O CICLO

Não penso, apenas ajo. Meus instintos me dominam, ouço as batidas do meu próprio coração. Ouço tudo. Sinto tudo. Cada movimento à minha volta, cada ruído ecoando ao meu redor, sinto o calor de cada ser vivente que cruza o meu caminho, percebo o temor e o receio.

O caminho é longo e impreciso. Sete pontos a percorrer. Sete obrigações a cumprir. Minha visão enxerga longe, a noite não detém segredos de mim. Os tons azulados e vermelhos se mesclam, manchando a escuridão em lilás e violeta. A pobreza de cores é compensada pelos detalhes realçados na penumbra. Nada passa despercebido por mim, meus olhos captam tudo, nuances desvendados.

Vários odores invadem minhas narinas enquanto faço meu percurso, dominam minha alma e fazem meu corpo ficar alerta, vivo, nocivo. Minha respiração é pesada e ruidosa, intimida todos que a percebem. Minha voz...ah, minha voz ressoa pelas altas horas, gelando a alma até do mais valente. Os cães fazem coro à minha agonia, abrem passagem para minha chegada. Não sou comum, longe disso, não caminho livre como você, procuro não ser notado, só o faço quando necessário.

Ar noturno. Noite quente. Sinto a natureza e toda a sua força quando a terra gruda em minhas mãos e pés enquanto corro veloz, sentindo o vento de encontro aos meus cabelos. Todos os pêlos do meu corpo reagem ao toque das folhas que resvalam em minha pele. Rápido, cada vez mais rápido, a luz de minha amada me dá força, tonifica a minha alma, me orienta o caminho do sustento do corpo. Meu dever é homenageá-la, brindar sua existência, sua vaidade, plena e branca, seu brilho refletindo lindamente no espelho das águas calmas da baía.

A cada ciclo minha vida se renova. Inevitável é o meu destino. Inegável é a minha sina. Do sexto posto já passei, percebo agora o que fazer, fico imóvel, imperceptível, o ar que entra em meus pulmões percorre seu caminho lentamente. Minhas pupilas se dilatam, minha garganta resseca, embora a saliva preencha toda a minha boca. Involuntariamente minhas mãos apertam o relvado, logo elas descreverão movimentos rápidos e precisos, tal qual os de um pincel sobre uma tela, uma tela macia, onde apenas uma tinta avermelhada se fará presente. O cheiro inebriante do medo entorpece o meu ser, a música que preenche os meus ouvidos vem das súplicas desesperadas, avisando que o banquete para a minha amada teve início, o prato servido é sempre o mesmo, embora o sabor seja diferente a cada vez, sempre melhor, mais forte fico.

Às vezes me pergunto: como pode uma estrutura tão complexa se partir assim tão facilmente perante minha vontade? Ouço os estalos secos...minha felicidade se reflete em meu novo canto, alto e forte, para minha amada, os cães novamente me acompanham, não sei se por medo ou respeito, para mim pouco importa, vê-la sorrindo no céu, brilhando e feliz já me basta. Brinde comigo à sua presença. Sete pontos percorridos...

Acordo suado e aflito. Lá fora o sol brilha e invade o meu quarto através da janela aberta. Levanto e lavo o meu rosto com a água gelada que jorra pela torneira da pia do banheiro. De novo esse sonho, insistente, recorrente, perturbadoramente real. Raios! Preciso me tratar, preciso de ajuda. Saio para trabalhar e esquecer dos problemas, inquietações e pesadelos. Ao cruzar a porta, respiro o ar da manhã, não olho para trás...

Talvez se tivesse olhado, assim como você faz com seus olhos curiosos, poderia ter percebido as marcas borradas em escarlate, já ressecadas pelos raios potentes do astro rei. Seriam pegadas disformes se estendendo pelas paredes até a varanda do sobrado, camufladas pelas heras exuberantes? Não tem como saber, apenas tenho minhas lembranças revestidas pelos devaneios. Sonho ou verdade? Apenas o próximo mês possui, apenas o próximo ciclo sabe.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 05/02/2009
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T1423611
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