O ESTRANHO HOMEM DE NEGRO

O Doutor Fraga chamou dois de seus colegas de trabalho. Trabalhavam eles numa clínica psiquiátrica de propriedade dos três e mais dois outros que não estavam presentes naquele dia. Era um homem de grande capacidade de raciocínio, dono de um raciocínio profundamente analítico, lógico, características que associadas a uma grande capacidade de memória foram as causas de todo o seu prestígio como médico- não que fosse um dos médicos mais renomados do país, um Pitanguy; não, sabia que não era um homem de tamanho renome público; era bom, mas não o suficiente, e mesmo que fosse não era um ramo da medicina que fosse popular. Seus amigos eram de capacidades próximas a dele senão fossem iguais. A grande divergência entre eles era em algumas opiniões. Fraga era mais cético, discípulo mais fiel do pensamento científico puro, devoto fanático da fé na razão; Gonçalves seguia um pensamento muito semelhante. Dos três o mais distinto era o pensamento de Welbaum, homem afeito a muito do lado místico, apresentava uma talvez crença, uma talvez curiosidade com o bizarro e com o desconhecido, ao modo dos homens da ciência do século dezenove. Muitas vezes era alvo de troça de seus colegas na clínica pela incrível curiosidade com que escutava alguns pacientes descrevendo aquilo que lhes ocorrera. Quando zombado pelos colegas costumava citar-lhes Spencer: “O desenvolvimento da ciência só fez aumentar os pontos de contato com o desconhecido que a rodeia”. Era comum que revidasse comentando do silêncio que sucedia à citação e com uma grande e estridente risada de sua voz esganiçada

Os pacientes eram universalmente pessoas de famílias de altas posses, homens e mulheres, moços e moças, velhos e velhas afetados por problemas mentais sérios. Quando ditos sérios não significa que fossem perigosos, mas sim inconvenientes. De qualquer forma, todos ali tinham problemas mentais no mínimo razoáveis. Muitos esquizofrênicos, alguns psicóticos, outros depressivos, borderlines, vez por outra surgia um caso de pseudologia fantástica. Aquele caso, todavia, que o doutor Fraga estava para lhes apresentar era bem mais que interessante para os três.

- É uma pena, justo ele...- disse doutor Gonçalves.

- Isso é, sim, uma ironia miserável - retrucou fraga

- Realmente... Quem diria que Jorg Dvorak houvesse enlouquecer um dia - Welbaum disse com um tom que misturava um tanto de tristeza com uma certa descrença, pensava se não descria por sua natural curiosidade ou por uma simples negação da loucura de seu querido professor de faculdade.

- dos campos tchecos direto para o rio e para a insanidade... é tão sério o caso do professor?- era assim que todos chamavam o homem, na medida que todos eles foram alunos de Jorg Dvorak.

- É bem sério, quando ele explica como foi encontrado naquele estado não fala coisa com coisa, não há qualquer nexo. Para se ter uma idéia ele não comenta nem com base em si, mas sim numa paciente que ele diz que sumiu bem na frente dele em pleno escritório, quando digo sumiu quero dizer mesmo é evanesceu. Do jeito que ele está não duvido também que a paciente seja uma pseudomemória. Quem diria...

-bom, é melhor que se investigue se houvera uma paciente no consultório quarta passada.

- você sabe muito bem que é um tanto complicado, ter agenda não foi das maiores preocupações do professor Jorg, guardava o nome de todos os pacientes de um dia de memória, além disso, ele deu folga para a secretária naquele dia. Sem contar claro que dificilmente se terá uma testemunha considerando que o escritório é uma casa sem sistema de câmeras. Mas de qualquer forma não adianta nada buscar provar qualquer coisa! É só ouvir o velho que vocês vão ver de cara que ele ficou completamente esquizofrênico, melhor é um verdadeiro nefelíbata.

- de qualquer forma, vejamos o professor para que possamos ver o melhor tratamento ao caso- disse Gonçalves, mais profissional que Welbaum e Fraga

Era um senhor de mais ou menos uns setenta anos, seu cabelo branco denunciava que na juventude fora dono de uma vasta cabeleira loura, seus olhos eram pequenos e com uma íris cinza, dando uma expressão de aço fosco. Era alto, forte e peludo; um perfeito exemplar de homem germânico. A maneira como se empunha num ambiente era incrível para uma pessoa de sua idade, uma feição mais que imponente, mas talvez algo em seu olhar ou na feição séria de seu rosto ossudo davam uma profunda expressão de conhecimento sábio e incontestável. Welbaum tremeu ao vê-lo, era a memória de todas as suas aulas, vinham todas à sua mente agora com todo um brilho, a fluidez com que falava tudo, a capacidade que tinha para sempre cativar os alunos; uma retórica fantástica. Gonçalves e Fraga sentiram a mesma coisa, só que numa escala muito menor. Infinitamente menor.

- bom, nunca pensei me encontrar nessa situação, os senhores todos sabem. É de certo uma profunda ironia- o psiquiatra que é considerado louco. Mas devo frisar que o termo melhor é considerado. Existem muitas situações que não foram consideradas para que pudesse ser constatado como louco. Por exemplo, o que seria aquela mancha um tanto quanto rosada no carpete de meu escritório? Outra coisa, por que motivo estaria ali sem que houvesse um paciente marcado? São muitas perguntas que podem ser colocadas quando se realiza o escrutínio preciso de toda a situação; mas enquanto isso vocês devem ponderar com toda a certeza: onde que tudo isso se encaixa com todo o caso? Onde se encaixa isso com o fato de ter sido encontrado me revirando pelo chão entre gritos e gargalhadas. Um surto, um colapso nervoso com toda a certeza, tal fato não posso de qualquer maneira negar. Cabe então mais uma pergunta: o por que eu, Jorg Dvorak, tive esse surto, há um motivo para que um homem seja encontrado assim e depois falar de modo tão ponderado e racional ante um grupo de médicos sobre o caso - diria até que de igual para igual. Meus queridos alunos dou-lhes, como já houvera feito com o doutor fraga, o motivo para esse surto. Quando ouvirem todo o transcorrer dessa história vocês terão total certeza que nada mais justificável do que o colapso que apresentei. Digo, na verdade foi uma reação mínima, qualquer pessoa com um espírito mais fraco que o meu estaria agora preso dentro de um total caso de loucura, desespero, talvez catatonia, que nada na medicina contemporânea poderia explicar, nada na ciência e mesmo na mística contemporânea atual poderia explicar.

“O fato transcorre da seguinte forma. Como sabem meu consultório é incrivelmente movimentado - vez por outra tenho como pacientes homens de outros estados - industriais e latifundiários, ou mesmo alguns empresários menores. De qualquer forma, comecei a prestar consultas para uma moça, Marta Lamarca. Uma moça muito delicada, ela era abatida por uma profunda esquizofrenia. Comumente era vítima de visões de estranhíssimos vultos negros, enormes vultos de homens sem rosto envoltos em mantas negras. Como se poderia imaginar para uma pessoa com tamanha moléstia, ela era acometida por um extremo pavor contra todas essas coisas, levando a situações mais que bizarras, numa dada situação tive de ir para o apartamento de sua família na Borges de Medeiros porque ela não saía de forma nenhuma de seu quarto por razão de estar vendo o enorme vulto ao redor da mãe, ameaçando matar sua mãe caso se aproximasse, andando se trancar no quarto para que isso não acontecesse. Bom foi um trabalho custoso convencê-la que não havia mais perigo nenhum“.

A situação fora crescendo em intensidade e freqüência, eram quase que diárias suas alucinações com esses vultos sombrios, não foram poucas as vezes em que ela os via em meu consultório. Nessas situações eu podia muito bem observar suas feições de pânico. Por sinal, é muito interessante observar o rosto de uma pessoas com medo- o medo verdadeiro que eu quero dizer. É de uma contorção incrível de músculos, seus olhos se tornam frenéticos, seus olhos se abrem mais e mais muitas vezes, sua boca se abre num esgar tão enorme. Na verdade o corpo todo se torna uma sádica obra barroca e ao mesmo tempo gótica. Dessas situações assim que eu digo que a feição mais difícil para um artista plástico expor em suas obras é o medo. Tanto é verdade que mesmo nos períodos com tendências macabras da arte, não são comuns as feições do pavor; exceto em alguns casos, como o grito de munch, mas nesse caso ele não tem o objetivo puro e simples de expressar o pavor, mas sim uma expressão da relação de angústia com o mundo. Nunca vi uma pintura ou uma escultura que mostrasse medo, talvez seja por demandar tanto de uma contorção que seria necessária uma arte extrema.

Como ia dizendo, suas visões se tornavam cada vez mais recorrentes apesar do tratamento conjunto que eu e seu psicólogo fazíamos em cima da questão. Conforme o mal progredia, suas descrições se tornavam mais vívidas. Confesso que por vezes suas descrições eram tão intensas que cheguei a desconfiar da fronteira entre a sanidade e a loucura; da fronteira da realidade e o delírio. Não foram poucos os homens que pregaram em tempos antigos que não havia distinção, e não duvido que qualquer pessoa sensível seja capaz de ter uma mínima desconfiança por conta de certas situações. Vamos elencar alguns exemplos: não é estranho que haja uma repetição de figuras de serpentes aladas em inúmeras mitologias ao redor do globo; quetzacoatl, tiamat, os dragões chineses, os dragões ocidentais, a grande serpente de muitos mitos africanos; além disso, quem já leu a bíblia e compará-la com outras mitologias ao redor do mediterrâneo verão uma recorrência na figura dos gigantes; a bíblia diz “naquele tempo havia gigantes andando na terra” no capítulo de gênesis. Bom aqui estão algumas provas que me vêm a memória. pensando bem é sempre bom se ter uma suspeita quanto a dadas situações, mesmo que frívolas.

Um dia tive noção que a situação estava já na massa crítica. Quando veio a meu escritório, depois de uma semana que já não se consultava, começou a me contar de uma situação totalmente nova. Até aquele momento ela somente tinha me descrito que esses quadros de alucinações ocorriam enquanto ela estava consciente, seus sonhos eram intocados por qualquer forma dessa “perseguição dos vultos”- como ela costumava dizer. Ela passava inclusive mais tempo dormindo por razão de seus sonhos serem sempre tranqüilos, descrevendo que estava eternamente caminhando sobre campinas verdejantes, onde gerânios e margaridas floresciam.

Lembro-me muito bem como ela descrevia seus sonhos:

“Caminhava por um belo campo de flores, aproximando-me sempre em meus sonhos de uma cadeia de montanhas elevadas; montanhas negras e de cumes muito branco- uma cena que sempre considerei muito bonita. Na última semana em um dos meus sonhos eu alcancei a base dessas montanhas. Enormes, colossais, ciclópicas, furando as nuvens como lanças de ferro. Em meus sonhos eu avancei pelas trilhas estreitas que se formavam ao seu redor, delas eu via um rio cortando sua paisagem monumental, eu subi por três noites até que numa dada vez, olhando para o céu alaranjado dos meus sonhos, deparo-me com um vulto. Sim! um deles estava em meu sonhos, mas esse era muito pior que todos estes do nosso mundo. Eu pude vê-lo com tamanha perfeição que só de lembrar o senhor pode ver o quanto minha pele está arrepiada. Ele era enorme, talvez uns quatro metros e meio de altura, todo envolto em um manto negro, de uma lã absolutamente escura. Sua cabeça é envolta por uma capa que é um prolongamento do manto que cobre todo o seu corpo. Além disso, não há como saber qual é seu rosto realmente, ele é envolto por uma máscara de ouro que sugere os rosto de um homem mas no centro da testa há um símbolo que lembra uma estrela de três pontas“.

“Eu o segui por três noites seguidas de sonhos e mais. Não sei por qual motivo eu o seguia, mas havia algo nele que me induzia a isso, como uma serpente encantada com os movimentos da flauta de um indiano. Eu o segui até o alto das montanhas de meus sonhos. Eu o segui cada vez mais alto; a cada dia sentindo mais frio- a cada dia acordando com a pele mais gelada que na manhã anterior. Conforme subia eu pude ver corvos, mas não eram como os corvos do mundo, eram corvos grandes e todos eles tinham quatro assas negras e emitiam sons horríveis, lembrando o arranco de um homem na hora da morte. Na última noite, eu cheguei ao topo de uma das montanhas, tão altas que nem sequer poderia imaginar um mundo tão elevado, as nuvens tão abaixo dos meus pés que pareciam um campo coberto de neve. Lá, no cume destes picos encontrava um palácio monumental. Era majestoso porém havia algo na sua forma que eu não sabia dizer porque me gera medo. Apresenta seis torres, todas elas negras e lembrando minaretes contorcidos, há dois enormes domos no centro da estrutura e além disso há um portão todo feito de opala, mudando de cor a toda hora. O homem mascarado me pede para que eu entre, mas tenho medo e acordo sempre. Este sonho tem tido uma certa recorrência, este em que esse espectro mascarado me convida a entrar no palácio negro”

“Doutor, eu não consigo agüentar mais tamanho inferno. Você e o doutor Roberto me dizem em todas as consultas que todas essas coisas são projeções imaginárias, coisas criadas pela minha mente, marionetes que o meu cérebro frágil cria no espaço. Mas eu não consigo mais concordar com o que vocês me dizem. Eu sei que o que eu digo parece tão absurdo quanto dizer que dois mais dois são cinco, mas não é absurdo eu tenho toda a certeza que são coisas reais, são espectros reais, sombras reais que nunca pudemos entender, e por isso a ciência diz ser uma doença mental. Não doutor, não é doença é uma verdade. Eu não estou louco, estou ficando louca. Doutor, a pressão na minha cabeça é muito grande, nada está fazendo efeito, está tudo somente avançando. Seus remédios não estão me fazendo efeito algum. Não há mais nada o que fazer! Eu vou me matar! ”

O resto da consulta eu fiquei por tentar convencê-la da idéia de suicídio. Ela estava fortemente determinada para tal, estava quase fanática com a idéia. Quando consentiu com meu ponto de vista que todo o suicídio é um ato desnecessário, desconfiei de tão abrupta mudança, por tal razão liguei para a casa dela imediatamente após sua saída prevenindo o contato de Marta com qualquer faca ou objeto cortante, escondessem os remédios mais fortes, e periodicamente abrir a porta de seu quarto. Marquei uma consulta para o dia seguinte para dar a menor vacância de tempo sem que me visse. Além diso, liguei para seu psicólogo, Roberto.

Chegando em casa, pensei seriamente em uqe decisão tomar quanto ao caso. Era o caso mais grave, e sempre fui contra o processo de internação, exceto em total necessidade- caso fosse um risco a vida dos outros por exemplo. Suicídio é de muito risco, mas também é uma idéia claramente refutável, na verdade é simples ensinar o paciente refutar a própria idéia. Mas é necessário destruir a causa da idéia, é necessário reduzi-la ao absurdo. Constatei, como vocês devem ter reparado que a origem dos pensamentos suicidas foi concomitante ao surgimento deste estranho homem mascarado. Por tal razão é válido deduzir que este ser é a matriz. Para tal eu precisaria a certo modo ajudá-la. Por essa razão utilizei-me de um método que não considero dos mais eficazes. Considerei necessário o uso do mesmerismo. Só dando um certo tom de consciência ao seu sonho que me seria possível ajudá-la, fazendo um liame entre o consciente e o inconsciente poderia resolver o problema.

A questão fundamental era o medo. Para desbaratá-lo faria como um pai faz com um filho que tem medo do escuro. Havia a necessidade de fazê-la compreender que aquilo era irreal, que aquilo não passava de uma ilusão produzida pelos onirismos do cérebro. Era necessário levá-la a entrar naquele palácio, convencê-la a tocar, se possível, aquele ser onírico. Com toda certeza perdendo esse estranho medo, a questão do suicídio estaria amainada, senão terminada.

Quando da hora da consulta, já estava com todo o consultório pronto, era minha última paciente do dia, e, além disso, havia uma folga de duas horas desde a paciente anterior. Minha secretária não pôde vir naquele dia, o que não foi de muito problema pois o dia não foi dos mais movimentados. Quando a moça chegou, senti um não sei quê de ansiedade, excitação, angústia.

Expliquei-lhe todo o processo que lhe expliquei o que seria realizado ali, o que após uma certa contra-argumentação ela acatou a idéia. O processo mesmérico é rápido de se iniciar, e seus efeitos são impressionantes com toda a certeza, vemos neles os limites do cérebro de uma maneira clínica quando o fazemos direito.

Comecei a interrogá-la do que ela estava vendo.

- o céu, é de uma cor púrpura, é de um arroxeado maravilhoso que faz um incrível contraste com as estrelas brancas e prateadas brilhando maravilhosamente. Voam sobre minha cabeça corvos negros, corvos negros com quatro asas cada, crocitando uma espécie de música tão triste...

- E como são as montanhas?

- São todas elas monumentais. Estou no topo de uma delas, mas existem muitas montanhas ao redor que são muito maiores que aquela onde estou. Esses titãs, tem uma forma torcida, parecendo que algumas de suas encostas são incríveis escadarias. Elas são tão altas e aqui já são tão nevadas...

- Olhe ao redor, você vê aquele palácio, o palácio negro? Ela demorou um tempo para responder, realmente olhando em sua mente ao redor

- Estou vendo o palácio! Não! aquele terrível homem mascarado de novo! Ele está lá novamente, bem diante da porta do palácio. Eu vejo todas essas torres e minaretes negros; vejo suas janelas de um vermelho sangue das gelosias; vejo o portão de opala, os domos ciclópicos- vejo tudo. Vejo tudo e lá está ele, aquele homem aterrador, me chamando para entrar naqueles domínios mas não quero

- Por que você não quer?

- Eu tenho uma sensação estranha...

- Como você a descreveria?

- É tão esquisita, é como uma voltagem no peito, uma sensação tão esquista, como se o coração quisesse sair do peito atravessando os ossos e a pele. Tenho a impressão do meu coração estar balançando no meu peito violentamente. Fora isso uma onde percorre todo o meu corpo, sobe e desce por minha coluna. É esquisito, meu corpo quer se retrair, mas não o faz; minhas mãos tremem, mas minhas pernas se mantém firmes no lugar- realmente nesse momento percebi que suas mãos tremiam quase que de modo convulsivo.

- Não é nada é só uma bobagem, você não deve ligar para isso. Aceite, vamos aceite!

Levou um tempo para que ela desse uma nova resposta.

- Estou passando por salas imensas, são colunas se espalhando para a esquerda e para a direita - colunas distorcidas de cores tão incríveis e tão novas. Uma sala toda me lembrando um chão de estrelas, eu estou andando sobre galáxias, estou andando sobre milhares de estrelas e planetas, lá está ele imenso e impassível ante mim. Estou passando por uma enorme sala toda feita de água, me sinto como se eu andasse pelo mar dividido por Moisés, me sinto deslumbrada. É tudo tão fantástico até aqui.

“Meu deus esta sala é tão escura, não consigo ver nada a um palmo do meu nariz que não seja ele, andando sempre no mesmo ritmo cheio de uma entonação sagrada. Ele me diz para ter calma, diz para que eu espere pela verdade que ele quer me mostrar, quer me mostrar a revelação que foi dada para poucos, eu agora não tenho mais medo, estou só curioso. Não sinto medo nem mesmo nesta sala totalmente escura. ele me falou que entenderei agora o propósito de todos os vultos que encontrei na vida desde os dez anos de idade. Ele fala que todos eram arautos do momento em que eu vivo. Deus tudo agora faz tanto sentido”

Aquilo agora já começava a e preocupar. Ocorrera na verdade o reverso do que eu estava esperando. Ao invés de desmoralizar aquele sonho, eu o fiz ainda mais lógico. Deus! Como eu fui tolo! Como não pensar que aquele sonho era um elemento da lógica interna de um absurdo. Agora eu a fiz compreender que tudo era lógico - o que era uma falácia monstruosa. Eu precisava tirá-la daquele transe. A cada minuto, a cada segundo que ela se mantinha naquele sonho bizarro ela estava entrando cada vez mais numa lógica psicótica, num abismo profundo de loucura. Era melhor que eu a removesse daquele transe.

Quando o fiz, senti medo. Melhor, quando eu tentei fazê-lo, senti medo. De certo um erro de técnica, mas ela não saía daquele sono consciente.

É uma coisa horrível quando se perde o controle de uma situação. É uma das sensações mais frustrantes para qualquer ser humano, com toda a certeza. Em primeiro lugar, somos acometidos por uma sensação de impotência, todos os esforços tanto do físico quanto da mente quanto do espírito se mostram tolamente inúteis, a sensação de se estar conscientemente paralisado, um tanto de sensação de tetraplegia- um fato desagradável ocorrendo irrefreável, e você estático o contemplando esperando que nada lhe aconteça. Não conheço muitas sensações piores que essa. Na verdade, nem me lembro de qualquer uma que seja pior que a da perda de controle.

Ela prosseguia contando passo a passo todas as coisas que ela via ao seu redor. A medida que o fazia, mais isso me abalava. O abismo onde ela estava entrando estava me puxando também, de uma maneira muito mais branda, mas de qualquer forma de uma maneira opressivamente pesada. Todo meu corpo se sentia agredido, e de certo isso me induziu àquele colapso nervoso em que eu fui encontrado.

Ela falava:

- Estou passando por uma sala toda vermelha, sua paredes são viscosas, gotejantes, são esquisitas e o cheiro é muito desagradável. O que goteja parece uma gosma que lembra muito betume. Um cheiro pungente de podridão, um quê de carne podre, um quê fermentação, e algo também de acidez. Tudo goteja nessa sala, sinto um nojo insuportável, que ânsia de vomito.

“Meu deus o que é essa sala agora? É horrível! Não há cor na terra que posso dar base a sua cor. É horrenda, eu a sinto por todos os cantos me tocando, mas suas paredes estão tão longe. São nojentas, as janelas são grotescos olhos amarelados, com íris em cruz, freneticamente olhando tudo para todos os lados se revirando, pulsando como bolhas asquerosas. Além disso surgem por todos os cantos, por toda superfície da parede rostos humanos. Meu deus que Expressão eles mostram! Todos sofrendo, todos com feições tão laceradas, escancaradas, tão horrivelmente grotescos.”

“Por que você me trouxe até aqui?” dizia. Até agora somente tinha um fluxo de consciência, descrevendo tudo ao seu redor, só externava seu pensamento. não havia até o presente momento qualquer forma de diálogo entre ela e o homem. “o que você quer? Quem é você? Por que você está escondido por essa máscara? Mostre o seu rosto? Sim, eu quero que você mostre o seu rosto!”. Ela falava milhares de vezes aquela frase.

Nesse momento senti um frio percorrer minha espinha. Uma sensação muito desagradável, um pouco de frio definiria bem isso. Sentindo-me como um animal da savana, cruzando a relva, olhando com cautela para todos os lados possíveis. Para todos os lados possíveis tinha a impressão de um vulto negro estar ali. Um vulto muito alto envolvendo toda a sala. Um arrepio, um tamborilar do meu coração, uma constrição dos pulmões- meu corpo não era mais um agregado de órgãos que um agregado se sensações desagradáveis. Eu fiquei nessa situação até um grito me chamou a atenção.

Ela soltou um grito tão profundo, tão agudo que o medo que sentia foi tomado por um susto maior. Na verdade o que eu vi nada em todos os anos de psiquiatria me prepararia para a cena seguinte. Nenhuma mente está preparada para uma cena como aquela; ninguém tem os nervos tão fortes que pudessem ver o que vi sem que caia por algum tempo no mais profundo de todos os surtos. Cair no mais profundo dos surtos senão enlouquecesse para sempre.

Fico profundamente nervoso agora que tenho de lhes descrever isso. Foi grotesco, bizarro, surreal. Foi medonho, agressivo. Quando vi fui acometido por uma vertigem; meu corpo não respondia mais a razão de maneira alguma. Os músculos convulsos, os lábios quase que imberbes. Foi esse o começo de meu colapso nervoso. Mas vou lhes dizer o porque disso: diante de mim MARTA ESTAVA SE DISSOLVENDO! virando uma massa amorfa, um líquido asqueroso de carne putrefata e ossos dissolvidos.

Todos os médicos ficaram quietos após o fim do relato. Entreolharam-se, com uma feição profissional. Tinham aquele olhar um tanto distante e pensativo que dá uma perfeita feição ao rosto de um homem de qualquer ciência. Estavam todos mudos com o velho ali como se fosse uma atração de circo. Welbaum rompeu o silêncio:

- De certo, ele está louco!

Daniel Torres Teixeira
Enviado por Daniel Torres Teixeira em 31/01/2009
Código do texto: T1414131
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