INOCÊNCIA ROUBADA

O gesto de esfregar a palma das mãos sobre o rosto, sinal claro do derrotismo que o assolava, estava se tornando freqüente,infelizmente. A sensação que tinha, era de que havia envelhecido uns dez anos nas últimas semanas. Ao tocar os cabelos, sentia que estes estavam mais escassos, a barba por fazer denunciava a falta de tempo que lhe consumia. Mais uma vez estava diante da mesma cena, um corpo infantil, ali, estirado, ele não precisaria nem ouvir a perícia, já sabia do que se tratava, de certo, naquele corpo estaria faltando um órgão, e ele apostaria todas as fichas que seria o fígado.

Sentia-se envolvido numa maldita lenda urbana, ou em um roteiro de quinta categoria, daqueles filmes estúpidos e preconceituosos. No entanto, para seu infortúnio, não poderia voltar para a realidade com o acender das luzes, ou passar adiante a estória, como se a tivesse vivido, sem culpa alguma. Pois, junto daquele corpo, bem como em todos os anteriores, faltava todo o cenário que compunha o enredo, de acordo com a tradição popular dos grandes centros. Onde estaria a banheira com gelo? A vítima não deveria estar viva? E o bilhete? Afinal, se fosse uma quadrilha de tráfico de órgãos, como algumas produções cinematográficas sugerem, ou como a imprensa sensacionalista está divulgando, qual seria a razão de não estarem retirando os outros órgãos dos corpos?

O investigador, calçado pelos anos de experiência, estava tentado a seguir uma outra linha de raciocínio, para ele, aquelas crianças foram vítimas de um maníaco, o qual estaria utilizando um artifício para dissimular e criar pânico, afinal, qual seria a razão de traficar os órgãos apenas de crianças?

Ele havia definido o perímetro de onde ocorrera a maior parte dos ataques, mas sabia que fazer uma ronda por tais lugares seria insuficiente para que obtivesse êxito em sua busca, precisaria de algo mais, talvez um pouco de sorte ajudasse, mas todas as pistas que havia seguido, oriundas das denúncias feitas através da linha telefônica que fora criada especialmente para o caso, se mostraram infrutíferas.

Seguiu com o carro até o parque que ficava localizado na parte central da cidade, este possuía uma grande extensão, as duas vítimas que apareceram ali fizeram com que a freqüência no local tivesse diminuído drasticamente nos últimos dias, no entanto, o policial, talvez movido por uma falta de diretriz, ou por intuição, decidiu caminhar por ali, a noite estava escura, quem sabe não fosse atingido pela tal sorte que tanto desejava. Uma cena que se passava na extremidade oposta do parque poderia sugerir que tal possibilidade fosse, de fato, real.

Um carro negro com dois ocupantes espreitava o que eles descreviam como vítima perfeita. Um velho, com aparente fragilidade, e um menino, de mãos dadas, preparavam-se para entrar no parque, talvez no intuito de cortar caminho até o outro bairro. O veículo parou, e os dois indivíduos desceram e seguiram no encalço da provável vítima, a maior parte dos postes de energia elétrica estava inoperante, o que denunciava a ausência do poder público, e o que, obviamente, favorecia ações como a que estava para acontecer.

Será que aquele senhor não assistia televisão? Será que não lia os jornais? Esse era o pensamento dos homens que o seguiam, cada um com uma faca de caça na mão, e com o objetivo traçado. Porém, o velho e o garoto, de súbito, haviam desaparecido, mas como? Estavam ali na frente, nesse instante! Tomados pelo espanto, começaram a procurar por entre os brinquedos e as moitas que surgiam espalhados aqui e ali, de repente, um deles viu algo e chamou a atenção do comparsa, era um rastro de sangue que terminava em uma poça, próxima de um banco, no qual estava depositado o corpo do garoto, mas onde estaria o velho? Não tiveram tempo para pensar.

- Larguem as facas – disse o policial, apontando uma pistola para a dupla.

- Mas...

- Larguem as facas! Vocês estão presos! Assassinos de crianças.

O homem da lei estava satisfeito pela sorte que finalmente tivera, afinal, se não fosse o aviso do velho que ele encontrara no outro lado do parque, teria fracassado mais uma vez.

E lá, na outra entrada, o velho que fizera a boa ação caminhava apressado, carregava uma saco jogado no ombro, e dentro desse saco, envolto por uma embalagem plástica, estava o fígado do garoto morto. O velho sofria de um mal incurável, que lhe atribuía uma aparência repugnante, sua pele apresentava um tom amarelado, quase verde, andava encurvado, devido as dores que lhe acometiam, dores estas que eram amenizadas quando se alimentava de fígados humanos, e de crianças, uns diziam que era uma maldição, a verdade, só ele possuía.

Sua jornada havia terminado naquela cidade, deveria mais uma vez se mudar. Antes de sumir nas ruas escuras, pôde ainda notar um mendigo sentado sob uma marquise, do lado dele estava um menino, ao vê-los o velho exibiu um sorriso cínico, fez sinal de silêncio com o dedo indicador e seguiu seu caminho, o garoto olhou para o pai e disse:

- Quem era pai?

- Lembra “fio”, das “istória” “qui” o pai contava na nossa “cidadi”?

- Lembro pai.

- Pois é. É ele “fio”, ele tá em todo “lugá”...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 13/02/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1437532
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