Nevrose
Transporte coletivo – um lugar onde as coisas menos prováveis acontecem. Desta vez , eu fui o protagonista de mais um lamentável´episódio urbano, sem nexo ou razão de ser. Era uma quinta-feira, véspera de feriado. No relógio devia ser umas vinte três e trinta, quinze para meia-noite – não sei ao certo que horas eram. Como de costume, voltava da faculdade, cansado, após mais uma dura rotina estafante. A julgar pela paz que reinava naquele coletivo, as pessoas que ali estavam deveriam estar sentindo o mesmo. Alguns dormiam, enquanto outros, assim como eu, estavam num estado de semi-sono. Quer dizer, bem ao certo, ao fundo do ônibus havia um pivete ligadaço com seu mp3 player ajustado no volume máximo. Irritante! Deveria estar sob efeito de drogas ou coisa assim. Mas.... e o motorista? Estaria ele na mesma sintonia dos passageiros? E se estivesse...por uns instantes desejei que ele estivesse. Uma colisão frontal contra um veículo pesado, arremessaria aquele ser para fora no ônibus, mas antes, estilhaçaria sua cabeça no pára-brisas.
Mas não era ele o núcleo desta narrativa. Como dizia, eu estava num estado de semi-sono, com os braços levantados, apoiado naquelas barras paralelas, presas ao teto do veículo. Este, por sua vez, não estava lotado, mas havia algumas pessoas em pé. E no momento em que ele diminuía desacelerava para mais uma parada, uma mão pesada acertou o meu rosto. Sim, senhores! Tomei um baita muro na cara, bem no córtex central. Estava cabisbaixo, o que contribuiu àquele punho cerrado me acertasse em cheio. Puta-merda! Minha primeira reação foi um ai – um inexprimível ai – que certamente ninguém ouviu. E visto? Será se alguém foi testemunha daquela cena humilhante? E o agressor? Quem seria e porque faria? Talvez tivesse pisado em seu calo ou quem sabe, empurrado-o involuntariamente quando embarquei. Esfreguei meu rosto, como se aquele gesto aliviasse a dor. Olhei para os lados e finalmente fitei meu algoz. O sangue subiu. Por que não revidar? Sim, a reação lógica àquela ação seria a retaliação. Como revidar? Havia várias formas para tal – apelar a um escândalo, descer atrás dele e tirar aquilo a limpo...nada fiz. Não por medo do agressor, mas por não me expor a vexação. Amanhã seria feriado e correto seria ir para casa e esquecer tudo aquilo. Por que azedar a noite? Fui para casa com uma a cara ardendo, buscando em todos meus juízos esquecer o factóide. O dia seguinte foi marcado por uma dor de cabeça oscilante. Diante do espelho, vi que minha testa inchou do lado esquerdo. Revoltante! Toda vez que eu lembrava daquela face fria, o ódio parecia não caber em mim. E foi assim pelos dias que se passaram. Imagina vinganças. Numa delas, eu acertava violentamente o seu rosto contra um muro de reboco bem áspero, provocando arranhões irreversíveis. Pensei mil modos de me vingar que deixei de pensar em um objetivamente. Foi meu erro.
Tive certeza disto quando encontrei com ele novamente, no maldito coletivo. Ódio cresceu. Quis ir até o banco onde ele estava sentado e deferir tantos golpes até vê-lo vomitar a bílis. Ainda era dia, estava bastante claro. Havia poucas pessoas ali, o número ideal de espectadores para ver o espetáculo de horror. Refuguei. Por que refuguei? Não sei. Não sei explicar. Sei apenas que a falta de coragem nutriu o ódio ainda mais. As vozes dentro de mim interpretavam aquilo como um ato de covardia.
Noite escura. Voltava da faculdade, mesmo ônibus, mesmo sentimento de cansaço. Estava sentado, cochilando, com a cabeça apoiada no vidro. E num movimento que hoje entendo por involuntário, torci meu pescoço e o vi, junto a porta de desembarque. Deveria ser agora. Se não fosse, somente o óbito poderia aplacar meu sentimento. Me apressei. Quando venci os obstáculos e pulei do ônibus, que já estava em movimento, o infeliz estava a uma distância considerável. Fui em sua direção quase correndo. Estava tudo planejado – há poucos metros donde ele estava, apressaria-me ainda mais, e a distância de um largo passo, eu ergueria a perna direita a uma certa altura e acertaria suas costas em cheio com a sola do pé. Um movimento rápido e violento que deixaria-o estirado no chão. E nesta posição, aplicaria vários chutes, em seu estômago, em seu peito, em sua cabeça...
Contudo, um algo quase pôs tudo a perder. Ao passar por baixo do facho de luz dum poste, percebi um detalhe que dantes eu não havia percebido – ele era coxo! Coxo da perna direita, o que lhe obrigava a depender do auxílio duma bengala. E agora? Seria covardia bater num coxo? Como bater num coxo? No estudar da vingança, não imaginei agredir um coxo. Numa atitude irracional, acertei uma bicuda em sua bengala, atirando-a longe. Foi engraçado o modo como o coxo caiu. Parecia uma bailarina inexperiente, c/ sua perninha doente desgovernada para cima. Caiu ali, entre a guia e a rua. Na queda, o infeliz esmagou o nariz no chão. O sangue escorria. E enquanto tentava inutilmente se levantar, o pobre xingava - "Vagabundo ! Filho-da-Puta!" o ódio q se fazia presente ali e eu achava tudo tão engraçado. Apanhei sua bengala e me aproximei dele. O sangue rolando pelo rosto ferido, mal teve tempo p/ se proteger das várias cacetadas que deferi contra si. Caiu desacordado. E como sinal de solidariedade, joguei a bengala sobre seu corpo. Se fosse um mal caráter, eu a quebraria ou à atiraria num local onde ele não pudesse encontrar. Pior - levaria os trocados que estivessem no seu bolso. Fui embora rindo. E conforme me afastava, podia ouvir os gemidos. Olhei para trás e vi o coitado se mexendo no meio da escuridão; a mão em riste para cima como tivesse uma convulsão. E se estivesse? Que m'importa ? Estava feliz !