Ceifador – Dona Aracy

A sutileza na execução de qualquer morte deve ser sempre algo constante. Assim como não existem pessoas iguais, também não há mortes iguais, sendo responsabilidade de cada ceifador atentar para isso evitando eventuais problemas para os vivos. Ao falar nisso não me vem à mente melhor exemplo que o de Dona Aracy. Era uma velhinha de 84 anos, tão cansada pela idade que sequer podia andar por conta própria, seu rosto tinha aquele aspecto peculiar aos idosos que nos levam a pensar que eles nunca devem ter sido capazes de fazer nada de ruim, que são incapazes sequer de pensar algo mal de alguém. Ledo engano. Ao me aproximar de Dona Aracy vi claramente com foi sua vida. Era a lamentação em pessoa, vivia reclamando da vida, que ninguém gostava dela, que só queriam se aproveitar dela, que o marido devia ficar com alguma outra escondido, infernizou a vida de todos quantos lhe foi possível. O marido morreu jovem pelo estresse que ela causou.

Quando a encontrei ela estava no hospital se recuperando de um leve problema desses que vêm com a idade, todos pensavam que não seria dessa vez que se livrariam da velha, estavam enganados, o destino de dona Aracy estava selado, sua vida seria ceifada naquela noite úmida de sexta-feira.

Era um caso simples, era só chegar e providenciar um acidente vascular cerebral ou algo do tipo, mas pensem comigo: quando se tem a responsabilidade de providenciar centenas e centenas de mortes diferentes, se você fizer todas automaticamente sem variar em absolutamente nada o trabalho fica tão chato que você vai acabar esquecendo até sua identidade e começar a agir como uma máquina. Por isso, na morte de Dona Aracy, resolvi caprichar.

Olhei o relógio que estava em uma parede do hospital e este marcava pouco mais de onze da noite, devia me apressar, caminhei por alguns daqueles corredores brancos por onde tantas almas já haviam sido levadas, nunca entendi porque as pessoas acham que a morte está presente em cemitérios, uma vez que, tirando um ou outro acidente bizarro, pouquíssimas pessoas morrem nesses lugares, quando elas vão para lá, tudo já costuma estar perfeitamente consumado.

Cheguei perto da enfermaria do meu objetivo, ela estava acordada ainda, impedindo um idoso que estava ao seu lado de dormir com suas reclamações sobre a enfermeira que havia chamado estava demorando muito para chegar.

Apesar de isso não ser tão reconfortante como parece, a presença da morte pode ter um efeito extremamente calmante sobre alguém, quando cheguei perto, o velhinho ao lado caiu imediatamente no sono, fixei o olhar em Dona Aracy para verificar se conseguia me ver, ela correspondeu ao olhar, ótimo.

-- Finalmente veio uma enfermeira, vou processar esse hospital, tenho um filho juiz e outro advogado, vocês deviam estar me tratando muito bem. – Falou ela de maneira tão irritante que só não fiquei com raiva porque lembrei que ela estava prestes a morrer, então apenas a olhei com a expressão mais boba que consegui imitar.

--- Que está fazendo ai parada? Esses fios estão me incomodando, nesse país não respeitam mais os idosos.

--- Calma Dona Aracy, já vou dar um jeito na senhora. – Falei calmamente usando uma voz falsa enquanto me aproximava e fingia mexer nos fios. Fiquei em uma posição em que propositalmente ela veria uma parte do meu rosto por baixo da máscara.

--- Espere, você é um homem? Mandaram um homem vestido de mulher me atender, que pouca vergonha é essa?

--- Não seja idiota Dona Aracy, acha mesmo que o Hospital mandaria um homem vestido de mulher para atender à senhora? --- Indaguei não mais disfarçando a voz.

--- Não, acho que não, então você, você não é do hospital?

--- Parabéns, você acertou --- Falei batendo palmas --- Eu lhe daria um doce de presente mas acho que o seu médico não iria aprovar.

Sua face se transformou, ao invés da raiva de antes, agora o terror era nítido em seus olhos, era tão forte que eu podia sentir, era tão intenso que quase parecia sólido. Não era mais possível a ela articular palavras corretamente, então ela apenas balbuciava:

--- O que... o que você ... quer co-mi-i-go?

--- Pensei que fosse óbvio, a senhora tem alguma teoria?

--- P-Por f-fa-v-vor... não me faça nada... sou uma velha.

--- Sim, uma velha que chegou ao fim da picada, não me olhe com essa cara, seu tempo de jogo aqui acabou já há um tempo, a senhora está na prorrogação, dificultou as coisas para sua família durante décadas, agora terá que me aturar pelo resto da sua vida.

--- O resto da mi-mi-nha vida?

--- Exatamente, mas não se preocupe, ela só vai durar mais dois minutos

--- Você vai me MATAR????????? --- Esbravejou ela recuperando a fala.

--- Não confunda minhas palavras, eu falei que sua vida dura apenas mais dois minutos, e para ser mais exato agora só lhe restam um minuto e 45 segundos, é uma boa hora para refletir sobre sua vida.

--- Pelo amor de Deuss...........

--- Um minuto e trinta segundos.

--- Não, valha-me Deus.

--- 1:20...

--- Dou o que quiser...

--- 1:10 ...

--- Você vai pagar por isso...

--- Um minuto.

--- Cinquenta segundos

--- Não, não pode estar acontecendo.

--- Quarenta

--- O que eu fiz meu Deus?

--- Trinta.

--- O que?

--- Vinte.

--- O QUE?

--- Dez segundos.

--- Nove.

--- Oito.

--- Sete.

--- Cinco.

--- Não, não – Falava ela aos prantos.

--- Quatro.

--- Três.

--- Dois.

--- Hum, parece que acabou o tempo.

--- Por favor, não, aiiiiiii......................

Senti exatamente quando seu coração parou com o enfarto fulminante, é realmente impressionante o poder da mente humana, quando alguém realmente acredita em algo, a força de sua crença faz aquilo acontecer, é a lei da atração facilitando meu trabalho. Retirei meu disfarce e a esperei acordar, uma enfermeira de verdade tinha acabado de entrar e logo o estado do corpo chamou sua atenção e ao aproximar-se ela constatou a morte da velha senhora. Ela saiu para dar o aviso e enquanto isso observei Dona Aracy acordar novamente e a levantei segurando sua mão.

--- Quem é você? Onde está aquela enfermeira travesti?

--- Não se preocupe, ela já foi embora, agora eu vou cuidar da senhora.

--- Eu quero um médico, e quero isso já.

--- A senhora terá um médico, apenas me acompanhe que lhe levarei até ele.

Ela não viu seu próprio cadáver estendido na maca, mas logo lembraria cada passagem do que houve e perceberia seu novo estado, mas até ai, eu esperava já estar bem longe dessa encrenca.

Fim

Ian Morais
Enviado por Ian Morais em 23/01/2009
Reeditado em 29/01/2009
Código do texto: T1400173
Classificação de conteúdo: seguro
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