O Silêncio dos mortos

"Ela estava ali entre nós. A espreita da primeira oportunidade,

para ir levando um a um. Covarde, impiedosa e traiçoeira."

Tudo aconteceu no final dos anos 80. As pessoas já comentavam apreensivas a chegada do ano 2000. A grande virada do milênio, onde muitos acreditavam que viria o fim do mundo. Na época eu fazia parte da diretoria do Esporte Clube Nacional de Vila Alpina, zona leste de São Paulo. O clube fora fundado em 1947, e orgulhosamente fazíamos parte da elite do futebol amador do estado. O time era formado por jovens na faixa etária que variava entre 16 a 25 anos.

Tudo era motivo para festas. Participávamos de campeonatos, torneios, festivais e outros eventos. Éramos sem dúvida alguma o orgulho do bairro. Uma verdadeira família que se reunia todos os fins de semana para as tradicionais churrascadas, regadas com muita cerveja e muito samba. Existia um respeito muito grande entre as pessoas, principalmente com a velha-guarda, que gostava de se reunir para contar tantas e tantas histórias acontecidas durante todos aqueles anos de existência do clube. Os jogos inesquecíveis, as grandes jogadas, os quebra-paus, que na época vencia quem realmente era bom de briga. Os namoricos com as moças do bairro, que às vezes terminavam em confusão, pois a moça era irmã de alguém do time adversário. Nós, os jovens, ficávamos ali em volta ouvindo as histórias, com os olhos arregalados, prestando muita atenção para não perder nenhum lance da narrativa, que às vezes já havíamos ouvido centenas de vezes. Porém não importava, era muito gostoso ouvi-las novamente e ficar sonhando, um dia, sermos nós os contadores de histórias, e saber que todos também nos ouviriam e nos respeitariam.

Infelizmente muitos daqueles jovens estavam com os seus dias contados. A grande desgraça estava por vir. Ela estava ali entre nós à espreita da primeira oportunidade para ir levando um a um. Covarde, impiedosa e traiçoeira.

Já estava-mos quase em 1990 quando tudo começou a acontecer. Em pouco tempo toda aquela felicidade se transformaria em um verdadeiro martírio para a maioria daqueles jovens cheios de energia e saúde, que em breve veriam suas vidas ceifadas impiedosamente pelo destino traiçoeiro que modificou tudo de uma hora para outra.

O uso da cocaína começou a se proliferar entre quase todos os jovens da época. Usavam a droga injetando-a na veia. Uma mesma seringa era usada por várias pessoas. A epidemia da AIDS estava se iniciando e poucas informações tínhamos ainda a seu respeito. Mal sabiam aqueles jovens que estavam injetando a morte em seus próprios corpos. Eu mesmo cheguei a presenciar varias dessas loucuras aonde a seringa, toda suja de sangue, ia passando de mãos em mãos como se fosse o passaporte para uma viagem maldita onde seus passageiros não voltariam nunca mais.

Vários jogadores e vários torcedores usavam a droga. Eu e mais algumas pessoas, que não fazíamos uso daquilo, sentíamo-nos indignados com aquela podridão. Fomos taxados várias vezes de otários. Tinha-se que ter muita personalidade para não deixar influenciar-se por aquela devastação. Era difícil, pois os jovens que não acompanhavam aqueles embalos encontravam certa dificuldade para enturmar-se, pois era moda entre eles o uso da droga e quem não usava era excluído da turma.

Funcionou como um efeito dominó. Um foi passando o vírus para o outro. Em pouco tempo estavam todos contaminados pela AIDS.

O primeiro a apresentar os sintomas foi um rapaz da torcida. Um jovem de porte atlético, respeitado por todos por ser bom de briga. Foi terrível, ficou parecendo uma caveira. Definhou, definhou, até morrer.

Depois vieram outros e muitos mais outros. Seria necessária uma lista de vários metros para colocar os nomes de todos que morreram. Era rara a semana que não morria um. Foi algo devastador. Jovens e mais jovens que eu vi crescer. Amigos de tantas baladas, onde se enxergava um divisor: o antes das drogas e o depois das drogas.

A doença era implacável. Impiedosa e maldita. A maledeta, como dizia Dona Carmela no velório do Guidinho.

----A maledeta levou o meu bambino! Ele tinha só dezoito anos! Maledeta! Doença maledeta!

Ficou quase impossível darmos continuidade as atividades esportivas do clube. Somente agora em 2002, alguns jovens, que na época eram ainda crianças, resolveram voltar com o time. Só que dessa vez com o futebol de salão.

Às vezes vou até a quadra para vê-los jogarem. Não é a mesma coisa. Sinto-me um estranho no ninho. Procuro por aqueles rostos que tantas festas fizemos juntos, porém não vejo mais ninguém. Aquela geração deixou uma lacuna. Não envelheceram para contar as suas histórias para a geração seguinte. Não ficaram comigo para serem testemunhas de tantas histórias que tenho para contar. Dói no coração olhar o álbum com as fotos do time e da torcida e ficar contando quem morreu e quem está vivo.

Resolvi contar esta história para que sirva de alerta para futuras gerações. Entristeço-me em ver, hoje, muitos jovens correndo atrás de sonhos que são interrompidos brutalmente, por entrarem, agora muito mais cedo, para o mundo das drogas, perdendo de vez sua própria identidade. Toda uma geração que poderia ter um futuro maravilhoso pela frente, mas que talvez, um dia, infelizmente apenas farão parte de um álbum onde alguém correrá o dedo para apontar quem está vivo e quem já morreu.