ISABEL
 
         
Todos os dias olhava-se no espelho da penteadeira patinada em ouro velho. Herança das bisavós, trazida da Europa e disputada com unhas e dentes. A escova deslizava alisando cachos imaginários, o batom marcava o contorno da boca murcha. Dezenas de porta retratos espalhados, lembravam o quanto  havia sido linda. Ainda orgulhava-se do porte e traços finos. 


            Conservava o apelido de viúva negra. Uma maldade pelos quatro noivos mortos às vésperas do casamento, uma tragédia de causar pânico aos futuros pretendentes. Culpava o destino todos os dias de solidão e tristeza. Amargando o tempo em incontáveis pontos de bordado.
As sobrinhas e irmãs quando precisavam de panos de prato,  passavam na casa de Isa  e escolhiam. Nunca era convidada para festas ou passeios. Não tinha amigos e o telefone quase nunca tocava. Haviam-na transformado em figura mística e quase bruxa. As crianças da vizinhança fugiam apavoradas e já havia visto uma ou outra vizinha fazer o sinal da cruz à sua passagem.

           Quando perdeu o último futuro marido, decidiu morar na casa onde deveria iniciar a vida de casada. Mandou erguer muros altos e escondeu-se de todos, tornando-se reclusa e aos poucos esquecida. Isa vestiu-se de preto da cabeça aos pés e nunca mais usou qualquer outra cor. Mandou trocar cortinas e cobrir os sofás e almofadas. Azulejos e pisos negros por toda a casa conferiam o ar fúnebre de uma tumba recém aberta. Isa fazia questão de manter pequenos altares em cantos da sala. Vasos de rosas de diferentes cores, para cada morto, a lembrança em vermelho, branco, rosa e amarelo. Além de velas, flores e o silêncio, nada mais naquela casa lembrava vida, a morte era venerada em odiosa existência.

           Foi assim que Alfredo encontrou o lúgrube casarão. Não fosse um tremendo malandro, teria fugido assustado, mas pensou bem e viu o luxo por trás dos panos. Começou a construir um  lago, com fonte e iluminação difusa. A proprietária havia desenhado um estranho nicho em meio às águas, onde guardaria os restos mortais dos falecidos. Dia após dia o esperto operário tentava uma aproximação qualquer, um meio sorriso já valeria a pena:- Bom dia senhora, viu que lindas as pedras do fundo do lago? Assentei da melhor forma possível, quase um mosaico, reparou como procurei combinar claras e escuras?

- Sim. O senhor é muito caprichoso, certamente vou  elogiar seu trabalho ao meu primo, que o recomendou.

- Ah! Sim. O chefe  ficará muito feliz em saber que ficou satisfeita. E eu viciado em seu delicioso café com bolinhos de chuva.

- São especiais e receitas de minha bisavó. Iguarias que trouxe de Portugal e quase nunca faço. Por não ter companhia, veja o senhor, também estou aproveitando a desculpa de sua presença.

- Pois terei o maior prazer provar estas delícias. Não estou acostumado com estes luxos.

- Hoje fiz bolo de laranja, tortinhas de limão  e compota de carambola. Amanhã...vou pensar em alguma coisa que há muito não cozinho.

- A senhora tem mãos de fada. Nunca comi tão bem em toda minha vida.

- Senhora? Se me chamar assim de novo, não faço mais nada...

- Não! Isa...Isa não faça isso comigo, morreria de tristeza se não cozinhasse mais para mim.

- Muito bem, Alfredo...Muito bem. Acho que fiquei inspirada, vou fritar alguns pastéis para o lanche.

           Alfredo compreendeu que o caminho era o estômago e não perdeu tempo. Não havia dia em que não se empanturrasse com salgadinhos e tortas. E com a desculpa, ele ia ficando para o jantar, aceitando mais um café e quase na hora da ceia, despedia-se apressado. Atravessava a cidade e ia deitar-se na vaga que dividia com mais seis no quarto abafado da pensão. No beliche sentindo o ar abafado e o forte odor de suor, Alfredo sonhava com as boas graças de Isa, partilhando a boa vida com a mulher triste e carente.

           A obra que deveria demorar um mês já ia para o terceiro e o dono da firma  não estava nada satisfeito. Foi conferir com a prima o motivo para tamanha demora. Do portão avistou o empregado sentado no degrau,  tomando café com broa enquanto a velha senhora contava casos. Furioso, abriu caminho pisando duro, chutando pedras e gatos sem a menor preocupação: - Mas que diabos? Alfredo  é pago para construir o maldito mausoléu aquático e não pra ficar de papo.

- Contenha-se. Nesta casa não temos galo para cantar no terreiro. O que pensa da vida Josué? Entre com educação e vamos devagar porque quem paga as horas sou eu.

- A senhora paga as horas e ele deixa de fazer outros serviços. Estamos no final de ano prima Isa. Nossa! Bolinhos de abóbora e filhoses! Posso? Quantos anos não como estas delícias...

          Isa observou o primo devorar todo o lanche. Depois combinaram  que Alfredo ficaria mais dez dia. Caso não finalizasse,  seria  mandado embora.  A  mulher disfarçava  o ódio que sentia, torcendo para que o maldito parente engasgasse e os deixasse em paz. Nada disso aconteceu e naquela noite, trabalhador e patroa, despediram-se apressados sem conversas ou experimentos culinários.

          Olhava a caçarola na mesa da cozinha, pronta para ir ao forno, os docinhos por enrolar e o vazio. Pela primeira vez, sentiu o peso da idade, solidão e vergonha por tantos anos desperdiçados. Reuniu coragem e começou a desmontar os altares, imersa em lembranças doces , como as delícias que preparou  com tanto carinho para os noivos. Claro que para cada um foi servido um veneno diferente, em dosagens cada vez mais seguras e precisas.  Quem iria desconfiar... Naquela época  pareceu tão natural que defendesse sua pureza. Nunca deixaria  um homem qualquer profanar seu corpo. Lembrou que a mãe sempre insistia e arrumava pretendentes. Nunca haviam perguntado o que ela desejava. Nunca!

         A esta altura o primo deveria estar em algum hospital e Alfredo sentindo falta da substância , também não tardaria a seguir o mesmo caminho. Logicamente seriam salvos, a medicina havia avançado muito e constatariam o envenenamento. Tinha pouco tempo até juntarem todas as pontas e chegarem ao obvio. Não seria presa com quase setenta anos, nem saberia viver em outro lugar senão sua casa negra. Alisou os gatos e serviu a refeição derradeira. Em minutos todos os bichanos estrebuchavam pela  cozinha...soltou os pássaros e abriu o melhor vinho.

         Estranhou-se vestida de  noiva, o tecido branco sempre esteve presente marcando época. Após tantos anos parecia   remoçar     e novamente: Era Isa aos vinte anos, invejada na festa de noivado, aos quinze dançando a primeira valsa, aos doze quando foi internada na clínica de repouso, aos oito quando o pai começou a visitar seu quarto todas as noites...

           Isa abriu as torneiras do lago e foi providenciar o resto das coisas. Imaginou que era profundo o bastante para os peixes que nunca viriam,  e sorriu. Colocou as fotos na borda junto às pequenas velas que foram acessas, formando uma trilha de luz...     Mergulhou na água gelada enquanto o veneno fazia efeito. No fundo havia apenas a escuridão, mesmo assim ela sentiu-se aliviada...Quase feliz....
 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 04/02/2009
Reeditado em 05/05/2009
Código do texto: T1422219
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