Instintos Noturnos

Nunca me esquecerei quando minha amiga Ângela chegou à pequena cidade universitária onde sempre vivi, para cursar Sociologia. Conhecemo-nos no momento da matrícula, quando ela me solicitou informações sobre documentos e localização dos pavilhões do edifício, que era o maior do local. Eu já havia cursado dois anos de Direito e esperava contentar minha família, todos de origem judaica. Nada mais óbvio que um judeu quieto e uma novata tímida para se tornar grandes amigos; para completar um trio, só mesmo com o Andrew, colega de curso, vindo da Alemanha, que falava nosso idioma com muito sotaque e de forma sofrível, mas que era um grande coração.

As moças da faculdade tinham certo ciúme de Ângela, pois de fato, ela era muito bonita: branca, cabelos de um loiro acinzentado e olhos amendoados, porte atlético. Mas não me convém ficar falando sobre seus atributos físicos, já que grandes amigos nós somos.

No entanto, toda essa aura de felicidade e companheirismo que nos unia, um dia seria destruída por conta de acontecimentos trágicos e impressionantes; e com base no relato de minha amiga e das circunstâncias que eu mesmo presenciei, é que principio a contar o que segue...

Na faculdade, havia um rapaz chamado Lúcio, que também fazia o estilo mais recatado, soturno mesmo. Um sujeito alto, moreno, cabelos bem lisos penteados num corte moderno, olhos castanhos daqueles que intimidam. As mulheres o achavam irresistível, mas nunca era visto com qualquer uma delas.

Durante algum tempo, Ângela levou sua vida sem sequer reparar a presença de Lúcio, ainda mais que estudavam em turnos diferentes. Mas, talvez por uma fatalidade, ou talvez porque realmente as coisas devam acontecer por uma força maior que nosso mero entendimento, eles se encontraram na biblioteca da faculdade.

Existiam ali vários corredores repletos de prateleiras de livros, enumerados por ordem dos cursos, alguns novos, outros antigos, empoeirados. As estantes mais escondidas de todas eram as que abrigavam os livros da área de Psicologia, Sociologia e Filosofia. Lúcio era estudante de Filosofia.

Casualmente, os dois seguiam em direções contrárias e distraidamente pegaram uma obra de Feuerbach, ao mesmo tempo. Uma química, um fogo maior, fez com que seus olhos se encontrassem neste instante. Todo o material que carregavam nas mãos foi ao chão e ficaram com os dedos entrelaçados segurando o livro. Enrubescida, Ângela recolheu sua mão e fitou o desconhecido a sua frente. No princípio, ele pareceu lívido, mas agora lhe sorria. Lúcio retirou os óculos que usava apenas para ler e, encantado com a beleza da moça, teceu comentários sobre um trabalho que necessitava fazer utilizando aquele livro, “A Essência do Cristianismo”. Ela também necessitava do mesmo exemplar para outro trabalho. Gentilmente, Lúcio propôs que dividissem a obra, estudando juntos todas as tardes ali na biblioteca, assim poderiam debater sua temática e seria mais enriquecedor para os dois.

Ângela ficou fascinada e aceitou o convite. Tão logo se encontrou com Andrew e comigo, contou-nos sobre Lúcio. Eu tinha realmente uma sensação de mal-estar com relação à presença dele, mas nada que se comparasse com a repulsa que Andrew sentia. Para ele, Lúcio era um sujeito estranho, com ar egocêntrico e várias outras denominações pejorativas. Não me era estranho o fato de saber que Andrew se afeiçoara a ela de forma bem mais profunda que uma amizade, e também que não era correspondido; pois nossa amiga era sincera. Ficou um pouco chateada com as demonstrações de ira de nosso amigo, mas guardou para si o que realmente estava pensando.

Em casa, Ângela refletiu várias vezes sobre o encontro na biblioteca. Por mais que criasse expectativas, sabia que o convite poderia ser mera formalidade de um rapaz estudioso; era possível ele estar mais concentrado nos estudos do que numa jovem como ela e que realmente estivesse precisando muito do livro, mesmo tendo sido educado e deixado o exemplar com ela.

No entanto, os olhos de Lúcio não saíam de sua mente. Era um olhar arrebatador, que a fez estremecer por inteiro. Lembro de Ângela me contando esses fatos ao telefone com certa ingenuidade e malícia, e lembro principalmente de uma impressão que me relatou.

Ao sair da biblioteca, Ângela percebeu que Lúcio continuou por lá e por um rápido lance de olhos, imaginou que ele cheirava a própria mão como se sorvesse o melhor dos perfumes. Seria seu cheiro que teria ficado nas mãos dele? Ela não saberia dizer. No momento que ela me contou isso, dei risada, brinquei, alertei para não se iludir, mas nem sequer sonhava o que significava aquele gesto.

Várias vezes, Lúcio e Ângela se encontraram na biblioteca para estudar e para o desespero e ciúmes de Andrew, que muitas vezes se acercava do casal e jurava que o outro olhava de forma inapropriada para nossa amiga. Isso o deixava num ciúme que beirava a completa insensatez, muitas vezes ele alegava que Lúcio poderia ter a ver com crimes financeiros e mortes estranhas que aconteciam em nossa pequena cidade.

De fato, era uma época conturbada. Algumas pessoas estavam perdendo suas propriedades enganadas por golpes que nem elas mesmas sabiam dizer como haviam acontecido; geralmente se endividavam profundamente e sem razão, e quando menos se esperava passavam tudo às mãos dos corretores de imóveis da região. Um desses corretores era o pai de Lúcio, por sinal; mas nunca tínhamos escutado qualquer queixa contra sua família. Mas, o que estava chocando realmente a população eram notícias de mortes horrendas envolvendo fazendas inteiras de gado, animais de grande porte e pessoas, em noites de lua cheia. Os animais eram encontrados completamente destroçados, junto aos matagais extensos e alguns na proximidade da floresta que se estendia por detrás da universidade. As pessoas encontradas mortas no mesmo estado e nos mesmos locais, em sua maioria eram os habitantes de vida noturna da cidade, como mendigos, bêbados, vigias e em sua maioria, prostitutas. De início, imaginou-se que poderia ser algum assassino psicopata, mas evidências de pegadas e pêlos, fez com que a polícia desconfiasse da existência de lobos nas imediações. Um alerta foi emitido para que as pessoas não ficassem andando por tais locais tarde da noite. Buscas foram realizadas na tentativa de localizar os animais, mas nenhum fora encontrado. Os jornais traziam a todo instante notícias e artigos sobre as mortes.

Andrew muitas vezes teve a capacidade de pegar esses jornais, mostrá-los à Ângela e dizer que Lúcio poderia estar envolvido em algo. Ela ria, pois em seu coração, sabia o que ele sentia e o respeitava, mas sempre refutava estas observações.

Não havia como negar que Lúcio a fascinava. Ela comentava, principalmente comigo, sobre o teor das suas conversas. De fato, ele era inteligente e tinham gostos semelhantes. Numa ocasião, Ângela comentou sobre o convite que ele lhe fizera para saírem certa noite. Eu não apoiava esta relação que ia se estreitando cada vez mais, mas também não condenava; simplesmente respeitava minha amiga; e para complicar, de brincadeira, tentando trazer Andrew para a realidade, contei sobre o futuro encontro noturno do casal.

Como Andrew ficou pasmo! Durante alguns segundos mastigou a informação e depois, preocupado, chamou-me a atenção para os fatos trágicos que vinham ocorrendo. Todos seus argumentos eram coerentes, pois como um rapaz convida uma moça a sair tarde da noite, véspera de lua cheia, com o risco de se deparar com lobos ou ainda bandidos? Comecei a ficar pensativo depois disto e ele me convenceu a seguirmos o casal, para segurança de nossa amiga.

No dia do encontro, seguimos todos os passos de Ângela. Andrew tinha mesmo razão em se preocupar, pois após tomarem um sorvete, Lúcio segurou-lhe a mão e a conduziu até uma praça, mal-localizada e cercada de árvores, aonde inclusive, dois corpos chegaram a ser encontrados. Sei que, possivelmente, os dois se dirigiam ali para ter mais privacidade, mas era algo fora de propósito na atual circunstância. Considerei Lúcio inconseqüente.

Quando eu estava imerso nestes pensamentos, Andrew puxou-me pelo braço, mostrando o casal a se abraçar. Sua atitude foi tão brusca, que ele acabou por escorregar e fazer barulho, revelando nosso esconderijo atrás de uma árvore.

Ângela estava visivelmente contrariada, mas Lúcio parecia ainda mais transtornado. Caminhou em nossa direção, disse impropérios aos quais Andrew rebateu. Chamei-lhe a atenção para sua imprudência em trazer nossa amiga a tal local. Ele escarneceu de nossa preocupação e, com um sorriso estranho nos lábios, disse para que Ângela então nos acompanhasse e que só o procurasse quando não estivéssemos por perto para lhe atrapalhar. Tirou seu casaco de couro, cobriu os braços dela que tremiam de frio, e em nossa frente beijou-lhe arrebatadoramente, dando as costas logo em seguida.

Eu não fiquei muito estarrecido com a cena, meus pensamentos se concentraram no perigo que poderíamos estar correndo parados ali, no escuro e cercado por vegetação fechada. Andrew se pudesse, naquele momento, teria se batido com Lúcio, mas a cena do beijo o deixara petrificado e Ângela, totalmente confusa. Puxei ambos em direção às luzes e à rua para que fossemos embora o mais rápido possível.

Sei que Ângela ficou chateada conosco por a termos seguido, e com razão; porém, do mesmo modo, compreendia nossa preocupação. Ela me confessou que já estava apaixonada por Lúcio, que ele lhe despertava sensações indescritíveis, que a forma como a tocava apertado, deixava-a fascinada. Nunca duvidei dos sentimentos dela para com ele, mas não conseguia sentir mais a mesma segurança com relação a Lúcio. A forma como nos olhara, com ódio imenso, e depois aquele sorriso sarcástico, não saíam da minha mente. Tive medo de estar ficando neurótico como Andrew, pois pensamentos que ele poderia estar querendo se aproveitar dela por ser nova na cidade invadiram meu espírito.

Retomamos nossas atividades como de hábito, depois deste incidente, mas não os vimos mais juntos. Ângela não tocava no nome de Lúcio e permanecia boa parte do tempo conosco, imersa em seus próprios devaneios. Um dia, encontrei-a de cenho franzido, eu estava sozinho e ela aproveitou para me confidenciar que não tinha se afastado totalmente de Lúcio, mas que uma notícia a perturbara. Escutara seus pais reclamando junto com outras pessoas de alguém com o sobrenome Wolfgang, e tinha quase certeza que esse era o sobrenome de Lúcio. Estava determinada a procurá-lo e tirar a história a limpo.

No dia seguinte, quando a encontrei, perguntei se havia realizado o que me dissera. Ângela não encontrara Lúcio em parte alguma, nem na faculdade, nem em sua casa para onde ligara várias vezes. Não entendia o sumiço. Andrew se aproximou, bastante agitado, nos questionando se sabíamos das últimas aventuras dos lobos. Realmente não sabíamos, ninguém melhor do que ele mesmo para saber, pois seu pai era policial. Segundo seu relato, a polícia estava fazendo a patrulha da cidade, à noite, quando, próximo ao bosque, encontrou uma alcatéia, com lobos enormes. Havia cinco deles no total. À distância, os policiais atiraram e chegaram a alvejar um deles, mas o animal estava tão agitado, que mesmo com dificuldade conseguiu fugir.

Ângela ficou sobressaltada com a notícia, pediu-nos desculpas e agradeceu por estarmos lá naquela noite. Prometeu que não mais se aventuraria em tais locais.

Alguns dias depois, houve um feriado que coincidiu com o final de semana. O tempo estava frio e chuvoso e o único que vi, nestes dias, foi Andrew que sempre me visitava. Não recebi notícias de Ângela, até que num sábado à noite, madrugada, acordo com o telefone tocando. Eu não conseguia entender quem estava falando, o sono era intenso, bem como o frio. Mas quando notei que a voz era de Ângela e que ela chorava amargamente, despertei no ato. Pedi que se acalmasse, que me contasse o que tinha acontecido e ela assim o fez.

Lúcio adoeceu por estes tempos e ligou uma vez apenas para ela, para explicar o motivo de sua ausência. Preocupada, Ângela se dispôs a visitá-lo. Lúcio morava numa casa, próximo às montanhas que rodeavam a cidade. Era uma casa grande e antiga.

Chegando ao local, Ângela tocou várias vezes a campainha até ser atendida por uma mulher muito bonita, com traços que lembravam o rapaz, era a mãe de Lúcio. A mulher tratou-a com extrema amabilidade e a conduziu ao quarto do filho.

Lúcio estava deitado num quarto escuro e fechado, iluminado por um abajur de luz vaga e oscilante. Parecia bastante debilitado, mas isso foi até ver que era Ângela que estava em seu quarto. Imediatamente sentou-se na cama, devorando-a com os olhos. Convidou-a para se sentar ao seu lado, e sem muito conversa, seduziu-a com carícias e beijos. Embora se deleitando com a situação que estava vivenciando, Ângela o achou estranho. Sua aparência abatida se transmudara num semblante vívido de desejo; os olhos pareciam avermelhados, talvez por estar irritadiços; os dentes aparentemente mais salientes, o corpo um pouco mais magro e a barba por fazer; as unhas estavam grandes e algumas vezes ele chegou a arranhá-la enquanto a tocava mais forte.

Lúcio a convenceu que ninguém entraria em seu quarto e a despiu. Ângela não era uma garotinha inexperiente e se entregou ao prazer que sentia, que na hora era imenso. Ela parecia pensar e pausar bem suas falas ao me contar estes fatos.

Nunca em sua vida, ela experimentara tamanha paixão como a que Lúcio lhe demonstrava naquele momento, enquanto a possuía. Ele mal a deixava tocá-lo, pois prendia seus braços e devorava seu corpo com beijos intensos, bem como esfregava o nariz pelo pescoço, seios e ventre dela, extasiado com o cheiro da sua carne. Era como se ela fosse o mais delicioso dos alimentos para uma alma faminta.

Em determinado momento, Ângela se soltou e acariciou seu peito másculo e recoberto de pêlos. Os dois arfavam juntos, o calor e o suor dos corpos se misturando. No auge do prazer, Ângela gemeu e balbuciou que o amava demais.

Isso foi o suficiente para que Lúcio estacasse, imóvel, dentro dela. Ângela sentiu que ele estremeceu por inteiro, como se todo o seu mal-estar tivesse retornado. Ele levantou-se subitamente, nu, abriu a porta e pediu que fosse embora imediatamente, alegando que ela não tinha o direito de lhe dizer aquilo. Ângela não conseguia entender a causa daquele repúdio, correu até ele e tentou abraçá-lo, mas Lúcio com uma força sobre-humana a empurrou e gritou enlouquecido que fosse embora, que o deixasse em paz. Aos prantos, Ângela recolheu suas coisas e partiu. Desconsolada, desesperada, temerosa, resolveu me ligar em busca de ajuda.

Confesso que a sinceridade dela, a princípio, ao me descrever com exatidão suas intimidades tinha me deixado constrangido, no entanto, não podia me recusar a prestar-lhe solidariedade. Também fiquei sem entender a reação dele, pois não havia explicação para que ele a expulsasse de sua casa quando ela, totalmente entregue, lhe confessara seu amor.

Sem saber ao certo o que dizer, aconselhei-a a tentar repousar e já que ele a destratara, deixasse que Lúcio a viesse procurar por vontade própria para se explicar. Ângela acatou o que eu disse e desligou.

Não consegui dormir depois da sua ligação, por mais que tentasse. Tudo o que ela me contara, revi em mente e fiquei mal comigo mesmo por me permitir pensar mais profundamente naquele assunto. Não que eu tivesse algum interesse amoroso por Ângela ou tivesse me excitado com a narração, nada disso. Simplesmente não entendia que uma frase como “eu te amo” pudesse deixar tão transtornado um homem.

Depois dessa ocasião, não encontramos mais Lúcio, e ficamos sabendo que ele tinha requisitado sua transferência. Andrew tentou animá-la muitas vezes com suas brincadeiras e sua atenção, mas não eram suficientes para que Ângela voltasse a sorrir espontaneamente.

Geralmente, Ângela desabafava seus temores comigo, por saber que Andrew nutria um sentimento mais forte por ela, e então tentava poupá-lo. Ela me confessou que apesar da sua tristeza, duas coisas a estavam preocupando: os negócios de sua família estavam muito mal e talvez seus pais tivessem que se desfazer de vários pertences e até mesmo mudar para uma casa mais modesta; outra coisa que a incomodava era que de uns tempos para cá, sempre se sentia acuada, vigiada, como se alguém a estivesse seguindo. Aleguei que Andrew não poderia ser, que ele havia se comprometido a não mais fazer isso. Eu sabia que no fundo, ela desejava realmente que Lúcio a estivesse seguindo, mas tentava, com bravura, não se iludir.

Os fatos foram caminhando desta forma até a família de Ângela ir à falência. Tiveram de vender suas propriedades e veículos, mas o que foi realmente alarmante foi que o pai de Lúcio, era responsável por aquela situação. Como corretor de imóveis e prestando serviços de agiotagem às escondidas, conseguiu roubar não apenas uma família, como umas seis da cidade. Logo em seguida, não se teve mais noticias dos Wolfgang; quando se procurava, nunca estava no escritório e nem sequer na própria casa.

Esse foi um baque muito forte para minha amiga, que se sentiu totalmente enganada. Ela acreditava que cada atitude de Lúcio se relacionava com o fato, principalmente o que havia acontecido no último encontro com ele.

Ela teve de se mudar com os pais e as irmãs para um sobrado modesto, vizinho de uma chácara abandonada. No dia em que mudou, Ângela me relatou que chegou a ver Lúcio escondido por trás das árvores e que tentou correr ao seu encontro para conversar sobre o acontecido, porém ele havia fugido logo em seguida numa velocidade impressionante.

Na universidade, os assuntos se dividiam entre as constantes mortes e ataques de feras e o golpe dos Wolfgang na cidade. A polícia não conseguiu incriminá-los por falta de provas, já que as pessoas enganadas tinham confiado plenamente e assinado documentos em favor do que acontecera. Soube-se depois, por um colega de curso de Lúcio, que os Wolfgang partiriam numa sexta-feira, de barco.

Ângela correu até o porto que ficava na cidade vizinha e conseguiu avistar a família partindo; eles aparentemente estavam felizes e com semblante tranqüilo. Apenas Lúcio, encostado a amurada, aparentava certa tristeza até o momento em que a avistou. Ângela me contou que o olhar dele continha uma mistura de ódio e susto para com ela.

Passaram-se algumas semanas, e apenas animais pequenos, como cães e gatos haviam sido encontrados mortos em situações semelhantes aos outros sucedidos. Nenhuma pessoa havia sido atacada por qualquer criatura, mas restava o medo da população que ainda evitava perambular durante a noite.

Ângela passou a ter crises de insônia. Ficava pensando na situação difícil que sua família enfrentava e no que os Wolfgang haviam feito. Numa dessas noites muito claras, de lua cheia, ela ouviu claramente o uivo de um lobo em volta da sua casa. Seu coração disparou, ao lembrar das notícias envolvendo os ataques. Correu a trancar a janela, e qual não foi seu espanto quando, junto à parede que dava para seu quarto, viu uma criatura horrenda e peluda olhando fixamente para ela, com enormes olhos vermelhos.

Aquele era o maior lobo ao qual ela já tinha visto; nenhum representado em livros ou canais de televisão se assemelhava ao porte daquela criatura assustadora. Para apavorar ainda mais, o animal andava arqueado sob duas pernas, quase como um homem corcunda. Suas patas dianteiras pareciam enormes mãos humanas com garras e pêlos. O focinho era enorme, com dentes protuberantes e afiados. Ângela soube que aquilo não poderia ser nenhuma espécie de lobo conhecida, ao menos se acreditasse que estava praticamente frente a um lobisomem.

Trancou a janela correndo, e pôde ouvir seu pai, que também vira a fera, abrir a porta da casa e dar tiros no escuro. Como estava na parte superior, Ângela viu a criatura novamente lhe encarar e sair correndo enfurecida e assustada para dentro do matagal.

Sua mãe, apavorada, tratou de puxar o marido novamente para dentro de casa e trancar a porta. Suas irmãs correram para ver do que se tratava e a casa se agitou com todo aquele barulho. Ângela não saiu da sua alcova, e ficou pensando no modo como o lobisomem a encarara, não era um olhar estranho.

Os pais de Ângela foram à delegacia prestar queixa, mas ninguém lhes dava crédito por uma visão tão impressionante. No entanto, outros moradores também afirmavam que poderia mesmo ser um lobisomem, e as lendas passaram a crescer, sempre com alguém que já dizia ter visto um ser semelhante.

Ângela não tinha dúvidas sobre o que vira, e compartilhou conosco seus temores. Não duvidamos da palavra dela, era nossa amiga, não havia porque acreditar que ela estivesse enganada quanto a isto. Andrew ficou pensativo e propôs que fossemos até a delegacia ver os laudos e processos envolvendo as mortes misteriosas, pois era plenamente aceitável que os fatos estivessem relacionados.

Por ter um pai policial, a visita de Andrew em nossa companhia à delegacia não causou espanto a ninguém e muito facilmente tivemos acesso aos recortes, documentos e imagens. As fotos, melhor analisadas, realmente nos fizeram constatar que um lobo comum não daria conta de tamanha atrocidade, por mais fome que sentisse. As mordidas eram enormes, bem como as marcas das garras. Outro dado interessante é que as mortes geralmente envolviam seres e pessoas de hábitos noturnos. Em sua maioria, as testemunhas retratavam que as mesmas pessoas sempre tinham sido vistas acompanhadas por alguém até a noite do crime, e em geral, eram pessoas solitárias. Passamos efetivamente a crer que fosse um lobisomem. Qualquer um conhece lendas envolvendo tais criaturas e sobre quem elas são. Passamos a confabular quem poderia ser, e nada era mais óbvio do que a família de Lúcio.

A família de Lúcio, embora sendo bem abastada e influente nos assuntos imobiliários, não era muito vista em público e geralmente eram contidos, reservados, não se sabia muito da vida dos seus integrantes, até o escândalo do golpe na cidade. O que mais nos aterrorizou é que o próprio sobrenome da família remetia a algo do gênero: Wolfgang.

Os fatos coincidiam de forma impressionante, com exceção que ainda mortes de pequenos animais assombravam a cidade; porém os óbitos funestos, em longa escala, não estavam mais acontecendo.

Ângela ficou consternada com nossas cogitações. Não conseguia acreditar, ou pelo menos, tentava negar para si mesma tudo aquilo. Pediu que mantivéssemos segredo sobre isso, pois não era pertinente dar crédito a tais ocorrências e poderíamos estar julgando como assassinas e monstros, pessoas que nada mais eram do que vigaristas.

Talvez por medo, talvez por ter se impressionado com nossas divagações, Ângela cismou que a fera vivia a espreitar sua janela em noites de lua cheia. Sei que no fundo do seu coração, ela tremia em pensar que tal criatura pudesse ser Lúcio.

Para tentar esquecer todos estes acontecimentos, nos unimos mais e acabou que Ângela e Andrew começaram a namorar. Ficava contente por meu colega, mas também sabia que Ângela tentava encontrar no amor dele o esquecimento e a fuga das lembranças do que passara com Lúcio.

Como quaisquer casais de namorados, começaram a fazer suas incursões noturnas. Pessoas não estavam sendo mortas mais por ali e muitos chegavam a supor que o lobo, ou a fera que tinha feito aquele estrago, talvez tivesse morrido.

Na última vez em que vi Andrew, ele estava empolgado, pois naquela noite completariam três meses juntos e ele planejava fazer algo especial na companhia da namorada.

Que dia trágico nos esperava então! Na manhã do dia seguinte, o corpo de meu amigo foi encontrado completamente aos pedaços no rumo da floresta e das montanhas. Corri a casa de Ângela, completamente lívido, e a abracei. Ela chorava imensamente e colocava a culpa em si própria. Pedi que me contasse o que havia acontecido e ela me relatou que saíram e, tarde da noite, quando retornaram a pé, ele se despediu e partiu sozinho. A dor que sentíamos era imensa e ambos buscávamos respostas onde não havia. Todos falavam do ataque como culpa dos lobos, mas Ângela e eu temíamos que algo ainda mais sórdido estivesse por detrás daquilo e nossas suspeitas não foram em vão.

A trilha de sangue deixada levava até as imediações da casa abandonada dos Wolfgang. Os policiais revistaram a casa, dia e noite mantiveram vigília na tentativa de capturar o animal, que acreditavam pudesse ter se refugiado na casa vazia. Mesmo naquela época, a polícia não tinha certeza de quantos animais poderiam ser. Acreditava-se que no início havia uma quantidade maior, uns seis ou oito lobos, mas depois chegaram a cogitar que apenas um ou dois ainda restavam, talvez tivessem morrido de fome ou atacado entre eles mesmos. Era extremamente difícil encontrar qualquer vestígio de corpos de animais na floresta. Andrew foi localizado porque partes do seu braço e sua carteira estavam no início do matagal.

Os céticos encaravam o fato já como incompetência da policia, que não conseguia capturar tais animais. Os supersticiosos acreditavam piamente na existência de um lobisomem e olhavam todas as pessoas como prováveis suspeitos, eu bem sei como foi. Não me importava que dissessem asneiras sobre mim, mas sim que Ângela também passou a ser vista com outros olhos por todos os colegas de faculdade. Achavam estranho o fato de o primeiro namorado dela ter desaparecido e o segundo tivesse sido morto. O clima geral entre a população era hostil por demais.

Agora só tínhamos um ao outro como amigos e confidentes. Então, Ângela me convidou a dormir em sua casa, numa ocasião em que seus pais não estavam e que coincidia com o período de lua cheia. Ela tinha certeza que a criatura apareceria e que eu poderia vê-la.

Não foi fácil aceitar esse convite. Numa cidade pequena, um homem e uma mulher sozinhos numa casa, já viram motivos de falatórios, mas era preciso. Muito me ofendia que pudessem pensar qualquer coisa sobre Ângela e eu, tal era o respeito que sempre lhe dediquei e fui para sua casa, cheio de reservas e constrangido.

De fato, mal chegou o relógio a soar meia-noite quando ouvimos passos em redor da casa. Corri e peguei a arma do pai de Ângela. Fomos para a janela e a criatura estava lá.

Primeiro, centrou seu olhar todo em Ângela, porém ao me avistar ao seu lado, ficou completamente enfurecida e arremetia urrando contra as paredes na tentativa de nos alcançar. Depois, o lobisomem foi até a porta e tentou arrombá-la, por sorte havíamos lacrado bem e encostado objetos pesados nela, mas nossos corações pareciam sair pela boca de tanto pavor.

O lobisomem era exatamente como Ângela me descrevera e imaginei que a fúria maior dele consistia na minha presença ali, ao lado dela. Tive certeza, naquele instante, que deveria ser Lúcio, mas não compartilhei isso com ela; e quanto mais Ângela se apertava ao meu braço, mais a fera urrava.

Em nenhum momento soltei Ângela e a arma que mantinha fortemente presa ao peito. O lobisomem rodeou o sobrado várias vezes, na tentativa de entrar e como não encontrava meios, esperneava alucinado. Cortava-me o coração as lágrimas que via correr pelo rosto de minha amiga, queria poder lhe dizer que aquilo tudo era um sonho, que nada daquilo estivesse acontecendo, mas era impossível. Ficamos horas a fio parados, na janela, observando a fera e por ela sendo observados, até o momento em que a aurora começou a se estampar no céu. Vendo isso, a criatura fugiu em desabalada carreira e nos deixou, enfim, sozinhos.

Deixei cair a arma ao chão e Ângela me abraçou tremendo. Retribui o abraço e não me arrependo de naquele momento tê-la desejado. Sentíamos o alívio de o monstro ter ido embora, e eu sentia que o coração de Ângela, apertado contra meu peito batia sofregamente principalmente em saber que tal criatura poderia ser o rapaz que ela tanto amara. O calor do abraço dela também me reconfortava de toda a tensão e pavor. Senti que eu mesmo enfraquecia com o contato com o seu corpo e que meu instinto de homem sabia reconhecer toda atmosfera envolvente que nos cercava. Mas contive meus desejos, pois nada nesse momento me era mais caro que nossa amizade e não a colocaria a perder e muito menos magoá-la.

Retirei-me para outro quarto a fim de repousar, e cai exausto na cama de uma das irmãs de Ângela. Quando acordei havia um lanche ao meu lado, tanta tensão me dera uma fome tremenda e comi como um selvagem. Chamei por minha amiga e ela não me respondia. Percorri os cômodos e nada, então tive a certeza do que ela havia feito: Ângela fora até a casa de Lúcio. Completamente apavorado ante tal situação, corri ao quarto para buscar a arma, coloquei-a na mochila e sai em seu percalço.

O caminho era íngreme e muito me cansou, pois além da distância havia repousado pouco e feito apenas uma refeição. Ficava pensando que horas Ângela teria saído de casa para encontrá-lo e se estaria a salvo. Quando finalmente cheguei à porta da casa dos Wolfgang, encontrei-a semi-aberta. Era uma daquelas portas pesadas e barulhentas, e rangeu assustadoramente quando a empurrei. Senti um torpor por todo corpo, pois certamente minha presença teria sido anunciada por tal barulho. De repente, escutei os gritos de Ângela vindo do segundo patamar da casa e corri para as escadas. Sequer tive oportunidade de subi-las, pois me deparei frente a frente com o lobisomem me olhando, de forma sanguinária. Corri em direções opostas, lancei em sua direção tudo o que encontrava pelo caminho, mas a fera era impressionantemente rápida e nada parecia atingi-la. Arranquei um pedaço de tábua que se despregava de um móvel velho e joguei em sua direção, o monstro simplesmente a fez em pedaços como uma mera folha de papel. Arremessei minha mochila contra ele, mas antes, sempre correndo, tinha tirado a pistola do seu interior; por sorte ela estava carregada desde a noite anterior e só consegui subir as escadas e chegar até Ângela, graças às suas balas. Os tiros não o espantavam nem o enfraqueciam, mas conseguiam retardar um pouco sua corrida. Alcancei Ângela e na mesma hora ela apertou minhas mãos sobre uma corrente prateada que pendia em seu seio. A criatura não tentou nos atacar enquanto estávamos abraçados segurando a corrente, apenas nos rodeava rosnando ameaçadoramente, como se uma parede nos separasse. Ângela chorava e chamava por Lúcio olhando para o lobisomem, mas ele não dava qualquer mostra de nos reconhecer. Enfim tomei consciência que tinha Ângela seminua nos braços e olhei para a corrente prateada e com um pingente também prateado, com formato de coração. Nunca antes havia visto minha amiga com aquela jóia e imaginei que tivesse sido um presente ou algo do gênero. Perguntei o que era, e ela me disse aos prantos que Lúcio lhe dera aquilo enquanto estava como homem e lúcido, para sua proteção. Compreendi o que se falava nas histórias de lobisomens sobre a prata, um material que os afastava e que poderia mesmo causar-lhes a própria morte; entendi que ele lhe deu a jóia, pois não a reconheceria mais depois de sofrer a mutação e com ela ao pescoço, ele não poderia atacá-la.

O problema que enfrentávamos era quanto tempo conseguiríamos agüentar em pé, abraçados, no território dele. Na noite anterior, não havíamos dormido e ficamos todo o tempo na janela. Nossas pernas tremiam de dor e medo, pois qualquer movimento eu poderia soltar a corrente e ser atacado. Lúcio não parecia cansado por um momento sequer, enquanto nos cercava. Ângela com a cabeça encostada ao meu peito não parava de chorar e suar frio, sequer conseguia encará-lo, vendo que ele não atendeu aos seus rogos. Por fim, vencida pelo cansaço, Ângela quase me escorregou dos braços e foi por uma fração de segundos que a corrente não me escapou das mãos. O lobisomem chegou a se adiantar, rosnando assustadoramente, mas recuou, quando recuperei nosso equilíbrio.

Sei que estava tremendamente apavorado, com medo, com raiva, mas Ângela sequer tinha forças, seu peso estava praticamente todo em meus braços, sentia imensamente piedade por ela, ali tão desamparada, tão frágil, em trajes íntimos, e tentando me proteger também. Notei que a corrente já começava a machucar seu pescoço, mais alguns instantes ela desfaleceria ali e eu também não teria forças para segurá-la ao colo. Chamei-lhe, beijei-lhe a testa. Abriu os olhos marejados com muita dificuldade e me fitou profundamente. De súbito, percebi que o seu corpo ficava mais rígido ao meu abraço e ela ia recobrando a consciência. Pediu para que eu a soltasse com calma, sem largar a corrente. Assenti. Ela segurou o pingente de coração com os dedos trêmulos, sussurrou-me numa voz quase inaudível que nossa salvação estava ali dentro e que teria de fazer uma escolha.

Ângela olhou então para a fera, e nesse momento pude ver que não era mais Lúcio quem ela via a sua frente e sim um ser abjeto e demoníaco. Abriu o pingente e dentro dele havia uma bala de revólver toda de prata; depois enfiou uma das mãos pela minha calça e sacou a pistola, encaixando a bala. Entendi no mesmo instante o que ela ia fazer e o que significava aquela bala, era a única capaz de matar o lobisomem e também ao próprio Lúcio. Era uma decisão para Ângela, senti que ela estava no limite de suas forças, ofereci-me para atirar, mas ela insistiu que faria isso.

Só tínhamos essa bala, pois todas as outras se esgotaram e estavam cravadas na pele do lobisomem, e com o estampido do tiro seríamos separados, era preciso acertar. A nossa única chance de sobrevivência estava ali.

Ângela vacilou duas vezes, a arma tremia em suas mãos, mas senti que os olhos amendoados dela estavam fixos nos olhos vermelhos da criatura. Sem saber de onde ela tirou tamanha força, Ângela disparou.

Como previ, fomos jogados longe pela força do tiro, pois nossos corpos estavam totalmente enfraquecidos. Naquele momento, minha vida toda passou diante dos olhos e temi que o tiro tivesse sido em vão.

Não foi. Ângela fez um disparo certeiro no coração do lobisomem, que agora se contorcia de forma horrenda e emitia guinchos apavorantes. Ângela sentou-se, um filete de sangue lhe escorria pela face, pois ao cair se ferira.

Lentamente, o lobisomem foi tomando um aspecto humanizado e diante dos meus olhos, vi um Lúcio magro, fraco e despido surgir. Nunca a aparência de Lúcio fora tão bela, pois, apesar do estado em que estava, havia um semblante de paz profunda em seu rosto.

Ângela se aproximou do corpo moribundo, abraçou-o e beijou-o; com o restante de forças que ainda tinha, Lúcio pegou as mãos dela, beijou com ternura e agradeceu pelo que havia feito. Compreendi que a alma de Lúcio se libertara da maldição e que ele realmente amava Ângela de todo o coração. Faleceu em seus braços, entre lágrimas e beijos. Seu corpo sequer permaneceu ali, virou pó no mesmo instante e apenas a bala de prata estava agora caída no lugar onde ele estivera.

Corri a abraçar Ângela e entreguei o restante de suas roupas. Sei que o coração dela estava arrasado pela morte de Lúcio, mas que também era algo necessário e que ele próprio almejara. Creio que só nesse momento, Ângela percebeu os trajes em que estava e correu a se vestir. Enquanto ela assim o fez, recolhi a arma e o colar do chão, e recoloquei a bala no lugar onde ela estava anteriormente.

Fomos embora devagar, pois estávamos exaustos, andávamos cambaleando pela extensa vegetação. Ângela queria me falar, mas pedi que poupasse suas forças para outro momento senão, não conseguiria retornar e eu também não teria forças para transportá-la.

Deixei-a em sua casa e voltei para minha. Minha família se assustou com meu semblante sujo e machucado, mas guardei silêncio. Não queria conversar com ninguém naquela hora. Queria apenas me deitar e esquecer por algum tempo todo o horror que havia vivenciado.

Alguns dias depois, Ângela me telefonou e pediu que fosse visitá-la. Chegando lá entramos em seu quarto, ela trancou a porta e nos sentamos frente a frente na cama. Estava disposta a me contar tudo o que acontecera enquanto eu não estivera por perto, e deixei que falasse para acalmar seu espírito.

Ângela me contou então, que tão logo viu que eu tinha adormecido, preparou-me um lanche o qual deixou ao lado da cama e partiu rumo à casa de Lúcio. Suas emoções estavam confusas e ela não sentiu tanto medo em procurá-lo, já que era dia. Chegou à casa abandonada, andou pelos corredores e não avistou ninguém, chamou por Lúcio e então ouviu um suspiro. Seu coração bateu mais forte e ela gritou novamente que queria falar com ele, então numa voz sumida, ele avisou-a que estava em seu quarto. Ela subiu às escadas e encontrou-o acuado e enfraquecido, sentado sobre um tapete, próximo a parede.

Desordenadamente, Ângela começou a acusá-lo de todas as vilanias que estavam acontecendo. Sequer o deixava falar. Lúcio teve então de se levantar e forçá-la a se sentar a sua frente. Os olhos dele estavam marejados por lágrimas e começou a falar que a amava, mais do que tudo, mais que a sua própria e desgraçada vida; ela tentava rebater o que ele dizia com mais acusações, mas Lúcio encostou-lhe a mão aos lábios e pediu que o ouvisse e que depois o julgasse.

Contou-lhe que, de fato, era um lobisomem, bem como todos os membros de sua família miserável e que só viviam de atrocidades e assassínios. Havia se transformado num ser daqueles quando sobreviveu a um ataque de lobisomens, e que esse era o meio mais comum de transformação. Vivia isolado porque sabia que a relação dele com as pessoas era artificial e que quando se aproximava era com a finalidade de as atrair e seduzir para a morte. Ele próprio havia matado pessoas e se aproximado de várias mulheres com essa intenção, mas nenhuma era como ela. Desde o primeiro momento em que a viu, foi tomado por um desejo estranho e diferente de tudo o que experimentara. Sentia ímpetos de devorá-la, pois o cheiro da sua carne era o melhor que ele já sentira e ficara impregnado na sua pele, mas também sentiu algo diferente que o fazia pensar nela como a pessoa mais agradável que conhecera e desejava mais e mais a sua companhia.

Ao conhecê-la, não conseguiu mais se alimentar de qualquer pessoa. Seu lado selvagem queria a carne dela, como se fosse uma droga extremamente potente em seu interior. Tentou se alimentar de animais, mas isto o enfraquecia mais e mais. Depois que a conheceu não suportava pensar no estilo de vida que sua família levava e teve várias discussões com eles. Alegou-lhe que não participou do golpe contra a sua família e que quando estava no barco, partindo e a avistou não teve mais forças para deixá-la. Principalmente depois de terem se entregado um ao outro e ela lhe dizer que o amava. Aquilo foi para ele como se mil facas o tivessem perfurado, pois quando a possuiu daquela vez, ele estava quase se transformando e estava prestes a assassiná-la. Entendeu tudo o que sentia, que seu lado humano a amava, mas que conviver com seu lado monstruoso seria impossível. Tentou se afastar, tentou ir embora, mas quando a viu no porto e ela lhe deu as costas, jogou-se na água e nadou de volta. Daquele minuto em diante, rompeu com sua família e sequer soube para onde foram. Não conseguia mais ficar longe da sua janela, enquanto homem que amava e enquanto a fera que deseja loucamente a presa. Seu lado monstro foi quem matou Andrew, e ele sentiu horror só de lembrar isso, pois sequer chegou a devorá-lo; apenas o tratou como um adversário lutando pelo mesmo alimento. O remorso que sentia era imenso, pois sabia que Andrew seria um ótimo parceiro para ela. Seu problema era que, quando transformado, não reconhecia mais as pessoas e poderia atacar qualquer um que se aproximasse.

Enquanto ele assim falava, Ângela olhou pela janela e constatou que estava entardecendo. Sentia raiva de Lúcio pelo que fizera, sentia nojo de si mesma ao saber que se deitará com ele enquanto lobisomem, e ainda angústia por tudo aquilo, mas com a sinceridade, a bondade que aparentava e o arrependimento visível de Lúcio, seu coração se apiedava dele aos poucos.

Chorando, Lúcio lhe confessou que não sabia mais o que fazer com o seu amor e se afastou para protegê-la, porém, não agüentaria mais viver tanto tempo naquela situação e lentamente ia deixando de se alimentar.

Ângela acabou por ficar perplexa diante de todas as revelações, sentiu-se confusa e ao mesmo tempo todo o amor que sempre sentira por Lúcio parecia se fazer presente. Ele chorava com as mãos escondendo o rosto, as lágrimas escorriam por seus dedos.

Finalmente, buscando força dentro de si mesma, ela puxou as mãos de Lúcio para olhar em seus olhos. Com ar súplice, ele lhe pediu para não o tocar, pois ao simples roçar da pele dela, para ele era como que seu amor se tornasse uma dor física. Já não se importando com nada, Ângela se entregou a Lúcio mais uma vez. Dessa vez, no entanto, foi diferente: não havia loucura e desespero em sua posse e sim, amor e carinho incalculáveis.

Sobre o tapete empoeirado se amaram, saboreando cada parte do corpo um do outro. Ele não a penetrava da maneira selvagem como a primeira vez e sim, preocupado com o prazer que pudesse dar a ela.

Depois do amor, ficaram enlevados, nus e abraçados, até que Lúcio se levantou e detrás de um quadro antigo, abriu um cofre e tirou um embrulho. Disse-lhe que era um presente e que o usasse quando ele se transformasse naquela criatura asquerosa, para sua própria proteção, pois não poderia machucá-la enquanto estivesse de posse daquele objeto. Ângela abriu o embrulho e se deparou com o colar e o pingente prateados. Olhando em seus olhos, Lúcio a fez prometer que traria sempre consigo a jóia e que, dentro do pingente, existia algo que colocaria um ponto final em toda a sua desgraça, mas que ela só abriria numa situação extrema.

Lúcio caminhou até a janela, a noite já surgia; ficou completamente apavorado, pois sentiu que começava a sofrer a mutação maligna e gritou para que Ângela colocasse o colar imediatamente.

Ela nem havia se vestido completamente quando o fitou e viu que ele ia ganhando as formas do lobo monstruoso, colocou a corrente para se proteger e foi nesse momento que cheguei ao local.

Imaginava que realmente não havia sido nada fácil para Ângela tomar as decisões que tomou e queria saber por que ela mesma quis lhe tirar a vida.

Ângela me contou que no seu íntimo sabia que era o que Lúcio desejava. Ele não queria cometer mais qualquer mal contra quem quer que fosse, por amor a ela. Para se libertar, apenas seria possível com a morte. Ela sentiu pânico ao saber que cabia a si essa missão, entendeu o que Lúcio quis dizer com situação extrema e o que significava o formato do pingente em conjunto com a bala. No fim, sentiu-se aliviada com o que aconteceu ao corpo, pois ninguém iria acusá-lo das mortes. Sabia que ele matara para se alimentar, por puro instinto animal, e para ficar bem consigo mesma, foi ao cemitério para deixar sobre o túmulo de cada uma das pessoas, por ele atacadas, uma flor branca.

Enquanto conversávamos, ela remexia no pingente e a bala se soltou, caindo sobre os lençóis. Pedi licença e a peguei, realmente era uma bala fascinante e bem forjada; no entanto, notei que tinha uma divisória e ao mexer havia um mecanismo de rosca, que a desmontava. Mostrei a Ângela, que desmontou a bala e teve uma surpresa com o que havia dentro: uma fotografia de Lúcio e uma dedicatória romântica endereçada a ela. As lágrimas escorreram suavemente por seu rosto e ela sorriu com a lembrança que ele lhe deixara.

De fato, concordei que Lúcio era realmente uma pessoa digna do amor de Ângela e que havia sido uma lástima não termos oportunidade de conviver. Minha amiga também era uma mulher impressionante e digna de ser amada, tanto por Lúcio, por Andrew e até por mim.

Isso mesmo, eu também depois de todos esses percalços por quais passamos, vi meu sentimento de amizade se transformar em admiração e amor para com Ângela, mas não era um amor carnal e sim, um amor fraterno, tanto que me casei com uma sua irmã, tão linda e especial quanto Ângela.

Quanto a ela, nunca se casou, mas dedicou a vida a cuidar do filho de Lúcio que trouxe em seu ventre e que, para nossa felicidade, embora parecido com o pai, não trazia no sangue a marca do mal.

Ana Claudia Brida
Enviado por Ana Claudia Brida em 09/02/2009
Código do texto: T1430052
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