode esperar esta solução sentado. A justiça convencional não vai chegar a um veredicto nunca, haja vista que este “Inimigo” – o assassino dos pecadores da penitenciária – não é uma criatura que existe em nosso Plano Existencial. Este espírito obsessor “vive” através das energias das pessoas impuras, vampirizando a iniqüidade de seres humanos baixos. E seus dotes hediondos não param por aí. Este ser malévolo pode ainda materializar-se na escuridão, infligir doenças em pessoas saudáveis, causar danos permanentes à psique de uma pessoa sã.

Humberto: Meu Deus! Então temos que dar um jeito de destruir esta criatura antes que ela fuja da penitenciária! [em tom de deboche]

Jonas W. Ducini: O que acontece naquele inferno não é brincadeira. Quando percorri aqueles corredores, nenhum dos prisioneiros, nem sequer o mais vil, teve coragem de debochar quando lhes falei sobre este tal “Inimigo”. E nem precisei falar muito, entende? Os miseráveis já sabiam da natureza daquela sombra abismal, talvez até mais que eu! Ai deles, pois em sua estadia lá pagam uma pena muito maior do que a que mereciam. Aquela prisão foi construída em solo impuro, satânico. Basta percorrer um daqueles pavilhões para sentir um medo inumano, irracional, enregelando seu cérebro e seu sangue. Acreditando cumprir bem seu trabalho, aquele governo criou uma penitenciária de segurança máxima bem longe da civilização... tão longe que ultrapassaram as barreiras dos direitos humanos. Afastando aqueles infelizes da sociedade, afastaram também as almas ímpias do perdão de Deus!

Humberto: Você conseguiu algum contato com o “Maligno”? [ainda em tom de deboche]

Jonas W. Ducini: Não! Deus que me perdoe! Ao sentir que aquele território era de Baddakai, mestre da Borda, a única coisa que pude fazer foi fugir como um menino indefeso [deste ponto em diante Ducini apresenta sinais de mudança de humor, e a principal característica foi o tom carmesim nos olhos. Humberto fez sinal para que um médico fosse chamado].

Humberto: Quem é Baddakai?

Jonas W. Ducini: Ora, Baddakai é “Ele”. A criatura que atua sobre a Morte. Quando o momento da Morte se aproxima, e quando não há doença, ou acidentes, ou tragédias de violência que sirvam como ponte para que a ceifa da alma torne-se real, o “Inimigo” se materializa, e faz o que for possível para que ocorra o translado do espírito para o Inferno.

Humberto: Baddakai seria Satanás?

Jonas W. Ducini: [rindo] Todos vocês são tolos! Falam o que querem por meia dúzia de idiotices escritas em um livro velho! – Ah, e uma advertência [Ducini se levanta, seguranças da rádio se posicionam] Saiba que você pronunciou o nome do “Inimigo” duas vezes em menos de vinte e quatro horas. “Ele” costuma interpretar isso como sinal claro de uma possível evocação. Ouse falar o nome dele mais uma vez, e a tranqüilidade deste estúdio estará abalada...

Humberto: Baddakai, Baddakai, Baddakai, Baddakai, Baddakai, Baddakai, Baddakai...

Jonas W. Ducini: [rindo] A velha mania do ser humano, a ânsia de confrontar o medo de frente! Pena que eu esteja sentindo meu corpo se esvair rápido demais, de dentro para fora, e não poderei ver a sua desgraça, iníquo! A carga elétrica já está passando pelo meu corpo. Quando encontrarem meu corpo, vão dizer que o metano reagiu a um impulso elétrico, ou sei lá, essas mentiras que eles inventam. Foi assim que todos eles morreram... sempre do mesmo jeito, sempre queimados! Mas é ele! É Baddakai que quer me levar para perto dele! Sinto meus membros queimando... Deus... Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh

Jonas W. Ducini foi vítima de combustão espontânea, antes que os bombeiros pudessem tomar alguma providência, e morreu. Humberto Mendes morreu ainda àquela noite, da mesma maneira.

JORNAL “GENTE BRASILEIRA”, EDIÇÃO de 18 de SETEMBRO de 2008

O PROFESSOR ABELARDO MUNHOZ, DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, MESTRE EM LITERATURA INSÓLITA E ESCRITOR DE POEMAS INSÓLITOS, FALECEU ONTEM DE MADRUGADA, VÍTIMA DE UM INFARTE FULMINANTE. A SEGUIR, REPUBLICAMOS O SEU MAIS ESTRANHO TEXTO, ESCRITO POUCAS HORAS ANTES DE SUA MORTE, “O GRANDE TRANSLADO”, PARA VOSSO DELEITE

O Grande Translado, de Abelardo Munhoz

Ora, o que é real, senão aquilo que todos podem ver – e podem formar opiniões similares a respeito? Que é Deus, pois, uma idéia aglutinada, porém efêmera, insuficiente, insustentável? E o que dizer do amor? Do conceito por trás do amor?

Pois que eu nunca vi amor. Meu vizinho sim, um moço chamado Lauro. Grande conhecedor do amor era aquele rapaz que, encantador, teve muitas mulheres. Amou todas. E todas elas amaram Lauro de tal forma que, de alguma maneira, aos poucos, ofertaram-lhe a vida. Todas elas se uniram para provar seu amor cabal a um só indivíduo, e desta maneira produziram um ritual que tornou o amor tangível, duro como aço, e tão “visível” que mesmo um cego poderia “ver”.

“Qual dos cinco sentidos percebe o amor?” perguntei a Lauro, na época de nossa juventude. Ele, falastrão, metido a homem de muitos conhecimentos e idéias poéticas, respondeu: “Talvez o sexto sentido, meu caro amigo? Não, acho que os cinco sentidos são responsáveis. Quando ela me toca, por exemplo, sinto minha pele se arrepiar pelo veludo macio de seu contato. Quando ela se aproxima, sua fragrância abissal que parece sair de seus poros em forma etérea me inebria deixando-me zonzo. Quando me fala ao ouvido, sua voz desenha cores em linhas audíveis, ofertando-me regozijo maior que a música feita sob a efígie da garganta mais profunda da alma. Quando meus olhos encontram os dela em uma noite praiana, posso enxergar muito mais do que sua silhueta pode descrever, entendendo que fomos feitos para ficar juntos para sempre. E quando seus lábios tocam os meus, ah meu Deus, a umidade de sua boca me faz naufragar em um oceano de prazer, e me faz ter certeza que quero estar à deriva dela até alcançar meus últimos dias, e além...”

“Muito bonito” respondi a Lauro, irônico. Continuei: “Mas você errou, meu amigo. O único sentido que percebe o amor é o sentido figurado”.

Mas fui obrigado a mudar de julgamento à medida que nossas vidas foram comboiando. Primeiro, surgiu Camila – o primeiro grande amor de Lauro. Eu pude ver o quanto eles eram apaixonados e, no meio do fogo cruzado, servi de intermediário para ambos. Não me entenda mal, não havia segundos interesses nisso. Eram meus grandes amigos, os dois, e eu queria que a coisa toda desse certo. Resumindo: eu ouvi seus lamentos e suas aflições, quando as coisas não iam bem ao namoro. Eu era o médico do coração.

Que ironia, logo eu que nunca acreditei no amor! Mas Camila foi rapidamente apagada dos sentimentos de Lauro, e Patrícia surgiu logo em seguida. Eu odiava Patrícia, mulher complicada, consumista e possessiva. E infiel. Sim, ela me ofereceu seu corpo por nada mais que uma noite de diversão, quando Lauro estava fora de casa, dando a ela do mesmo remédio. Arrependo-me por traição cometida para com o meu amigo, mas não por ela ou por mulheres como ela. E o que é mais incrível: ela me disse que ainda o amava.

- Sim, tanto quanto ama a mim – disse-lhe eu, ainda em nossa área de coito – ou tanto quanto amo a ti e a todas as que a sua laia pertencem.

- Essa é a diferença entre homens como você e homens como Lauro – respondeu Patrícia, sorrindo com chasco, mas, ainda assim, lamentosa – Você serve para nós como refúgio, como uma máquina irrisória de poucas horas de folia, como se puséssemos uma fichinha e você tocasse minha música predileta. Lauro é a minha vitrola, a que precisa estar comigo pra sempre.

Eu fiquei um pouco magoado, mas não irritado. Hoje em dia temos MP3.

No fim Patrícia não foi nada. Veio e se foi como uma brisa de verão. Em seguida veio a Cláudia, depois a Lúcia, Maria Eduarda, Maria Rita, Ritinha, Giselda, Solange... e outras que não posso recordar o nome na idade em que estou. De todas as mulheres de meu amigo Lauro, só me envolvi mesmo com Patrícia, mulher que não mereceria menção, se não fosse tão importante para esse relato: ela, Patrícia, foi a única que não mereceu participar do Grande Translado.

Explico: Lauro ingressou em um grupo ocultista quando tinha uns trinta anos de idade. “Comunidade da Luz no Fim do Mundo” era o nome da seita, ou algo próximo disso. Na época ele me convidou, diversas vezes, e eu nunca aceitei. Nunca aceitaria estudar sobre algo desconhecido, à margem, perscrutando a vida dos mais ignorantes. Eu gostava de ser ignorante.

Aos poucos, usando seu charme e poder de persuasão incomparáveis, Lauro convenceu a praticamente todas as “suas” mulheres – que iam e voltavam para sua vida – a ingressar nesta mesma seita, que apresentava um plano doutrinário realmente atraente. O amor e a paz mundial eram os fundamentos máximos da religião, e talvez seja por isso que eu nunca tenha aceitado batizar-me nela. Eu nunca acreditei no amor, e muito menos na paz mundial.

Lauro se afastou da minha vida, e eu não fiz esforço para trazê-lo de volta. Da janela do meu apartamento eu o via deixar o seu pela porta dos fundos, rodeado de dezenas de mulheres (só mulheres!), carregando velas pretas acesas em direção ao galpão onde realizavam seus rituais. Eu não sabia do que se tratava, mas boa coisa não era...

E foi “por amor”, disseram muitos, que estas mulheres se deixaram queimar. Literalmente. No último desses rituais, Lauro banhou todas as suas namoradas – exceto uma – com litros de fluidos combustíveis, e usando da chama de apenas uma vela iniciou a chacina. Nenhuma delas fugiu... Deus me perdoe... Porque nenhuma delas fugiu? Que dedicação, que devoção pode fazer com que dezenas de pessoas permitam-se assassinar sem serem forçadas? Amor, eu suponho.

Mas o ritual não deu certo. A polícia detectou o início do incêndio no galpão, interceptou seu alastramento, mas não evitou a morte de vinte e sete mulheres. Lauro foi caçado com fulgor até aquela noite, e apareceu no dia seguinte carbonizado em um beco no centro da cidade onde vivo até hoje, Duque de Caxias. E até hoje muitas pessoas (inclusive eu) acreditam que a carbonização não foi suicídio, mas uma retaliação da polícia pelo crime brutal o qual Lauro foi autor. Tem até alguns malucos que preferem afirmar que Lauro foi vítima de um terror fantasmal que existe há séculos, conhecido como Horror de Fogo de Baddakai. Baddakai seria a personificação antropomórfica de um espírito maligno... em outras palavras, Satanás.

Não é do meu gosto entrar nesta parte religiosa do assunto. Eu gostaria apenas de deixar para você, leitor, o benefício da dúvida sobre os aspectos que tornam real a idéia do “amor”. Ele existe? É real e tangível ou apenas mais uma vertente do que nossa mente pode criar? O amor é verdadeiramente tão macio, doce e agradável quanto um pedaço de maçã, ou é amargo, terrível e tão surreal quanto o mítico Baddakai? Ops, espero não ter falado Baddakai três vezes...

FRAGMENTO DA TERCEIRA RECEITA DO MANUAL DE MAGIA NEGRA DE FALCOY, IMPRESSO PELA DIVISÃO DE CRIMES EXTREMISTAS DA POLÍCIA FEDERAL BRASILEIRA – SOBRE O RITUAL DO TRANSLADO

[...] sob o aspecto das forças naturais e do complexo grupo de membranas, músculos, ossos e mucos que constituem o corpo humano, entende-se que para o procedimento perfeito do translado, são necessários sacrifícios humanos. E se o iniciado pensar bem, verá que o sacrifício de dezenas de vidas humanas é um preço baixo a pagar, haja vista o grande prêmio que é contemplar Dis sem ter de se subjugar às asas da morte. E este não é o único prêmio: o Ritual do Translado guarda as chaves para o conhecimento mundano e espiritual do Sentido Existencial. Mas já falamos sobre isso, vamos ao preparo.

Em uma grande redoma de vidro ou barro deposite sangue de cordeiro. Seis mil litros bastam. Sob a redoma monte um fogareiro – deixe em fogo alto se sua redoma for de barro, ou em fogo brando se for de vidro. Misture com o sangue ungüento de reza, pó de dor, e treze ou mais chaves de cera com a cor da morte. O número de chaves de cera dependerá do número de criaturas iníquas dadas em sacrifício (e o número de pessoas dadas em sacrifício determinará o sucesso do procedimento do ritual).

Os seres humanos que participarão deste holocausto devem estar dispostos a tal. Seus sentimentos devem ser sinceros. Por isso, recomenda-se ao iniciado usar todos os seus entes queridos e pessoas que por ele nutrem sentimento de amor sincero, pois, se uma pessoa com este requisito não estiver neste grupo no momento do ritual, seu sentimento de amor pode se tornar contrário, inverso ao objetivo proposto para a evocação das aberturas do portão para Dis. Se o iniciado não reger por este alerta, as coisas podem correr erradas, e o ritual pode falhar, consumindo-lhe dezenas ou centenas de pessoas queridas e importantes para outros procedimentos mágicos vindouros. É um preço alto a pagar, e é meu dever alertá-lo.

E existe um outro risco, talvez maior que este último. Ao se abrir o portal para Dis, usa-se o sacrifício humano como dobradiça para manter este portal aberto. O mago entrará por ele, estudará, contemplará o que há de fascinante no inferno, e voltará para esta dimensão. Quando os corpos humanos carbonizados se extinguirem até que não haja aspecto humanóide, o portal irá se fechar automaticamente. Neste meio tempo, a falta de patrulhamento nesta fronteira Terra/Dis pode fazer com que demônios poderosos se libertem de sua dimensão. Criaturas como Ankhalar, Baal-Zebub e Kyrdrakim são fáceis de serem detidos e expulsos para o Plano das Sombras novamente... mas seres supremos como Azazel, Mefistófeles e Astarote, ao serem libertos, podem mudar o padrão de realidade do tecido dimensional onde se encontram. Por isso, ao se realizar rituais como o Ritual do Translado, onde se deve abrir um portal interdimensional, recomenda-se ao iniciado a supervisão de um mago poderoso, ou o uso de um item mágico de interceptação apropriado.

Contudo, se neste processo for liberado um Demônio Superior, como Lúcifer ou Baddakai, nenhuma oração, item mágico ou poder espiritual advindo de um mago poderá detê-lo [...]