Vlad III da Valáquia
Depois de décadas enfurnado em seu casarão em Londres, Vlad III da Valáquia havia desejado conhecer o Novo Mundo. Segundo seus conceitos, uma viagem para Nova Iorque em nada diferia de uma viagem a alguma aldeia africana da qual só remotamente ouvira falar.
No entanto, ele havia se cansado de comandar a sua própria versão da Ordo Draconis, cansara-se de disputas mesquinhas de poder no Velho Mundo. Nada realmente mudava, os velhos jogadores tornavam-se mais arrogantes e os jovens eram uma decepção.
Queria entrar em contato com essa região selvagem para conhecer o animal dentro de si, uma busca por uma energia primal que talvez o motivasse a existir novamente. Temia que pudesse tornar-se um lamuriante, ou pior, voltar a mergulhar na loucura como acontecera séculos antes.
Uma visita da Filha da Alva fê-lo decidir-se. O anjo caído havia renunciado à sua terrível paixão pelos humanos e o triunvirato infernal. Queria viver uma vida mortal, queria dar-se de presente a liberdade de passear pelo esgoto, como ele chamava o mundo humano.
- Nova Iorque - disse o caído - Que tal te parece, Vlad? Vou para o centro de toda depravação, assim talvez eu não sinta saudades do inferno.
- Pensei que encontraria algo em Londres ao mudar-me - Vlad respondera - Mas encontrei apenas um punhado de caçadores a me agarrar os calcanhares daqui até meu castelo na Transilvânia.
- Deixa de ser pessimista, homem. - retrucou o anjo - Vem comigo e te mostrarei como esses humanos sabem se divertir. Nada de jogos de poder cósmicos com os quais atormentar a alma, nada de templários, de anjos, de molecagens do sangue novo... que pensas disso? Ademais quero te mostrar uma coisa: o Conde Vampiro.
- Dar-te-ei uma nova aparência, Vlad - continuou o anjo - Essa tua já não arrebata mais os corações dos humanos. Teu nariz é demasiado torto, demasiado grande; esses olhos negros como o carvão tornar-se-ão verdes como a esmeralda ou azuis como o céu; que tu achas de um cabelo branco como a neve? Serás jovem novamente, serás formoso (coisa que nunca foste) e não te cobrarei nada pelo favor. É a minha rebelião contra o inferno. Posso ser um anjo virtuoso e prestativo se me apetecer.
- Me dê duas novas aparências, bondoso anjo - respondeu Vlad, irônico - Uma imagem anciã a qual possam relacionar tanto ao saber quanto ao poder e uma outra jovem, elegantemente sedutora, facilmente associada ao vigor, à jovialidade, ao moderno. É a minha insurreição contra o sepulcro. Morro para os mortos vivendo entre os vivos.
- Amém - disse, por fim, o anjo.
A verdade é que adorara a Big Apple, adorara conhecer a si mesmo, ou melhor, conhecer o Conde Drácula. Durante meses Vlad se apaixonou perdidamente pelo Drácula em capa de ópera com o rosto de Bela Lugosi. Nunca cansava de se ver na tela, interpretado por Christopher Lee, por Frank Langella, por Klaus Kinski, por Gerard Butler, por Rudolf Martin e até por Leslie Nielsen. Passou a colecionar-se, a colecionar Drácula. Podia ficar noites a fio sem se alimentar, só assistindo aos seus filmes, suas séries, as aparições especiais em outras tele-séries (como na Buffy), lendo gibis, livros, net-books, jogando os games onde o objetivo era eliminar a ameaça do terrível Drácula. Ria como um demente quando conseguia vencer a si mesmo no videogame, mandava cartas e e-mails para criticar este ou aquele jogo, escrevia livros sobre Drácula que eram todos rejeitados pelas editoras pelo excesso de clichês que usava, mandava e-mails xingando os editores, afirmando que ninguém mais poderia conhecer o Conde Drácula mais do que ele, entrava em fóruns sobre vampirismo mítico, sobre vampirismo real, criava fóruns com temas esotéricos e inventava rituais, teorias da conspiração, sistemas de RPG, todos impublicáveis. Era xingado em várias línguas, chamado de leigo, de ignorante e ria de tudo isso.
Através dos seus escravos ficava sabendo as novidades no outro mundo, fora do mundo de Drácula, onde sua Ordo Draconis fora rebatizada como Societas Draconia e era dirigida por Alyosha da Família Ivanovna. Todas as Famílias Ancestrais continuavam suas pequenas intrigas e jogos, mas lhe pareciam um tanto patéticas quando vistas pelo lado de fora. Preferia mil vezes afogar-se no mundo fantasioso do vampiro Drácula do que voltar para essa existência doentia.
Claro que ele não conseguiu se desvencilhar completamente, a Filha da Alva mesmo não conseguira deixar os jogos de poder com tanta facilidade quanto aparentava. Logo os não-mortos americanos quiseram envolver Vlad em suas intrigas.
Todavia, antes da reunião que marcaria seu retorno à Conspiração, o velho vampiro decidiu assistir à um derradeiro filme do Conde Vampiro.
Não era um péssimo filme, algumas premissas importantes ainda estavam lá e o velho Abraham teria gostado do trecho inicial, apesar de tudo. Todavia, uma coisa incomodava Vlad: Por que manuscritos hebraicos?
Nada de Jonathan, nada de Whilhemina, mas Lucy estava lá e o velho Van Helsing também.
A idéia de Van Helsing como um ghûl-caçador era divertida, muito mais do que a daquela personagem da Marvel, o Blade-negão-soufoda-meio-vampiro-daywalker.
Gostava da Marvel, afinal, ela fizera um trabalho mais-ou-menos ao publicar "suas" histórias, apesar de sua aparência variar entre Bela Lugosi e Gary Oldman.
A grande maioria das "obras" depredavam sua imagem e a sua reputação, mas um vampiro tem que adquirir algum senso de humor senão enlouquece.
O que mais gostava no mito do Conde Drácula [imaginem, um conde] era o anonimato que ele proporcionava. Afinal ninguém poderia imaginar que o verdadeiro "rei dos vampiros" não fosse nem um pouco parecido com Christopher Lee, nem tampouco que morava provisoriamente numa cobertura duplex caríssima na Big Apple [Vlad gostava de altura].
Quando descobriu o motivo dos manuscritos hebraicos Vlad III saiu do cinema, na verdade foi expulso por não conseguir conter as gargalhadas.
Os humanos eram mesmo geniais.
E irreverentes.
Irreverência era uma coisa que Vlad jamais tolerara.
Os jornais divulgariam nota sobre o terrível incêndio naquele cinema, uma tragédia da qual ninguém sobrevivera. Negligência com certeza.
O prefeito dissera: "Sem comentários".
Vlad III voltou ao lar com a alma mais leve.
Suas três concubinas [um clichê... por que não?] cuidaram dele: o banharam, o vestiram e o adornaram para a noite que começava.
Jantara antes de ir ao cinema [ao pensar no cinema lembrava-se de uma frase: "Incêndios sempre acompanham essas criaturas". Onde vira isso?]. Tinha um lugar muito especial onde adorava bebericar iguarias raras: La Cathédrale.
Seus trajes deveriam ser impecáveis. Reunir-se-ia com sangue azul naquela noite e não podia se dar ao luxo de descuidar do figurino.
Eles o conheciam por Andrew. O nome de Vlad III e o título de Empalador não era menos misterioso para eles do que para a maioria dos humanos. Aqueles vampiros eram crianças com algumas dezenas de décadas de existência, todos vinham do lado ocidental da Europa e jamais haviam cruzado espadas com os turcos.
Não. Nenhum deles o conhecia. Nem o homem, nem sua crueldade.
Chegaram pontualmente atrasados como dita a boa etiqueta: de cinco a dez minutos de atraso, no máximo quinze e quase nunca vinte.
Depois de cumprimentar seus convidados e certificar-se de que todos haviam sido servidos [uma das ironias nas reuniões entre vampiros é servir sangue que eles jamais bebem] Vlad/Andrew sentou-se em uma poltrona e passou a observá-los.
O enxadrista dentro dele via as peças dispostas no imenso tabuleiro. Algumas estavam a seu favor, como Gregory por exemplo: ele encabeçava a seção ocidental dos Laboratórios Cyrus e descobrira novos paradigmas da Realidade Virtual e Cybertech. Outras, porém, pertenciam a alguns de seus misteriosos oponentes, como Jennifer, dos White Thorm de Nova Iorque [a mais poderosa família de vampiros do Estado]: ela era uma das Irmãs do Sangue e conduzia experimentos na área de transmutação, algo assim.
A reunião, uma trivialidade, estendeu-se por horas. Contratos de exclusividade, de exploração do gado humano no Brasil, garantias de proteção para determinadas raças de humanos [vampiros determinam a raça dos humanos pela qualidade do vitæ em seu sangue], restrições de caça, novas "leis", novas "tradições", etc, etc.
Quando finalmente tudo acabou Vlad, depois de dispensar seus serviçais, defrontou-se com o único inimigo que jamais fora sobrepujado.
Tudo quanto o vampiro fazia: as centenas de filmes que ele assistia e toda a indiferente trivialidade humana ardorosamente cultivada; os nababescos projetos que levariam séculos para serem concretizados, como uma tese filosófica que ele preparava mentalmente a respeito da mortalidade, ou os joguetes com vampiros ancestrais do Velho Mundo; a quase paranóica necessidade de manter-se atualizado sobre tudo o que mortais e imortais possam ter descoberto, criado ou conceituado e tudo quanto Vlad III pensava ou fazia nos últimos quinhentos anos tinha um só objetivo: manter-se "racional".
A irracionalidade, a loucura e o vício espreitavam-no à noite.
Beber sangue não era somente um prazer além de qualquer explicação, mas era também uma necessidade além de qualquer satisfação.
A vida de um vampiro poderia facilmente ser tragada pelo Vício do Sangue.
Vlad conhecera dezenas de vampiros com muito mais de oitocentos anos de idade, todos eles espreitando nas sombras como animais à cata de sangue. Sem inteligência detectável, sem o menor discernimento que pudesse ser tomado por "humano". Nada. Somente a Sede de Sangue. Alguns ele mantinha trancafiados nas masmorras do seu velho castelo.
Muitos outros foram tragados pela loucura.
O próprio Vlad passara quase meio século uivando e babando nos Cárpatos totalmente ensandecido antes de conseguir conter a Fera em seu interior.
Depois de quinhentos anos Vlad sabia que era o vampiro mais velho, ainda racional, que existia.
Sobrepujara todos os seus inimigos pelo simples fato de ter sobrevivido a todos eles.
Aquele outro Vlad, o monstro escondido no fundo da sua alma, sempre o acompanharia. Sabia disso agora. Não se iludia mais com o Caminho da Redenção que o levara ao Kilimanjaro séculos atrás.
Os inimigos mais atrozes do vampiro, ele entendia isso agora, eram a imortalidade e o sangue. A eles seguiam o desejo de descansar, a agonia de viver - e viver para sempre - e a agonia do não-ser, a perda da própria identidade em prol da existência.
Quem era o maior inimigo de Vlad III, o Empalador, o Conde Drácula?
Quem era o seu Judas?
Seu inimigo era o ser invisível que olhava para ele do outro lado do espelho.
Vlad III da Valáquia.
O Empalador.
O Conde da Transilvânia.
Quanto tempo, Vlad III se perguntava, ele poderia resistir a si mesmo, ao sangue e ao tempo?