Ceifador

Meus joelhos doem e me preparo para falar sobre o tempo em que não precisava me preocupar com isso, infelizmente este se encontra tão distante que sequer consigo lembrar. No estado em que estou chego a imaginar se existiu mesmo esse tempo, talvez eu o utilize apenas como um incentivo para continuar a jornada.

Esse devaneio quase me fez esquecer o objetivo, sim, o objetivo, posso sentir o cheiro dele apesar de estar ainda a uma distância considerável. Talvez o ar umedecido pela chuva seja o responsável por isso. Choveu por toda a tarde, a cidade se encontra cheia de famílias desabrigadas nas áreas pobres, em outras, particularmente na que agora caminho, as calçadas estão frias e encharcadas de água, as nuvens pesadas cobrem todo o céu, dando essa noite um clima de enterro, isso é irônico. Irônico e apropriado.

Aproximo-me de um bar nobre, daqueles que são feitos no terceiro mundo imitando algo que existe nos paises ricos, é aí que esta o objetivo. É realmente um lugar nobre, uma ilha de imenso luxo que contrasta com tudo que se vê da porta de saída para frente. Ninguém presta muita atenção quando adentro no local, ficaria surpreso se prestassem, a discrição se encontra profundamente entranhada em meu ser e eu gosto muito disso.

Sento-me em uma mesa afastada e observo o objetivo. Um rapaz branco alto, aparenta cerca de 25 anos, não mais, está em uma mesa com 3 amigos e duas moças, uma delas é sua acompanhante da noite, uma entre tantas que ele já teve em sua breve vida. Sua vida poderia ser definida como ideal pela maioria dos jovens de sua geração, porém a noção de vida ideal que os jovens possuem costuma ser sempre incrivelmente distorcida em prol de coisas absolutamente sem importância. Infelizmente esses jovens crescem e continuam com a mesma mentalidade, variam apenas as coisas sem importância a que dão atenção, por isso o mundo continua caminhando para a beira do abismo geração após geração.

Ele consome um copo de bebida atrás do outro enquanto lança olhares furtivos para a jovem ao seu lado. Os amigos fazem brincadeiras e falam de esportes, dinheiro e várias outras coisas inúteis com as quais as pessoas perdem suas vidas se preocupando. É tão estranho o ser humano. Na mesma cidade a poucos quarteirões, várias e várias pessoas dormem ao relento. Crianças estão desabrigadas por causa das chuvas. A água do planeta está acabando. A comida também. Guerras sem sentido destroem vários povos e culturas por todo o mundo. E mesmo assim meu jovem e tolo objetivo está poluindo seu corpo com bebida enquanto se concentra apenas na noite de sexo que está antevendo, como se nada estivesse acontecendo, como se estivesse tudo bem. O ser humano realmente é de um sangue frio que me deixa impaciente.

O objetivo pousa o copo na mesa e se levanta, pronto pra concretizar aquilo que havia planejado. Uma pena. Realmente uma pena. Como eu gostaria que ele tivesse sabido pelo menos um mês antes. Talvez tivesse realizado alguma coisa de relevante nesse intervalo. Mas infelizmente as coisas não funcionam assim. Levanto junto com ele e o aguardo enquanto paga a conta. Aproximo-me lentamente enquanto se apronta com os amigos para sair. Em alguns segundos seu corpo tomba pesadamente no chão assustando a todos. Abaixo-me e o toco novamente. Chamo-o pelo nome e o tomo pela mão. Ele acorda e levanta comigo enquanto todos se movimentam desesperadamente ao redor do seu corpo sem vida. Como todos os outros ele está confuso, logo a confusão se transformará em desespero, o desespero em revolta e a revolta em conformação. Tantas vezes vi isso que já perdi a conta. Sacudo uma poeira inexistente em minhas vestes e caminho noite adentro o levando para muito longe, tão distante que nem a imaginação dele consegue alcançar. E depois, depois partirei para a próxima tarefa, pois grande é a messe e muito poucos os ceifadores.

Ian Morais
Enviado por Ian Morais em 20/01/2009
Reeditado em 28/01/2009
Código do texto: T1395267
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