Ceifador - Apenas um negócio

A grande maioria das pessoas vive como se nunca fosse morrer, daí o fato de na maioria das vezes eu me deparar com recém defuntos completamente despreparados para a passagem final. É mesmo um terrível mal dos homens, não parar para pensar na morte, acredito que isso tornasse as relações bem mais cordiais e as pessoas mais felizes de uma forma geral.

Olhe todas as pessoas que passam a vida com o objetivo de comprar uma casa ou um carro, ou conseguir o emprego dos sonhos. Dificilmente elas refletem sobre a aproximação da morte, porque se o fizessem, dariam bem menos relevância a essas coisas materiais, ate mesmo pessoas que dizem acreditar na chamada salvação eterna ao lado de Deus, passam a vida proclamando a grande importância de serem bem sucedidos, não param para pensar que após estarem debaixo da terra servindo de comida aos vermes, todo esse sucesso não terá servido para nada.

Pois não se engane, apesar de esse mundo conter imensas discrepâncias entre as pessoas, perante a morte realmente todos são iguais, toda e qualquer morte pode acontecer com toda e qualquer pessoa, com iguais chances, excetuando-se alguns casos especiais como as balas perdidas, que tem uma probabilidade maior de servir de causa mortis a habitantes de favelas dominadas pelo tráfico, e algumas mortes bem específicas que só atingem pessoas incrivelmente idiotas.

Enfim, pensar sobre a morte é algo realmente importante, porque ensina a qualquer a dar um direcionamento melhor a sua vida, Porque algumas pessoas fazem imensas tolices apenas porque não pararam para pensar nisso, e ironicamente, quando não vêem mais meio de consertar, apelam diretamente para a morte como forma de escapar, pode parecer poético ou dramático e até servir como temas para literatura, cinema ou novelas, mas a cruel realidade é que não resolve coisa nenhuma. Como exemplo disso vem claramente à lembrança o dia em que encontrei Victor Salazar Sanderson.

Ele era um jovem médico extremamente talentoso que teve em mãos uma oportunidade que poucos têm, ser realmente útil aqueles ao seu redor, através de seu imenso dom para a medicina. Quando jovem só pensava em salvar vidas, em colocar suas mãos a serviço da sobrevivência humana, foi brilhante no curso, brilhante na prática, tão brilhante que não pode deixar de cometer um erro muito comum as pessoas brilhantes: Achar-se mais brilhante do que se é. E, com isso, começar a fazer coisas que deveriam estar além da sua moral.

Apesar de muitos cometerem atrocidades, cada ser humano possui os conceitos básicos do que é certo e errado dentro de si, isso forma a moral coletiva que se resume da seguinte forma: Respeitas a vida, a opinião e a propriedade alheia. Infelizmente a maioria deles encontra alguma forma de distorcer esses princípios, camuflá-los, e, assim, acabam corrompendo a si mesmos. Alguns fazem isso através da religião, usando a crença como desculpa para odiar os outros, outros usam a raça ou a nacionalidade ou até mesmo um estilo de música.

No caso do doutor Victor, foi utilizada uma filosofia distorcida sobre salvar a vida alheia, achando que uma morte era justificável se fosse para salvar 2, 3, ou 4 vidas, ele subjugou a verdadeira moral que havia dentro de si. Essa moral não pode ser extinta, apenas escondida, e mesmo assim um dia ela retorna para cobrar o preço por seu degredo, normalmente isso acontece após a morte ou quando se está agonizando, no caso de Victor, aconteceu enquanto ele estava forte e saudável. Mas foi tão pesado o que ele havia feito, que o preço que sua moral mutilada cobrou foi sua sanidade.

Ainda lembro quando adentrei seu quarto luxuoso conquistado as custas da sua integridade. Ele estava sentado na sua escrivaninha, escrevendo uma carta de despedida, na qual também confessava seus crimes. Ao seu lado jazia uma garrafa de um certo tipo de medicamento que normalmente é usado para tratar de pessoas com problemas cardíacos. Entretanto, se a substância for tomada em grande quantidade, como era a pretensão do doutor, terá o efeito contrário, induzindo um ataque cardíaco. Observei-o calmamente até que terminou de escrever e bebeu todo o líquido transparente em apenas um gole, logo ele começou a agonizar em busca de conforto na morte, para azar dele, não sou a melhor das criaturas para consolar os outros.

Em pouco tempo, o vi levar a mão ao peito, tentava murmurar alguma coisa, mas a voz lhe faltou. Pude notar seu olhar fixo em mim, já havia percebido minha presença. Ao notar me via, não pude esperar mais para me apresentar, se demorasse muito, perderia o efeito surpresa:

--- Olá Victor, bem vindo ao além.

--- Que-quem é você?

--- Agora a pouco você escreveu ai que estava indo buscar consolo em meus braços, bem cá estou eu, mas pode esquecer o consolo.

Sua voz ainda soava tremula e fraca, devido a dor que acabara de sentir. As vezes isso acontece quando a morte é muito dolorosa. Demora um tempo para se refazer.

--- ...

---- Não precisa se apresentar porque sei bem quem você é, estou te observando já a algum tempo, fui lendo tudo que você estava escrevendo em tempo real, mas cheguei a duvidar se teria mesmo coragem no final.

--- Você queria a morte, pensava que isso iria apagar a dor do arrependimento de ter matado tantas crianças para vender seus órgãos, bem, agora que já está morto, te pergunto, melhorou alguma coisa?

Ele demorou a responder. Parecia estar mergulhado num misto de dor, arrependimento e surpresa.

--- Não... Creio que não...

--- Então, o que podemos concluir disso?

Pude observar as lágrimas que correndo pelo canto dos seus olhos.

--- Diga, o que podemos concluir disso?

--- Aonde quer chegar?

--- Eu respondo: podemos concluir disso que você não resolveu coisa nenhuma. Pense comigo, se eu quero compensar algum mal que fiz, tenho varios caminhos a seguir. Tomando seu caso por exemplo, você matou várias crianças abandonadas para vender seus órgãos. Ora, você era um médico brilhante, poderia ter compensado isso dedicando o resto da sua vida a tratar crianças carentes de graça, salvando muito mais vidas do que as que você destruiu. Dentre esse e outros caminhos para se redimir, você escolheu exatamente o mais inútil de todos, aquele que não resolve absolutamente nada, se matar. Olhe como é irônico, você tirou várias vidas, se arrependeu, e para compensar isso, a maneira que encontrou foi tirar mais uma. Isso tem lógica para você?

As lágrimas fluíam freneticamente pelo seu rosto, numa atitude patética se imaginarmos o que um dia ele foi. Estava tão instável emocionalmente que mal conseguia responder minhas perguntas:

--- Eu mereci isso... Eu mereço morrer, mereço sofrer...

--- Eu não sou digno de viver...

--- Não estou discutindo o que você merece ou não. Estou discutindo o que você tinha ou não direito de fazer. Você um dia aprendeu que só se deve usar e abusar daquilo que lhe pertence. Diga-me uma coisa: mesmo sendo um medico brilhante, você mesmo projetou seu corpo??

--- Suponho que não...

--- Você fabricou suas próprias células?

--- Não, mas... O que quer dizer com isso?

--- Quero dizer meu caro, que se você não construiu seu próprio corpo, de onde tirou a idéia de que tinha o direito de destruí-lo?

--- Eu... Eu só queria que tudo isso parasse...

--- Você esta sendo contraditório, a pouco disse que queria sofrer, que merecia sofrer, agora diz que queria que tudo parasse. No fundo, você apenas exercitou mais uma vez seu egoísmo ao escolher o suicídio. Pensou apenas em si ao tirar a própria vida. Se quisesse mesmo pagar, teria agüentado o resto dos anos que lhe faltam pagando pelo que fez. Mas, enfim, você está aqui e não há como voltar, agora vá levantando que precisamos sair daqui.

--- O que vai acontecer comigo?

--- Você vai seguir seu destino, provavelmente irá pagar pelo que fez, sinceramente não sei o que será de você a partir de agora, e para sua sorte, não sou eu o responsável por decidir isso.

FIM

P.S: Esse conto foi escrito em parceria com Julio Cesar Rodrigues Mantovani Filho, criador do personagem Victor Salazar Sanderson no conto original chamado "Apenas um Negócio" que pode ser encontrado no link abaixo:

http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=16099875&tid=5281536591297703384&na=1&nst=1

O conto original conta a vida do Doutor Victor até a hora em que se mata, este conto, continua onde o outro parou, falando o que ocorreu logo após a morte do Doutor e seu consequênte encontro com o Ceifador, tudo que é falado pelo ceifador foi escrito por mim e tudo que é falado pelo Doutor Victor é falado pelo Júlio, com algumas colaborações de um lado e de outro.

Ian Morais
Enviado por Ian Morais em 28/01/2009
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