Pequeno lanche noturno
A noite estava fria, era uma dessas noites para se estar em casa, debaixo das cobertas ou tomando chocolate quente, mas as ruas estavam cheias. Milhares de crianças da noite ganhavam as ruas para se divertir e buscar um pouco do Éden no que lhes restava de um improvável paraíso, em busca de algo mais do que a senda do dia poderia lhes proporcionar. Buscavam prazeres escondidos e por vezes até proibidos; desfrutavam da liberdade que lhes era ofertada pelas densas trevas ao seu redor. Jamais durante o dia a liberdade individual seria tão comemorada, as pessoas regalavam-se com prazeres físicos e gastronômicos que mais lhes apeteciam. Mostravam ao restante do mundo que eles tinham permissão para se entregar aos prazeres epicuristas da carne mesmo nos tempos difíceis e de caos que atravessavam.
Em meio aos transeuntes que andavam apressados, Bianca caçava. Ela gostava de andar junto com as massas de gado mortal, gostava do seu calor, da vida que emanava de seus corpos e amava da sua adoração. Os mortais ficavam fascinados por sua arrebatadora beleza. Na verdade se não fosse o amuleto que Jacomo lhe presenteara, um talismã místico que nublava os sentidos, sua graça sobrenatural, sua monstruosa formosura, seria intolerável para um humano.
Tinha cabelos negros como o corvo. Lindos e longos, quedavam sobre os seus ombros como uma cascata de fios perfeitamente lisos e brilhantes, eram como um pequeno manto imperial, tecido pela noite e urdido com estrelas. Seus olhos pareciam dois discos de ouro reluzente, como portais do paraíso, prometiam delícias e semeavam juras ternas de prazer. Todos os traços do seu rosto eram absolutamente perfeitos, traços magistralmente delineados, por todos os ângulos e de todos os lados uma perfeição absoluta.
Percorreu todo o centro da cidade em busca de uma vítima que satisfizesse seu sofisticado paladar, para começar a noite ela gostava de mulheres jovens e bonitas, mas que fossem delicadas e submissas, uma qualidade rara nesses tempos de conquistas feministas. Foi na Avenida Paulista que Bianca a encontrou, uma linda loirinha, vestida de índigo e rosa, uma calça de veludo e uma blusinha de tricô, cachecol e touca, ela era perfeita. Parecia desamparada também, andava de um lado para o outro, olhava ao redor como um gatinho assustado, para as pessoas, para o relógio e novamente para a rua. Provavelmente esperando o namorado, pensou Bianca.
Renata não percebeu que estava sendo observada, no momento ela só conseguia pensar em André e no quanto ele estava atrasado para o primeiro encontro deles. Será que ele não vem? O que terá acontecido? Talvez eu não devesse ter aceitado seu convite assim, logo de cara. Ai meu Deus, será que eu estraguei tudo? Ela permanecia absorta nesses pensamentos quando Bianca começou a se aproximar. Mesmo quando a vampira estava ao seu lado, Renata não prestara atenção nela ainda, sabia que havia alguém ali, mas realmente não se importava, até que ouviu sua voz:
- Com licença - disse Bianca - Posso lhe falar um minuto?
A voz de Bianca tinha um timbre sobrenatural, profundo e delicado, não era ouvido e sim saboreado. Renata sentiu como se fossem cócegas nos ouvidos ao ouvir aquela voz, uma sensação estranha, gostosa, um reconhecimento, parecia que ela sempre estivera à espera de um som assim, que seus ouvidos tivessem sido criados para ouvi-lo. Demorou algum tempo até ela perceber que não tinha respondido.
- S-sim, claro.
- Qual é o seu nome?
Normalmente ela não conversaria com uma completa estranha, não lhe diria o nome e provavelmente se afastaria para uma loja, ou algum outro lugar iluminado e cheio de gente, mas aqueles olhos de âmbar confundiam seus pensamentos, ela não conseguia raciocinar claramente, não conseguia deixar de olhar para eles. Quanto mais olhava, mais se sentia atraída por ela, por seu rosto delicado de traços perfeitamente delineados, pelo mar sombrio dos seus cabelos, por toda a sua pessoa.
- Renata... - sua voz saiu-lhe mais insegura do que pretendia. Será que ela não ficaria incomodada com seus olhares?
- Renata, você não quer esperar seu namorado em um lugar mais aquecido?
- Meu... namorado? - Ela estava confusa, se esquecera completamente de André.
- Sim, você não está esperando seu namorado?
- Ele... não é... meu namorado.
- Oh, desculpe! Eu não queria me intrometer na sua vida.
- Não precisa pedir desculpas. Eu estava esperando um, hã... amigo.
- De qualquer modo, está frio aqui fora, não quer esperar em outro lugar?
Renata ia dizer que não esperaria mais pelo "amigo", mas também não queria ir embora. Se pelo menos a minha cabeça clareasse.
- Então, o que você acha?
- Eu acho que ele não vem mais.
Bianca olhou para a loirinha com ternura, parecia compadecida pelo seu drama.
- Você tem certeza?
- Tenho, tenho sim.
- E como você se sente?
Renata não saberia dizer. Deveria estar triste, afinal tratava-se daquele que ela pensava ser o único amor da sua vida, mas na verdade, não sentia nada. Parecia que estava sonhando.
- Eu acho que devia estar triste...
- Você está desnorteada, não é?
- Sim, acho que sim...
- Eu também já fiquei assim, acho que isso já aconteceu com todas nós.
- É?
- Claro, você quer conversar a respeito?
- Sim, por favor.
- Mas vamos sair desse frio, está bem?
E ela foi, seguiu Bianca como um cachorrinho, sem querer saber onde iam e o que fariam quando chegassem, estava ocupada observando sua mais nova amiga. Amiga? Eu nem sei o nome dela. Ela vestia uma roupa chique, parecia um sobretudo, só que tinha um gorro forrado de peles, ou ao menos é isso que Renata imaginava que fosse. Tinha um broche de prata no "sobretudo" e enfeites também de prata nas botas, tudo preto, como seus cabelos. Bianca estava falando com alguém pelo celular, mas era em sua melodiosa voz que a menina reparava, a cadência a encantava, as palavras eram pronunciadas com movimentos cuidadosos de sua boca, sua ampla e generosa boca, mas não grande demais, formava um quadro coeso com o resto do rosto, fosse um pouco maior, a boca estragaria o conjunto, mas estava perfeita, somente isso, perfeita.
Ao chegarem na Praça da República havia um carro esperando por elas. O carro, Renata reparara, era luxuoso, por fora parecia um daqueles carros antigões, como os do Al Capone, por dentro parecia um apartamento, tinha vídeo e um barzinho. Como chamavam isso mesmo? Tinha vidros escurecidos, bancos macios, pareciam forrados de veludo, uma delícia de se tocar. Aquela moça boazinha ficava só olhando ela explorar o banco com as mãos, parecia se divertir com a curiosidade da adolescente, chegou mesmo a perguntar se ela queria se deitar no banco. Parecia uma boa idéia, Renata gostaria de deitar naquele banco gostoso e aconchegante.
Rita observava tudo pelo retrovisor e viu a menina abaixar-se e desaparecer, além do alcance do espelho. Ouvia Bianca falar-lhe ao ouvido com sua voz macia e entorpecente. Ligou o aquecimento para que a garota não sentisse frio quando a vampira lhe tirasse a roupa e também colocou um CD no aparelho para abafar os gemidos.
Renata não era lésbica, não curtia mulher, não gostava dessas aberrações, não era. Mas queria sentir aquele banco gostoso afagar-lhe o corpo desnudo, os seios, as pernas, todo o seu corpo. Esse desejo foi crescendo, parece que aquela moça disse algo parecido com isso, que ela tinha liberdade, que ninguém estava vendo, que ela não se importava.
- Eu mesma faço isso de vez em quando. Ninguém consegue nos ver de fora. É estimulante não é? Vamos, deixe-me ajuda-la...
A menina sentia-se extasiada com a nova liberdade, jamais conhecera aquelas sensações antes. Esfregava-se com desembaraço no banco macio, a respiração saia-lhe entrecortada.
- Abra os olhos, Renatinha.
Ela achou seu nome encantador pronunciado daquela forma, obedeceu e ao faze-lo viu Bianca debruçada sobre o seu corpo nu, sua mão enluvada afagava-lhe o rosto. Era um tecido meio grosso, mas delicado, Renata não sabia o que era, mas sabia que gostava das sensações que experimentava. Os pequenos choques elétricos na pele onde a luva tocava, o calor agradável e as cócegas deliciosas que seguiam aquela mão. Inconscientemente Renata começou a movimentar os quadris e abrir as pernas. Quando a mão apertou-lhe os seios, gemeu alto.
- Oh, Deus! Meu Deus.
- Não, Renatinha, não é Ele...
Foi a própria Renata que encaminhou a mão enluvada para o meio de suas pernas.
- Aqui, traga seu fogo para cá.
Então os gemidos se transformaram em gritos, em brados. Rita foi obrigada a sair das ruas mais movimentadas, o som estava no máximo e ainda assim era possível ouvir os berros da garota.
Logo começaram os beijos, beijos frios. Como arrepiava todo o corpo jovem de Renata o contato com aqueles lábios. Ela podia ver Bianca beijando-lhe o seio, depois metendo-o na boca e em seguida algo gelado aliciando-o. Depois sentiu um prazer ainda mais delirante, aquela língua gelada encontrara sua toca e um frenesi delicioso apoderou-se dela. Renata empinou o corpo todo num ímpeto dissoluto. Ondas e mais ondas de gozo açoitavam seu corpo. Renata queria expressar-se, queria encontrar palavras para falar, então centenas de termos de baixo calão saíram de sua boca, alguns ela nem sabia o significado, mas disse assim mesmo. Sentia-se livre, maravilhosamente livre, completamente liberta.
Bianca começou a sentir a Sede se aproximando e não lutou contra ela como nos primeiros dias de pós-vida. Ela estava entre as pernas da menina quando seus instintos assassinos a dominaram. Uma névoa vermelha surgiu diante da sua vista e ela sorriu, um sorriso demoníaco. De repente não podia mais enxergar, o carro, o banco... tudo sumiu diante dos seus olhos, nenhum odor também, havia somente Renata, um desejo brutal, primitivo, animalesco tomou conta dela, Renatinha lhe pertencia. Abraçou-a, em sua paixão esmagando-lhe as costelas, os dentes arrancando um enorme pedaço da sua garganta. O sangue jorrou para dentro dela, escorrendo pelos seus lábios e manchando o estofamento, chegava ao coração inundando-lhe as câmaras, depois enviava seu calor aos membros gelados. Arrancou metade da cabeça engolindo a morte instantânea com o violento jorro de sangue da artéria rompida. Dobrou o corpo de costas sobre seu braço direito, os ossos estalando, enquanto com a mão esquerda partia o osso do peito e as costelas, enfiava a mão na cavidade quente e sanguinolenta para arrancar o coração. Ergeu-o acima da cabeça, apertando-o para que o suco vivo escorresse por entre seus dedos para dentro da boca aberta. Quebrou-lhe o osso para chupar o tutano, reduzindo os membros a pó.
Depois de saciada, olhou para a sua mão. Sempre ficava fascinada com a maneira que a pele sugava o sangue que caía sobre ela, logo não haveria vestígio de sangue sobre a sua pele, mas as suas roupas estavam um horror. O carro também precisaria ser lavado.
Rita estacionou o carro em uma rua escura, enquanto Bianca ligava para Lecroix. Sempre havia uma troca de roupa que ficava guardada no porta-malas, Bianca se trocou e ficou esperando Lecroix ir busca-la e Rita partiu com a incumbência de lavar o veículo.
Em menos de quinze minutos, seu amigo chegou. Era um vampiro bastante elegante o Sr. Jean-Baptise Lecroix, trajava-se impecavelmente, seus ternos eram especialmente confeccionados para projetarem uma imagem de poder, o que ele usava aquela noite era escuro, quase preto, camisa grafite, com as pontas da gola presas por um pino e gravata com uma reprodução da pintura que Michelangelo fizera nos afrescos da Capela Sistina, no Vaticano. Havia aperfeiçoado seu próprio modo de andar: um passo veloz, intimidador, queixo alto e coluna ereta.
Usava óculos escuros de armação moderna escondendo magníficos olhos cinzas que contrastavam com seu cabelo de um preto lustroso. Seu cabelo tinha um estilo europeu, cortado à navalha, muito bem penteado e engomado, escova e secador. Seu motorista, Alfredo, parecia um clone seu, no todo, parecia ter saído da edição quinhentos da revista Fortune.
Bianca esperou Alfredo descer e abrir-lhe a porta para entrar no carro. O Jaguar S-Type fora inspirado em outro clássico inglês, o Mark II de 1963, com suas quatro portas, bancos de couro Connolly e painel com aplicações de madeira.
- Boa noite Srta. Machiavelli - disse o vampiro, sua voz era intensa, densa, uma voz meio rouca, mas poderosa.
- Boa noite, Jean-Baptiste. - respondeu-lhe Bianca
- Estava tomando um lanche, mon chéri?
- Sim - respondeu a Antiga, lembrando do rosto de Renatinha - somente um pequeno lanche.
Na Avenida Paulista o jovem André esperava, desconsolado, a chegada do primeiro grande amor da sua vida. Desejava ardentemente dizer-lhe o quanto sentia por ter se atrasado, mas que a amava intensamente, independente do que seus pais pensavam ou que seus colegas lhe diziam. Simplesmente queria estar com ela o resto de sua vida.
?Onde está você, meu amor? Por favor, por favor... apareça?.