NOITE CHUVOSA
O ruído que o salto de seus calçados produzia, ao tocar o asfalto úmido naquela noite chuvosa, ecoava cada vez mais alto por toda a extensão daquela rua deserta. A madrugada começava, e apesar dela não enxergar uma viva alma por ali, ainda assim, sentia aquela estranha sensação de não estar só.
Aumentava cada vez mais o ritmo de suas passadas, estava ofegante, e apesar da noite fria, o suor gelado escorria através de seu rosto e se mesclava com a água oriunda do céu, que a atingia lateralmente, ajudada pelo vento e que ignorava a proteção que o guarda-chuva oferecia. No alto das edificações antigas, as quais davam àquela parte da cidade um tom nostálgico, e até certo ponto deprimente, estava o motivo da aflição da jovem que seguia apressada. E ela teria razões para a aflição, pois o ser que a espreitava sentia o medo que exalava de suas vítimas, isso o estimulava, ele aprimorara sua técnica através das eras, a facilidade com a qual superava o tempo, seria comparável com a que você tem para vencer as linhas deste texto. Mas, diferentemente de você, ele não era humano, não há muito tempo. Agora ele se alimenta do líquido escarlate que corre nas veias daqueles que persegue, subjuga e mata.
Instantes antes, ele entrara furtivamente pela janela que fora deixada aberta de forma descuidada, a garota que dormia tranqüila não teve tempo de reação, não viu de onde veio a mão forte, cujas garras lhe rasgaram o rosto, enquanto tapava sua boca para evitar que os prováveis gritos desesperados chamassem atenção. A discrição era essencial na rotina do ser. Os caninos salientes cravaram-se na pele tenra do pescoço da garota, logo o precioso líquido começou a descer pela garganta ressequida do ser, dois filetes escorreram e mancharam a fronha branca, formando uma pequena poça sobre o lençol. O corpo exangue da garota fora deixado sobre a cama, como um prato vazio sobre a mesa após uma refeição, e o ser noturno não aguardaria até que alguém viesse recolhê-lo.
Ainda estava faminto, o sangue da garota franzina não fora suficiente para saciar a sede infernal que lhe queimava o estômago. Sentia como se um ácido potente lhe corroesse o corpo, por isso continuara sua caçada, e a sorte estava sorrindo para ele naquela noite. A moça, que havia avistado dois quarteirões atrás, caminhava só, sua predileção pelas jovens às vezes o fazia imprudente, mas não era o caso. Do alto daquele sobrado era só esperar o momento certo. A chuva havia aumentado, talvez na mesma proporção do medo da moça que começara a correr de forma desabalada, as pastas que carregava foram ao chão, acompanhadas do guarda-chuva, o momento havia chegado.
O caçador noturno corria pelo beiral do sobrado, de forma paralela ao percurso da moça na calçada, ao notar que ela dobrara a esquerda em um beco, ele exibiu um sorriso hediondo, pois nada havia no local, além de um muro de uns cinco metros de altura e várias latas de lixo. Ele saltou do beiral, pousando no chão de forma suave, como uma folha ao vento, e ficou cara a cara com a garota.
- Calma menina. Já fiz isso inúmeras vezes, prometo que não vai doer...muito.
A jovem nada disse, em sua aflição buscou uma saída e correu na direção das latas de lixo, tentando usá-las para escalar o muro, as latas caíram e a moça foi ao chão. O emissário da morte gargalhou, exibindo suas presas imensas, em seguida saltou sobre a vítima para decretar seus últimos momentos, então caiu sobre ela e veio silêncio.
Instantes depois, o corpo paralisado do caçador foi rolado para o lado, a mulher que desde criança havia jurado vingar a morte da irmã adolescente, finalmente encontrara quem buscava, e a estaca retirada do casaco no momento certo, fora fincada no peito de seu algoz no ato do salto. Ela levantou e pisou com vontade sobre o pedaço de madeira, enterrando-o mais ainda no coração do morto-vivo e disse para si mesma:
- É verdade, não doeu nada...para mim – caminhou solitária pela noite chuvosa.