Black Juju

“Corpos... precisam... de descanso...”. Era a frase que estava presa em sua mente. Não gostava daquela parte da cidade, não apenas por ser onde se localizava o cemitério municipal, mas também por ser o ponto de encontro de degenerados, prostitutas, velhos gordos burgueses com seu dinheiro sujo e demais classes de pessoas que Alice acreditava que não eram dignas de respirar o mesmo ar que ele. Sim, ele. Alice era um rapaz. Talvez bebedeiras e bacanais justifiquem seu nome: seus pais haviam recém voltado da lua de mel na Cidade do México (onde experimentaram todos os tipos de tequila) quando se dirigiram, ainda meio chapados, ao cartório, para registrá-lo.

Enquanto passava ao lado do cemitério, fugindo das putas e travestis que o abordavam, Alice ouvia uma doce melodia. Como se podia ouvir algo tão doce em meio aquela barulheira noturna? Se bem que se via barulho, mas não se ouvia... Existia apenas uma música atmosférica no ar. Seria alguma orquestra? Ou uma canção de Vincent Furnier? - Bom, o que importa é que preciso sair daqui, antes que acabe como “aqueles”. - dizia. Os chamava de “aqueles” para não perder tempo pensando em um adjetivo que responda por tais pessoas.

Ele via-se superior. Não pecava, mas também não era religioso. Não fumava, nem bebia. Era contra a violência, batia na sua mãe apenas quando necessário. Quanto a seu pai... bem, o infeliz deixou a família quando Alice tinha 13 anos (hoje tem 19), mas não sem deixar de herança hematomas no pobre garoto. A surra que a mãe levou no dia da partida do pai a fez parar no pronto-socorro. Hoje ela está bem, fazendo o seu tratamento diário à base de álcool todas as manhãs. Alice saiu da escola porque não agüentava ver aquelas velhas frustradas lhe dizendo o que é certo e o que é errado. As mesmas que enchiam a cara no intervalo, abusavam da pífia autoridade que lhes era concedida e trepavam com o diretor quando queriam aumento. Também era insuportável para ele ver aqueles moleques gordinhos e mal encarados, com suas bochechas cor-de-rosa e cabelos lambidos roubando o lanche dos indefesos pequeninos-magricelos-com-olhos-grandes filhinhos de mamãe. O que mais odiava no mundo era injustiça... Pensando bem, a segunda coisa que mais odiava era injustiça... A primeira eram pessoas.

Encantado pela melodia, desapressava o passo, até que algo lhe chamou atenção. Brilhava muito e transmitia uma sensação de justiça. Aproximou-se do objeto que se encontrava encostado no muro do cemitério. Uma pá. “Nós todos... precisamos... de descanso...” continuava aquela interessante voz em sua cabeça. Tomado por um desejo, uma intensa alegria, ria, ria muito! Alice então se agarrou na pá como em uma espada, e foi fazer justiça. Naquela noite, mais de quinze covas foram feitas para abrigarem mais de uma dezena de corpos vivos de prostitutas. O rapaz começou a fazer uma limpa pelo lugar, colocando “aqueles” no lugar que mereciam - debaixo do solo úmido, ao lado de vermes. Não os matou porque não quis se dar ao trabalho. Sádico?

- Meu dever é só tirá-los das ruas... Embaixo do solo os parasitas que cuidem deles - pensava. Aquele estranho hábito continuou por mais algumas noites, a caça aos injustos! - Não posso tornar o mundo inteiro um lugar melhor... Mas farei minha parte pelo menos na minha cidade! - dizia Alice. Um cidadão exemplar! Todos devem fazer sua parte, contribuindo para um mundo melhor!!

Chegando em casa, depois do quinto dia de vigilância noturna, acabou por pegar sua mãe copulando com algum bêbado vagabundo, no meio da sala. Sem pensar duas vezes, pegou a pá, que estava ao lado de fora da porta, e acabou com a existência do infeliz, sujando, pela primeira vez, suas mãos de sangue. E de sangue imundo! Desesperada, a mãe, que já estava “alta”, começou a vomitar por todo o lugar até que, enfurecido, Alice concluiu o trabalho. Mais duas sepulturas foram cavadas no cemitério. Aliviado, o garoto foi dormir. Ao tentar pegar no sono, eis que a misteriosa canção surgiu em seus ouvidos novamente: “Corpos... precisam de... descanso... todos nós... precisamos... de descanso... durma... um sono tranqüilo... descanse... descanse...”. A voz e o som do relógio o fizeram dormir. Sonhava com exóticas batidas tribais. Algumas horas depois de cair no sono, a voz que cantava uma melodia tão tranqüilizante começou a gritar desesperadamente na sua cabeça. As paredes tremiam, o teto parecia que viria a desabar! “Acorde!!! Acorde!!! Acorde!!! Acorde!!!” era o que a voz gritava. Aterrorizado como nunca em sua vida, correu em direção as ruas com a pá ainda ensangüentada para fazer o seu trabalho.

Depois de concluído, exausto, deitou-se no chão do cemitério. Começou a sentir uma imensa sensação de culpa: - Não sou diferente deles - refletia. - O que, afinal, me torna superior? - dizia, enquanto cavava outro buraco. Passado algum tempo, finalmente deita-se naquela que seria sua última cama, onde descansará em paz, eternamente. Volta a se sentir bem. Não havia mais música ou barulho algum, a não ser o do grande cachorro preto que jogava terra sobre seu corpo. Pois é, todos precisam ter o seu descanso.

Gian D
Enviado por Gian D em 06/01/2009
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