Ceifador Valentões e Covardes

Algo que certamente torna minha ocupação bastante interessante é a inesgotável capacidade do ser humano para surpreender. Claro que a maioria dessas surpresas são de teor negativo, mas isso não as faz menos interessantes. Além do que vale a pena assistir centenas delas para aprender a valorizar as pouco positivas que aparecem.

Para quem pergunta o que pode haver de positivo em relação à morte, eu poderia enumerar longa e exaustiva lista, mas prefiro ir soltando cada uma aos poucos para que possam ser saboreadas com a devida atenção. Poderia também dizer que na verdade não existe nada negativo para se falar, porque se fossemos esmiuçar, iríamos achar uma valiosa lição em todos os eventos que ocorrem. Isso pode ser muito bem ilustrado com algo que presenciei há bastante tempo.

Na época eu era um tímido ceifador em inicio de carreira, lidando com mortes no interior, não que minha atuação em cidades fosse nula. Mas aquela época até mesmo as maiores cidades destas terras não tinham importância o suficiente para serem tratadas como tal. As pessoas eram mais supersticiosas, a morte era mais mistificada e ninguém curtia novela das oito, enfim, era tudo bem mais divertido, principalmente se você é do tipo que não precisa de energia elétrica e tecnologias de comunicação de alto desempenho para ser feliz.

A história que vou contar possui dois personagens principais. O primeiro é o coronel Gomes Feitosa, grande proprietário de terras em uma localidade perdida no tempo e no espaço, nem eu lembro mais o nome daquele lugar. Coronel Gomes possuía terras, mas agia como se também possuísse todas as pessoas das cercanias, e o pior é que isso não estava muito longe da verdade. O segundo é Tido, um negro baixinho recém chegado ao lugar ninguém sabia de onde, venceu as desconfianças por sua simpatia e vontade de trabalhar, e assim foi ficando, o pouco tempo que estava ali não o permitia ter ainda uma completa sintonia com os costumes do lugar.

Havia no vilarejo uma mercearia, que todos chamavam bodega e que também fazia as vezes de bar, o dono era ávaro e prepotente como todo dono de mercearia do interior que tive o desprazer de conhecer vivo ou a satisfação de assistir a morte, por isso tenho um certo carinho por supermercados, eles quebram essa circulo de alta hipocrisia e opressão dos donos de mercearia, neles há um único preço para todos pagarem, e a mesma fila pela qual todos passam, não dependendo do humor de ninguém para ser atendido, teoricamente é claro.

Era um lindo dia de domingo no velho vilarejo. Domingo era aquela dia em que todos saiam de seus afazeres normais para se iludirem um pouco com outras coisas e esquecerem a dureza da vida. Enquanto as mulheres preparavam um repasto especial, os homens saiam cedinho para o bar, ficavam lá até por volta do meio dia, o que dava tempo suficiente para ficarem todos embriagados, estragar o almoço da família e terem uma desculpa perfeita para não participarem do evento dominical das mulheres: a celebração religiosa, que tinha a nobre função de lavar a alma das mulheres de todas as dores e frustrações da semana, pois lá elas tinham a oportunidade única de elevarem seus pensamentos em conjunto para que todas ficassem a par das ultimas fofocas da vila. Aquele domingo em particular estava destinado a custar muito para ser esquecido.

Aos poucos cada homem havia chegado ao bar, haviam três recostados no balcão imundo onde dezenas de moscas voavam e de vez em quando pousavam para provar um liquido asqueroso que escorria pelo mesmo. Os demais presentes estavam espalhados pelo pequeno alpendre conversando amenidades enquanto ingeriam generosas quantidades de aguardente.

Tido era um dos que estavam encostados ao balcão. Sua cabeça passava apenas um pouco do mesmo em virtude da exigüidade de sua altura, o que não o impedia de ser um dos mais falantes, porque era novato no lugar e tinha muitas coisas diferentes para contar e quebrar a monotonia costumeira das conversas. Estavam empolgados com mais um “causo” do baixinho quando um som de trotar de cavalos se fez ouvir fazendo com que todos se calassem de repente, era o coronel Gomes. Era um homem muito alto e muito gordo, possua extensa fama de valentão e contava com várias mortes nas costas. Como era de costume, já chegou com considerável quantidade de álcool no organismo. Sua figura aparentava a de uma fera, e os demais pareciam cordeirinhos acuados ante sua passagem.

Desceu do cavalo olhando para os lados como se estivesse procurando algo em que descarregar sua permanente ira. Caminho a passos pesados para o balcão e dois dos homens que lá estava se afastaram respeitosamente. O dono da mercearia, hipócrita e bajulador como apenas um dono de mercearia consegue ser, aproximou-se apressadamente com uma garrafa nova de aguardente e seu melhor copo que era guardado para uso exclusivo do coronel.

Gomes Feitosa tomou o primeiro copo servido de um único gole, após isso parou para olhar com mais atenção ao seu redor. Cumprimentou o comerciante e mais um ou dois dos camponeses presentes e por último se deteve na figura de Tido, que até ali passara despercebido, provavelmente por causa de seu tamanho, apesar de estar exatamente do lado do coronel, olhou-o demoradamente e falou como se estivesse pensando alto:

-- O que será que tem na cabeça de um anão negro para se achar no direito de ficar ao lado de um homem de verdade em um balcão.

Todos se sobressaltaram, com exceção de Tido, que continuou a beber calmamente de seu copo. Sua calma irritou profundamente o coronel. Este sacou sua arma e desferiu violenta coronhada no copo do negro. Tal ato aumentou ainda mais a tensão que se espalhara, alguns homens começaram a se afastar do local sem sequer disfarçar. Apesar de tudo, Tido permaneceu quieto no seu canto do balcão, sem falar absolutamente nada, isso foi demais para os brios do coronel Gomes.

-- Some da minha frente, negro filho do capeta – Gritou este enquanto empurrava bruscamente Tido de encontro ao chão de terra fora do alpendre.

O pequeno se feriu bastante na queda e ninguém se atreveu a tentar ajudá-lo. Tido levantou e saiu do local de cabeça baixa enquanto o coronel voltava-se calmamente para o balcão se servindo de mais bebida.

Tudo parecia ter voltado à calmaria e todos procuravam fazer de conta que nada havia ocorrido. De repente, toda a tensão retorna de uma única vez quando Tido entra decidido no pequeno alpendre e se encaminha para o balcão. O coronel de volta raivosamente para ele, como quem não acredita no que está vendo, e grita se preparando para lhe dar outro violente golpe:

-- Como se atreve a voltar aqui seu negro imundo, eu lhe dar ...

Gomes Feitosa não teve tempo de terminar o que queria e seu tapa jamais chegou a alcançar o destino, pois nesse momento o franzino Tido, com um único golpe, abriu seu abdome com uma navalha e suas entranhas começaram a escorregar lentamente para fora do corpo enquanto ele procurava evitar isso em um gesto que só posso classificar como patético. Antes que todos se refizessem da surpresa, Tido havia sumido para nunca mais retornar aquele lugarejo.

O coronel perdia cada vez mais sangue e agonizava esperando a morte, claro que no fundo ele não precisava esperar nada porque eu estava ali o tempo todo observando tudo, mas sei que na hora da morte as pessoas conseguem ver todas as coisas ruins que fizeram como em um filme, como o coronel tinha feito realmente muitas coisas ruins, dei para ele um tempo razoável para reflexão, que isso fique bem claro para que não pensem que sou sádico.

Após todo o tempo necessário decorrer, ele finalmente pôde me enxergar, estranhou minha presença ali apesar de ainda estar sendo muito afetado pela dor.

-- Se eu fosse você desistia, não tem como colocar isso ai de volta para dentro e além do mais não vai te servir para nada a partir de agora. – Falei simpaticamente para fazer um primeiro contato.

-- Olha como fala comigo seu atrevido, sou o coronel Gomes Feitosa, eu posso...

-- Não faça dramas amigo, me diga uma coisa, você já ouviu falar que todos são iguais perante a morte?

-- Já, mas...

-- Pois é, é verdade, agora levanta daí vai, não tenho o dia todo.

-- Então você é a morte? – perguntou ele surpreso – não pode ser, a morte não pode ser assim.

-- Claro que pode, não estou vestido a caráter porque nesse caso não foi necessário, a navalha daquele simpático senhor serviu muito melhor que minha foice e eu não ia vestir uma bata negra com capuz com esse calor não acha?

Ele pareceu não ter ouvido o que eu disse, o que foi lamentável, e continuou:

-- Mas eu não estou morto, eu estou falando, estou vendo tudo.

-- É mesmo, você está falando, mas não está notando que o único que te ouve sou eu.

-- Olhe, não posso morrer assim, com uma facada de um negro que não tem onde cair morto.

-- Tem razão, ele não tem onde cair morto, mas isso não é tão ruim, afinal ele não está morto, está bem vivo, quem está morto é você e para sua felicidade, possui um imenso espaço onde cair morto, pena que tenha vindo a cair logo na parte mais imunda do mesmo.

-- Não me deixe ir, dou o que você quiser.

-- O que eu quiser? Tem certeza?

-- Sim, pode pedir, qualquer coisa que me pertença.

-- Ótimo, durante toda a sua vida você agiu como se a vida dos que moram nessas terras lhe pertencesse, lembra de um homem chamado José Lopes?

-- Não.

-- E Joaquim Silva?

-- Esse eu lembro, ele...

-- Ele é uma das 34 pessoas que você matou achando que a vida deles era de sua propriedade, se realmente elas pertencem a você e você as tomou por direito, então é isso que lhe peço, em troca da sua vida, me dê a vida dessas 34 pessoas.

-- Eu não posso, não posso ressuscitar ninguém.

-- Que coincidência, eu também não.

Então ele percebeu a realidade e como todos os valentões que já vi passarem por aquela situação, ficou choroso como uma criança perdida dos pais. Ele teria muito trabalho pela frente, eu até sentiria pena, mas estava com muitas outras tarefas para cumprir naquela dia, então me limitei apenas a fazer o que sempre faço, o resto não é mais de minha alçada.

Ian Morais
Enviado por Ian Morais em 22/01/2009
Reeditado em 29/01/2009
Código do texto: T1399028
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