Bloody Mary
“...Felicidade eu não sinto e amor para mim é tão irreal;
E a você que ouve estas palavras dizendo sobre meu estado;
Eu te digo para curtir a vida, eu bem que gostaria, mas agora é tarde demais...”
Black Sabbath
Meu nome é Thom. Tenho 39 anos. Gostava da vida e de viver. Até o dia em que meu filho de sete anos, Eric, morreu.
Eu o matei.
Vou contar o que houve e tentar explicar a enrascada em que me meti e a merda que fiz. Antes de começar vou deixar uma pergunta para você, responda-a depois de ouvir a história toda: O que teria feito em meu lugar?
Outono, 1998.
Eu e Emily morávamos numa casa muito boa com três quartos. Nos fundos uma edícula. Adapte-a como escritório. Sou Contabilista e trabalhava em Consultoria Financeira Empresarial.
Conheci minha mulher na faculdade. Por engano entrei no banheiro feminino. Ela estava retocando a maquiagem e vendo-me no espelho assustou-se soltando um grito. Saí correndo. Parei na lanchonete e foi aí que reparei como era linda. A garota ruiva do banheiro estava vindo cheia de charme. Sua pele branquinha, seus olhos verdes, aquele corpinho malhado, rosto delicado, simpático e sorridente. Tomei coragem... Dois anos depois casamos. Dois anos depois tivemos Eric. Garoto esperto, saudável e bonito. Cabelos castanhos e olhos verdes como os da mãe.
A nossa vida profissional estava bem. Emely era Nutricionista e trabalhava em um Hospital Psiquiátrico particular, meio período.
Tudo ia muito bem até os sete anos de Eric e a segunda gravidez.
Nossos vizinhos John e Lynda tinham Ed, oito anos. Então já imaginam a amizade desses dois né? Revezavam quem dormiria na casa de quem! Inseparáveis. Brincavam muito, montavam bases militares com aqueles bonecos Comandos em Ação, lembram-se? Jogavam, assistiam TV...
Tudo ia bem naquele ano até que comecei a reparar melhor em Eric. Era ativo, falante e barulhento, mas, estava meio calado e cheio de segredos. Um estranho comportamento, que por uma coincidência descobri, era sua visita noturna ao banheiro. Permanecendo lá muito tempo.
Numa das noites decidi espionar. Colei o ouvido na porta.
Sussurros e cochichos.
Parecia uma canção: Bloody Mary, Bloody Mary... Ininterrupto.
Tentei deixar para lá, mas, algo me incomodou.
Numa manhã percebi arranhões no rosto e pescoço dele.
- Eric.
- Oi pai.
- O que são essas marcas?
- É a brincadeira que descobri. Chama-se Bloody Mary. A gente se arranha um pouco mesmo. Vou no Ed. Tchau pai. – Correu.
Fiquei calado. Pensando. Que diabos de brincadeira é essa? Nunca fui um pai mandão ou controlador.
Alguns dias depois...
As visitas ao banheiro continuaram. Uma vez veio dar uma espiada em mim para certificar-se que estava dormindo. Fingi. Na ponta dos pés encostei o ouvido na porta. Tudo escuro. Ouvi uma conversa. Era uma voz feminina e... Maligna. A outra era de Eric. Não entendi nada do que disseram. Parecia outra língua. Pararam. A porta do banheiro se abriu. Não deu tempo de voltar para cama. Fiquei ali parado esperando. Nada. Entrei e acendi a luz. Ninguém. Olhei no Box. Nada. Saí. Constatei que Eric dormia profundamente. Não entendi nada! Cheguei a pensar num psiquiatra para mim!!
Até que decidi colocar um gravador e uma câmera no banheiro.
Emily deixou o emprego para cuidar de si mesma e do futuro bebê. Estávamos bem. Deitado e fitando o teto ao lado dela que bisbilhotava o controle remoto da TV colocando em dezenas de canais e não achando nada que prestasse, shows ridículos, filmes reprisados quarenta vezes, apresentadores insuportáveis...
- Querida, percebeu algo de diferente no Eric?
- Sim. Percebi que está mais nervoso, indisciplinado. Não sei se é fase ou ciúmes do irmãozinho...
- Sei lá, parece que há algo estranho com ele. Um dia me falou sobre a brincadeira da Bloody Mary. Você sabe algo a respeito disso?
- Não, nunca ouvi falar. Talvez o Ed saiba alguma coisa.
- É! Boa idéia! Vou perguntar. Boa noite querida.
Beijei-a e fingi dormir. Naquela noite Eric não foi ao banheiro.
No café a mãe tentou arrancar alguma coisa dele. Só conseguiu respostas monossilábicas: sim ou não.
- Com licença. – Foi a frase mais longa antes de ir para a escola. Olhei para Emely:
- Eu disse que ele estava esquisito.
- Thom, senti... Um calafrio quando ele me olhou... – Lágrimas – Parece ter raiva de mim...
Ainda chorando levantou-se para tirar a mesa. Acalentei-a e a encorajei. No íntimo eu percebi que eu é que precisaria de coragem e ânimo...
De madrugada ele foi ao banheiro novamente.
A câmera registrou sua entrada. Parou na frente do espelho, no escuro, e por treze vezes disse: Bloody Mary.
Minha surpresa foi ver o que a câmera registrou: uma escuridão gosmenta e avermelhada. A imagem ficou distorcida e tudo que vi foi uma gelatina de sangue salpicada de preto e sem nenhum som. Parecia que a lente da câmera escorria catarro com sangue.
Duas semanas depois...
Estava no escritório quando ouvi o grito.
- Emily! – Gritei e saí correndo.
Estava na cozinha. Agachada num canto. No meio das suas pernas: sangue e líquido amniótico. Chorava.
- Emily, calma... – Peguei-a no colo e com calma. – Ela olhou para mim e depois para a porta. Não conseguia falar. Ali parado estava Eric.
- Filho, chame uma ambulância para a mamãe... Disque... – Olhei para ele. Sorria. Virou as costas e saiu.
- Eric! – Emily desmaiou.
- Coloquei-a no sofá e tirei o carro da garagem. Fomos ao hospital.
- E então doutor... ?!
- Ela perdeu o bebê.
- O quê?! Não...
- Sinto muito.
- Era uma menina Doutor?
- Sim. Era. Sinto muito senhor Thom. Sua esposa está fora de perigo. A criança... – Olhou-me nos olhos – Podemos conversar no consultório?
- Claro...
- Sr. Thom, Emily perdeu o filho porque foi agredida. O que pode me dizer sobre isso?
- Agredida?! Eu...
- O senhor é alcoólatra?
- Não.
- Toma algum medicamento?
- Não! O senhor está desconfiado de que agredi minha esposa e matei minha filha?!
- Não estou desconfiado senhor Thom, é que tenho nas mãos um caso de agressão e gostaria de saber o que houve.
Contei-lhe o que houve. Esperamos Emily acordar e ouvir sua versão.
Eu e o doutor ficamos estarrecidos.
Disse-me que Eric a chamou e quando virou para entrar na cozinha viu-o correndo em direção a ela com os braços estendidos e punhos cerrados. Acertou a barriga em cheio. Foi tudo tão rápido que não deu tempo nem de pensar. Assim que caiu ele a chutou algumas vezes, na barriga.
O médico me confidenciou depois que o bebê sofreu traumatismo craniano e o útero terá seqüelas. Uma próxima gravidez seria de altíssimo risco. Não aconselhável.
Voltei para casa. Pasmo, abatido, confuso e extremamente nervoso.
- ERIC! Onde você está? ERIC!
- O que é? Estou aqui.
Quando o vi minha raiva cresceu. Peguei-o pelo braço e, aos berros e sacudindo-o, levei-o para meu escritório:
- O QUE DEU EM VOCÊ MOLEQUE...?!
Ele sorriu.
Estapeei-lhe o rosto.
Sorria novamente.
Estapeei-lhe de novo.
Tirei o cinto.
- Vai me foder papai?! – Ainda sorria...
A frase e o seu semblante fizeram-me estacar. Olhei-o incrédulo e confuso. Fiquei parado com a fivela do cinto aberta como a minha boca e alma. O que foi que ele disse?!
Sorriu novamente e saiu cantarolando. Meus olhos marejaram, meu estômago embrulhou e um calafrio percorreu minha espinha. O que foi que ele disse?!
Não era meu filho...
Emily teve alta. Fui buscá-la. Ed e sua mãe, Christy, acompanharam-me. Eric ficou em casa. Trancafiado no quarto.
- Sr. Thom...
- Sim Ed, já falei para não me chamar de senhor. Apenas Thom.
- Está bem, vou me esforçar... É sobre o Eric.
- Sim, o que houve com vocês? Não estão brincando mais...
- É, ele se afastou um pouco da gente. – Disse Christy. – Não vai em casa há semanas e nem conversa mais com o Ed. Há algo errado Thom?
- Bem, o Eric está meio mudado. Acredito que com o acidente ele tenha ficado um pouco chocado... – Menti.
- É pode ser...
O celular tocou. Era a diretora da escola onde Eric estudava. Queria uma reunião com os pais. Expliquei-lhe o “acidente” e comovida, a madre Anny decidiu fazer-nos uma visita. Eric estudava no Colégio Marista Arquidiocesano. Caro, mas muito bom.
Ele não conversava mais com a gente. Vivia trancafiado no quarto. Saindo e voltando da escola.
Emily se recuperou muito bem. Uma semana depois a freira bateu à porta.
- Então meus queridos. O Eric sempre foi um bom garoto. Seu desempenho aumentou bastante nessas últimas semanas. Acerta tudo e algumas vezes corrige a professora!
- Que bom! – Respondi.
- Ele costuma ler a bíblia em casa? Vocês vão à igreja?
- Não. Não freqüentamos a missa apesar de acreditarmos em Deus.
- Bem, é que ele demonstra um vasto conhecimento das histórias e personagens e ensinamentos que são ministrados somente em estudos avançados.
- Madre... Acredito que a visita da senhora não é somente para elogiá-lo certo?
- Não Dona Emily, infelizmente não. Quis dar as boas notícias primeiro. Eric... Ele... – Arrumei-me no sofá. – Tem feito e dito algumas coisas.
- Que coisas?
- Ele tem sido obsceno. – Os olhos azuis da madre estavam frios. Assim como eu e Emily quando nos entreolhamos.
- Sou uma mulher experiente no trabalho com crianças, estou no ramo há quarenta anos e nunca vi nada parecido. Eric convidou a professora a praticar sexo oral com ele. Claro, não com palavras educadas. Além disso, passa a mão nas nádegas das meninas e em suas vaginas também, agarra-as para beijá-las a força. De repente, sem mais nem menos, rebola e insinua-se para os meninos. A professora chamou a atenção dele e em uma das ocasiões ele respondeu... Vou usar as palavras dele, com o perdão de vocês e de Deus: “...abaixe sua calcinha e fique de quatro em cima da mesa para que eu possa chupá-la! Está precisando disso sua vagabunda!” – A professora saiu da sala chorando. Chamei-o até minha sala. E ele me deu isso. – Entregou a Thom uma folha de papel. Tinha um desenho de um pênis enorme e escrito embaixo: Chupe! Seu mal será curado depois que a senhora experimentar um desses no seu cu! Puta disfarçada de freira!
- Agora o senhor percebe o motivo da minha preocupação. Ele parece estar perdido sexualmente e muito confuso. Aconselho a encaminharem-no ao psicólogo.
Emily começou a chorar. Eu estava me acostumando com as esquisitices do menino. Decidi falar com Ed.
Durante todo o caminho fomos calados. Estávamos chegando quando vimos a cena: Os dois estavam correndo só que tinha algo errado com Ed. Estava com o rosto sangrando e segurava um dos braços. Atrás dele Eric com um taco de baseball corria e vociferava para parar.
- Volte aqui filho da puta! Vou abrir sua cabeça! – Expectorava e sorria
- ERIC! NÃO! – Saí correndo do carro e consegui interceptá-lo. Derrubei-o e arranquei o taco. Sacudi-o pelo braço:
- ENLOUQUECEU! O QUE ESTÁ FAZENDO?!?!
- Vai me bater filho da puta?! – Levantando-se.
Esbofeteei-o. Ele sorriu.
- Bata mais...
Fechei a mão.
Ele se virou e baixou as calças e rebolando disse: “ Por que o senhor não me fode ao invés de apenas me bater?”
Fiquei pálido. Flácido. Na minha mente tudo nublou. Fiquei ali parado. Senti duas grossas e pesadas lágrimas escorrerem. Vi, de relance, mas vi quando me olhou com desdém retirando-se. Retornando para a realidade lembrei-me: ED!
Emily tinha-o levado ao hospital, diz ela que gritou para mim várias vezes antes de socorrê-lo, acabou desistindo, pois o menino sangrava muito. O nariz e o braço estavam fraturados, como minha alma. Conversamos com os pais do garoto para tranquilizá-los e nos colocamos a disposição para pagar as despesas e tudo mais. Foram muito legais, podiam ter dado queixa.
Eu e Emily não conseguimos conversar com ele sem desencadear uma briga. Decidi não mais bater nele. Sobre a escola ele negou tudo.
Decidimos dar tempo ao tempo e procurar a melhor maneira de lidar com tudo aquilo.
Ele parecia um zumbi andando pela casa. Nunca respondia nossas indagações. Comia, bebia, dormia e ia para escola. Nada mais. Dias assim. Estávamos desorientados. A perda do bebê, o ataque ao Ed, a escola, suas respostas, tudo muito estressante.
Decidimos mudá-lo para um colégio interno. Três dias depois, na hora do lanche ao descer as escadas empurrou um colega. Quase o matou. Os pais estavam processando a gente. O inferno estava instalado em casa!
As visitas ao banheiro eram regulares. Gravei muita coisa. Tinha medo de ouvir. Pesquisei sobre Bloody Mary e não gostei nada do que descobri. Na realidade eu estava apavorado!
Ed nunca mais foi em casa. Um dia eu fui até lá. Chamei-o para tomar um sorvete. Fomos andando.
Edward era um bom garoto. Calmo e inteligente. Conversava sério quando queria. Uma pontinha de pena me alfinetou quando olhei para ele e lembrei-me do ocorrido.
- Ed, conhece a brincadeira da Bloody Mary?
- Conheço. É uma brincadeira perigosa Thom. Eu e o Eric começamos a brincar disso. Começa no escuro, de noite, no banheiro. Ficamos na frente do espelho e começamos a chamá-la. Treze vezes. Quando ela vem sentimos os arranhões no rosto e pescoço. E era somente isso. Mas, de repente, começou a ficar mais sério. Dizia que desejava sair do espelho e gostaria saber quem emprestaria o corpo para ela. Decidi parar de brincar. Bloody Mary zangou-se comigo. O Eric começou a brincar sozinho com ela. Quando nos encontrávamos na escola ele dizia ter me visitado. Que Bloody Mary o havia levado até minha casa flutuando. Dizia que ela falava coisas legais e que, um dia, o levaria para um lugar especial. O preço era sua permissão para usar seu corpo por uns dias. Thom, ele aceitou. Não é mais o Eric! É ela! É Bloody Mary!! Ela é má! As vezes eu a ouço me chamando no espelho e nunca respondo, diz que me matará. É como se a brincadeira fosse um pacto com ela... – Embargou. – Estou com muito medo Thom. Naquele dia quando Eric me atacou, não era ele! Disse que me queria e eu respondi que não! Eric me agarrou e tentou estrangular-me, só me largou porque o esmurrei. Levantou-se e foi pegar o taco. Eu estava ainda no chão quando se virou e me chutou no nariz quebrando-o. Por impulso voei para as pernas dele derrubando-o. Reuni minhas forças e saí correndo. Caí na escada e fraturei o braço. O resto o senhor já sabe.
Thom, Bloody Mary disse-me que não queria o bebê e que a dona Emily a atrapalhava.
- Ed, por que Emely atrapalharia?
Ele me olhou muito sério e respondeu: “Ela quer o senhor. Quer ser sua esposa...”
Senti-me enjoado. Drogado. Como sorvete derretido eu me esvaí.
- Quando tudo isso começou Ed?
- Um dia estávamos brincando na banheira com nossos barcos aí ouvimos um sussurro muito baixo e fomos procurar. Reparamos que vinha do espelho e em vermelho algo surgiu, palavras: “Sou Bloody Mary, não tenham medo.” – Hipnotizados chegamos perto do espelho e começamos a chamá-la. Aí tudo começou. Ela nos dava as respostas das provas que ainda seriam dadas, além de outras coisas, dizia coisas engraçadas e contava histórias muito legais. Aí começou a ficar mais sério...
- Quer dizer que meu filho não está mais lá? É essa coisa no corpo dele?
- Infelizmente sim. Não sei hoje como está, mas ela gritou que o possuiria para sempre. Acredito que o senhor deva buscar ajuda, como um padre ou um exorcista, essas coisas, ela é real Thom e muito maligna! – Começou a chorar – Thom... Ela me disse que Eric se foi e que há só ela agora... E quer o senhor...
Fomos embora. Estava tentando digerir tudo aquilo. Um clique estalou na minha mente: Emily ficara sozinha com aquilo!! Saí correndo feito um louco, Ed não entendeu nada e correu atrás de mim, mas logo desistiu. Meus pensamentos estavam em casa.
Cheguei.
Tudo estava muito quieto. Nenhum vento soprava. Nenhum pássaro cantava. O mundo havia parado.
Havia algo errado.
Um calafrio dançou na minha espinha quando olhei que a porta da frente estava entreaberta.
Entrei calado e olhando para todos os lados.
Silêncio.
Meu ouvido zunia com o barulho ensurdecedor do silêncio mortal. Minha respiração estava forte. Na sala Eric via televisão. Sem imagem e nem som. Chuviscos.
Não vi a Emily. Chamei-a. Nada. Ele nem se mexeu.
Procurei-a por toda a casa. Entrei em cada aposento com o coração saindo pela boca. Nada.
O zunido. O Silêncio.
A atmosfera pesada e eletrificada arrepiava-me. Ofegava.
Voltei para a sala e vociferei quebrando o silêncio do mundo e da alma:
- ONDE ELA ESTÁ?!
- Foi... No açougue. – Respondeu-me sem alterar a voz ou a postura. Os chuviscos.
Senti um cheiro forte de produto de limpeza na cozinha. Da primeira vez não olhei, mas agora eu vi. Uma faca ensanguentada jazia na pia. Peguei-a e tremendo voltei para a sala. A minha razão estava por um fio, minha sanidade estava abalada e o bom senso numa corda bamba. Senti-me como um predador. O mundo desapareceu da minha visão e sentimentos. Só existia eu e a minha presa! Parei na frente dele com a faca pingando sangue no chão, ofegante e pausadamente perguntei: “ O que você fez... Bloody Mary?!
- Então você sabe... - Ergueu os olhos mortos para mim, sorrindo.
- Sei o que quer e não vou dar. RESPONDA! Onde está Emely e o meu filho seu demônio!?
O sorriso dela estava enlouquecendo-me. A insanidade estava arrancando a porta das dobradiças. Ficou em pé no sofá. As mãos e roupas manchadas de sangue. Sorrindo disse:
- Emely e Eric estão muito bem. Juntos e felizes. Sabia que posso vê-los? Nunca mais atrapalharão a gente. Breve abandonarei esse corpo ridículo e tomarei o de uma mulher do seu agrado...
Minha alma era um iceberg. Meu sangue virou pó. Senti um gosto de Bombril na boca. A realidade sumiu da minha mente. Restou-me o mínimo de sanidade:
- Você... F-e-z o q-u-ê com e-l-e-s? – Aproximei-me.
- Apenas liberei o caminho para nós! Você precisa ver o lado positivo das coisas querido!... – Sorria.
- O que eu tenho para você me querer tanto... Querida?!
- Breve você saberá! Agora venha, vamos escolher uma mulher para eu possuir e ser somente sua, para sempre e... – Sorriu e estendeu os braços para mim.
Aproximei-me e a esmurrei.
- Nossa! - Disse colocando a mão na boca e... Sorrindo. O sangue pingava da boca do meu filho possuído. Esmurrei novamente e ela sorria, sorria e sorria.
Enlouqueci.
Esfaqueei o menino na barriga. Foi quando ouvi uma voz fraca saindo de um rosto pálido e desfocado: “Pai...”
Um lampejo de consciência me fez parar.
- Eric!? Eric? Você está aí...?
Os olhos brilharam, a boca se retorceu e uma gargalhada inflamou o ar. Minha alma, gelada, derretida e insana escureceu. Peguei a faca.
Bloody Mary ainda gargalhava quando enterrei a faca no pescoço dela. De novo e de novo. O sangue esguichava em mim. Estava enlameado quando parei. O corpo inerte, o pescoço todo rasgado, ainda estrebuchava. O tronco do menino arqueou. A cabeça pendeu em rasgos de carne, veias e cartilagens. Da abertura um fluido negro e flutuante pairou sobre mim e o cadáver. O líquido pútrido e disforme desceu ficando a um centímetro do meu nariz. O hálito sulforoso e sufocante denunciou um sorriso demoníaco. Dos dentes amarelados uma gosma vermelha pingava. A mancha negra subiu e, sempre sorrindo, dissipou-se.
Alguns instantes foram necessários para minha recomposição. Havia matado o menino. Abaixei e peguei-o no colo. Olhei para cima procurando Deus ou alguém que pudesse me ajudar. Um grito silencioso de agonia profunda rasgou minhas entranhas. Não sei por quanto tempo fiquei ali com o corpo dilacerado no colo. Afaguei seus cabelos castanhos e depois fechei seus olhos esbugalhados. Não conhecia o significado da palavra sofrimento até aquele momento.
Perdi os sentidos.
Acordei sacolejando dentro de um carro todo branco, homens de branco e sirenes...
No hospital recebi alguns homens da Homicídios. Precisava responder algumas perguntas. O corpo de Emely foi encontrado na geladeira. O tronco na parte de baixo, braços e pernas nas prateleiras, a cabeça no congelador, a boca havia sido costurada nos dois cantos forçando um sorriso e um bilhete pregado na testa: “Estou feliz por você querido!”.
Os jornais caíram em cima acusando-me de monstro.
Bem, aqui estou eu agora. Aguardando a minha execução: Amanhã. Meia noite. Cadeira Elétrica. Há semanas nau durmo direito. Não sei quanto tempo estou aqui.
Quando escrevia essas linhas recebi um embrulho. Tinha uma camisa, uma foto e uma carta. A camisa e a foto eram minhas. A carta de uma ex-namorada dos bons tempos de faculdade. Grace era seu nome. Depois de dois anos o namoro não deu certo. Só que ela nunca aceitou. Na carta ela pedia desculpas por colocar meu nome na feitiçaria negra. Não imaginou que as conseqüências seriam tão devastadoras. É, nem eu. E tudo começou com visitas noturnas ao banheiro.
Fico numa cela particular com escrivaninha, banheiro. Todas as noites ouço um sussurro muito baixo vindo do espelho. Desde ontem tenho ouvido a mesma frase: “Falta pouco agora...”
Grace após me enviar a carta e pedir desculpas suicidou-se.
Nunca ouvi as gravações que fiz no banheiro.
Breve morrerei e segurarei Bloody Mary no meu mundo para ela não entrar no seu.
Quanto a você, meu amigo, amiga, seja feliz, seja útil e tudo de bom e, nunca, nunca responda nenhum chamado vindo do espelho.
P.S.: Se desejar, vá até o espelho do seu banheiro e chame-me. Gostaria de ouvir sua resposta à pergunta que fiz no início.
Alex Holy Diver
05/02/2009