XÍCARA DA CHÁ

- Aceita uma xícara de chá?

Foi desta forma que a senhora recebeu a jovem na porta de sua casa. A adorável anciã, recém chegada àquela cidadezinha, havia tratado logo de divulgar sua especialidade culinária: seus quitutes, que tanto faziam sucesso por onde passava, em especial seus biscoitos. Como recebiam elogios os seus biscoitos!

Ela pensava em ensinar alguns de seus segredos para quem quisesse aprender, tão logo estivesse bem instalada. No entanto, em uma manhã, sua campainha tocou e uma jovem bastante apresentável surgiu na entrada de sua residência e, um tanto apressada, começou a falar:

-Bom dia! Sei que a senhora pretende, em breve, começar a ensinar culinária, no entanto, esses seus biscoitos são realmente coisa de outro mundo, e devo confessar-lhe que não agüento mais esperar por essas aulas. Sabe o que é? Eu sou recém casada e gostaria demais de impressionar o meu marido, e com esses seus biscoitos certamente conseguirei.

A moça mostrou-se tão aflita que a gentil senhora esboçou um sorriso e disse:

-Aceita uma xícara de chá? Entre, fique à vontade. De fato não começaria com as aulas agora, mas como você tem um bom motivo e como gostei de você, abrirei uma exceção.

A jovem não escondia a sua felicidade, foi logo entrando e acomodando-se em um confortável sofá. Este parecia bem antigo, porém bastante agradável, como toda a decoração da casa. Ela estava perdida em pensamentos quando subitamente a velha retornou.

-Aqui está, querida. Beba enquanto está quente. A jovem agradeceu e segurou a xícara. A fumaça era densa e aromática. Ela

não conseguiu distinguir do que era feito o chá. Então, ela sorveu o primeiro gole e continuou sem decifrar o mistério, não sabia de qual erva ou planta vinha aquele sabor que percorria sua garganta.

Ela experimentou uma sensação indescritível, seu corpo e sua alma explodiam em bem-estar. Ela sorveu, então, o segundo gole, ficando tão relaxada como nunca estivera antes em sua vida. Passou a observar a fumaça e teve a nítida impressão de que esta tomava a forma de um carrossel, com os cavalinhos subindo e descendo, girando bem lentamente. Ela piscou os olhos e notou que a fumaça havia tomado a forma de uma esguia patinadora, que deslizava de

um lado para o outro, rodopiava e girava cada vez mais rápido.

A fumaça tomou as mais diversas formas, pelo menos foi a impressão que a jovem teve, e assim ela adormeceu, um sono que ela julgou ser o melhor da sua vida.

Quando acordou, estava revigorada e bem disposta. Porém, ela não estava mais na sala da adorável anciã. Estava agora em uma espécie de porão, úmido, iluminado por algumas velas. Ela não estava mais no confortável sofá, estava agora em uma dura cadeira, tão dura como se fosse confeccionada por ossos.

Com os punhos amarrados aos braços da cadeira, bem como suas pernas, as quais também estavam amarradas às da cadeira.

Mas o que seria isso? Seria cabelo o que estava atando as minhas mãos? - Assim ela pensou, e como se pudesse adivinhar o que ela pensava, a velha respondeu:

-Sim, é cabelo, e humano, pode acreditar.

Ela não era mais a simpática velhinha, estava agora disforme, trajando um surrado e horroroso vestido negro, sobre sua cabeça estava um também negro e pontudo chapéu, como se fosse uma...

-Uma bruxa? Sim, querida, pode-se dizer que sou exatamente isso que você pensou, na ausência de um nome mais apropriado, é claro. E, é óbvio que os biscoitos que você e todas as outras pessoas desta vila tanto apreciaram estavam enfeitiçados, com um ingrediente bem especial posso assegurar-lhe.

-Não era para ser agora, ainda estou arrumando as minhas coisas, mas como você veio tão apressada e de tão boa vontade oferecer-se para mim, não pude dizer não. Ah, o sangue humano roubado é o que torna os meus quitutes tão apreciados, e o seu está sendo retirado neste momento.

Falando isso, a bruxa soltou uma gargalhada e caminhou em direção a um armário, com a intenção de buscar algum apetrecho. Só nesse momento a moça pôde perceber o tubo anexado à sua perna, de onde fluía lentamente o líquido vermelho. Tomada pelo desespero, ela usou toda a sua força para soltar o braço direito das amarras.

Rapidamente, ela terminou de livrar-se das outras, soltando também o tubo, fazendo o sangue verter pelo chão. Ela sabia que só teria aquela chance de fugir. Avistou a escada de madeira que levava para fora daquele lugar imundo. Não pensou duas vezes e correu em direção a ela, não dando tempo da bruxa tomar qualquer ação.

Ela saiu do porão e rapidamente localizou a porta de saída daquela casa maldita. Ela estava aberta, oferecendo a luminosidade do dia lá fora. Então, saiu em disparada, ofegava, porém estava aliviada, pois conseguiria sair dali em poucos metros, e quando estava a um passo da liberdade, o chão sob seus pés desabou, a madeira que compunha o piso simplesmente abriu, fazendo com que ela caísse até o andar inferior, justamente no porão, o pior lugar onde ela poderia estar.

Ela parou dentro de um imenso caldeirão, que continha uma gosma que dificultada os seus movimentos. Muito machucada devido a queda e ainda desnorteada, a jovem abriu os olhos e visualizou a bruxa a sua frente, e esta disse-lhe:

-Assim você complica a minha vida, querida. Você correndo e se ferindo deste jeito vai deixar sua carne dura, e eu não gosto de carne dura.

-Ah, eu não te falei não é? O sangue de minha vítimas eu uso nos biscoitos para atrair outras, e quando já começa a ficar difícil a minha vida em um lugar, eu apenas mudo para outro. Porém, o que mais me interessa é a carne humana, que uso para minha alimentação, através dela eu consigo prolongar a minha existência durante longos anos. E a sua, querida, em breve será utilizada para isso, só essa sua afobação é que está dificultando.

-Não vou nem retirar o seu sangue, deixe-me acender logo o fogo desse caldeirão. Ainda bem que hoje em dia não jogam mais a gente na fogueira por bruxaria. - Sorriu de forma debochada.

Tão logo a velha falou isso, a jovem gritou, mas este fora o último ato da sua curta vida.

A campainha da casa da senhora tocou e uma estudante uniformizada

estava na porta.

-Bom dia, senhora. Sei que suas aulas ainda não começaram, mas eu gostaria de, se possível, antecipá-las um pouquinho, sabe o que é? Eu preciso muito levantar um dinheiro para a minha classe, e eu poderia fazer biscoitos para vender, e os seus são divinos. A senhora pode me ajudar?

A velha sorri levemente e diz:

-Você aceita uma xícara de chá, querida?

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 07/02/2009
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T1426989
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