As Quatro Provações - Vingança

Maldoso. Inconsequente. Folião. Arrogante. Frio. Essas foram algumas das muitas peculiaridades citadas por um grupo de amigos na faculdade a respeito de Lin. Como se não bastasse, tais acusações ainda soavam como elogios, segundo os próprios familiares do "garoto", que estavam no auge da indignação. Lin, na flor de seus 20 anos, era a ovelha negra não só de toda a família como também de todos os círculos de convivência que frequentava. Um eufemismo para qualquer uma de suas características não era aceitável nem agradável nos paladares de ninguém que já tivesse seus trinta segundos, ao menos, perto do jovem rapaz. Assim era ele: o extremo do Yang. A negatividade em excesso.

Ou seja: tudo, absolutamente tudo, que as pessoas temiam e rejeitavam.

- O que esse idiota pensou quando eu procurei a irmã dele para estudar ? Que eu a levaria para a cama no próximo minuto? Ai, cuidado, Fran, não encoste aí! - resmungava Alexander para a colega de sala, que o hospitalizava no pátio da faculdade. Emitiu um som nasal - Ah, maldição! Esse cara tem sérios problemas mentais...

- Aposto que foi ele! Desgraçado, filho da mãe!!! - bradava Mariana, sobre o caso mais polêmico no campus: um furto de verbas destinadas à realização de um trabalho acadêmico de alto custo.

- Eu faço de tudo para ele criar algum juízo. Eu rezo a Deus, à Santa Virgem Maria, a São Bartolomeu... o que eu fiz de errado, o quê?? - e sucumbiu às lágrimas. Os demais familiares acolhiam Rita, mãe de Lin, senhora dedicada.

O mundo girava em sua volta, e suas vontades eram as de Deus. Foi nisso em que cresceu acreditando, e por ironia do destino, sua cabeça amadureceu paralela a esses pensamentos ruinosos.

Em um momento específico da vida sua mente havia entrado em declínio absoluto. Seus familiares sequer comentavam... mas nem diferença isso fazia. Nem se fosse apenas por curiosidade ele perguntaria da morte de um parente, muito, mas muito próximo. As únicas coisas que via e cobiçava eram os lucros pessoais que poderia obter com toda essa gente por perto. Contudo, em seus vagos pesadelos via um rosto muito familiar, sereno, e bem parecido com o seu; alguém que ele acreditava conhecer intimamente, mas que não se recordava por um motivo ignoto.

Lin ia novamente à faculdade com sua habitual expressão carrancuda e atraindo os olhares de terceiros. Contudo, ganhava a simpatia de poucos que o consideravam como iguais, e mesmo assim não eram retribuídos da mesma forma. O desprezo era para todos... e que o mundo se explodisse junto com o restante. Amar-se-ia até o resto de sua miserável vida, com todas as qualidades que tinha, e todos os defeitos que não reconhecia.

Em uma noite tão negra quanto qualquer outra, ele caminhava solitário e sem rumo pelos corredores do campus. O luar banhava o piso em que seus passos ecoavam, cortando as frestas entreabertas das janelas que gentilmente cediam passagem a eventuais brisas esquivas.

- O senhor já ditou as regras há tanto tempo... que tal se as coisas agora fossem invertidas ?

Lin vasculhou o ambiente com o olhar em busca do emissor daquelas palavras.

As portas estavam imóveis, mortas. Sem sinais de recém-intrusão ou coisas do tipo.

- Não está com medo, está ? Então me prove.

E se destacou de um trecho assombreado: um homem totalmente imberbe, moreno, cabelos cacheados e rebeldes que lembravam trepadeiras em miniatura. Seus olhos azuis perfuravam a íris de Lin, inusitadamente, fazendo-o conter seu acesso de ira. Usava algo (ridículo aos padrões atuais) que mais lembrava a vestimenta medieval de padres católicos.

Lin se manifestou com rigidez, porém, seus olhos diziam outra coisa. Não via familiaridade nas feições do intruso; nenhuma ligação do homem de cabelos negros com sua intimidade. O limbo de seu sub-consciente falhava, por uma razão muito mais do que uma possível simples memória: o intruso não mentia nas acusações...

- Não precisa fazer essa carinha - adiantou o estranho rapaz vestido de padre - a propósito, meu nome é Carlos. Não vou me prender muito a apresentações desnecessárias, mas acho que sabe bem do que estou falando. Vai me agradecer depois de tudo.

- Tudo o quê? - e Lin se surpreendeu consigo mesmo depois de pronunciar essa pergunta. Pela primeira vez em muito tempo, alguém o reprimia.

Carlos se degustou com a expressão vazia e perdida do jovem inconsequente. Em seguida, caminhou até a porta que levava a um segundo corredor.

- Entre, por favor - pediu o excêntrico metediço, pouco antes de alcançar a maçaneta da porta dupla. Deu passagem a Lin, sem realmente saber se ele aceitaria a proposta.

Lin sabia que ali era o corredor das demais salas de aula; no entanto, via apenas um hall mal-iluminado por uma luz fosca esverdeada de projeção curvilínea. Se aproximou mais um pouco, sustentado pelo olhar de Carlos, e delatou que havia apenas duas portas em cada canto do hall, uma virada para a outra. Vacilou por um instante, e a porta às suas costas se fechou com estrépito.

- Maldição! - trovejou. Foi o preço que pagou por ser tão atrevido: o confinamento pelas mãos de um vidente zé-ninguém - Abra essa porta!

O batente não cedia, e não houve resposta do outro lado. Lin se virou para o cômodo desconhecido, se perguntando uma série de coisas. Se estava num sonho, se estava dopado, tendo alucinações, ou com sono em excesso. Nunca vira aquele hall, e que passava uma sensação tão desagradável. Sentia uma vibração incômoda em seus nervos; nenhum som ambiente alcançava seus ouvidos.

Ouviu-se um grito feminino vindo de algum lugar bem próximo do rapaz, pegando-o de supetão. Um clamor abafado, contudo, evidente. Estava em uma das portas laterais. Lin se adiantou.

Olhou de esguelha para a porta da esquerda e em seguida para a da direita através das janelinhas de observação; viu uma mulher deitada em uma maca metálica, e prontamente a reconheceu: Mariana, a menina petulante que o acusava frequentemente de ter roubado os alunos do curso. Permanecia estática, mas seus olhos se mexiam, e sua boca tiritava. Divisou, pelas sombras projetadas para além da garota, que ela se encontrava num cubículo. Girou o pescoço de encontro à outra porta, cujo cômodo era idêntico ao anterior, mas havia lá um clima bastante divergente: uma outra mulher deitada numa maca, se debatendo com desespero, chorando escandalosamente. Ela olhava para os lados, se encolhendo debaixo do cobertor branco como se pudesse enxergar fantasmas nas paredes mórbidas do cubo. Uma moça muito bonita, acima de qualquer padrão, apesar das expressões aterradoras e caretas que esboçava...

Mas que raios elas estavam fazendo ali ? Não sabia, mas um terceiro berro cortou seu devaneio e o fez abrir a porta da sala da mulher em prantos altos para acudi-la imediatamente. Ela o abraçou enquanto ele a retirava da maca, e foi amparada até deixarem o cubículo. Ela insistia para ir embora daquele lugar, gritava, apontava a porta no fim do hall, oposta à porta dupla pela qual o rapaz chegara ali. Seu olhar recaiu sobre janela onde Mariana jazia estática com seus olhos de súplica. Não tinha tempo para ela, infelizmente. A moça que amparava certamente precisava de mais urgência - pensava consigo mesmo. Carregou-a até uma segunda porta dupla, onde juntos atravessaram.

O novo cômodo não havia nenhuma fonte de iluminação, e tal como da última vez, a porta se trancou automaticamente. Segurou a mulher pelos ombros e perguntou:

- Sabe por onde seguir?

Ela foi contendo o pranto com esforço. Depois permaneceu em silêncio.

- O-obrigada... - disse, por fim.

E então Lin sentiu náuseas. Seus olhos reviraram, enquanto pôde ver um par de olhos azuis brilhando em um ponto da escuridão mórbida...

Um frescor. Vento açoitando seus cabelos. Sensação de prazer, somado ao vazio na consciência. Lin abriu os olhos, e no primeiro instante sentiu medo. Estava no alto de um planalto rochoso, onde o vento empregava força privilegiada. Seu cérebro ia reunindo os fatos, paulatinamente, e só então se deu por falta da mulher recém-acolhida. Não se encontrava ali. Nem tivera tempo de voltar para levá-la consigo. Era tudo muito estranho! Viajava de lugar para lugar em questão de segundos... nada fazia sentido! Sentiu uma onda de antipatia crescente pelo excêntrico rapaz de cabelos encaracolados; se não estava sonhando, era tudo, então, uma brincadeira deveras sem graça.

- Lin!

Girou nos calcanhares, apurou os ouvidos tentando isolar o som do vento. Encontrou um homem sentado numa pequena elevação de rocha. Se aproximou, limpando os olhos das impurezas que a ventania transportava.

- Ouça-me... - continuou o estranho. Vestia-se exatamente como Carlos (a princípio Lin acreditava se tratar do mesmo), porém percebeu outra voz saindo debaixo daquele capuz - não posso prolongar-me nas palavras. Tudo o que precisa saber é o seguinte: estamos no alto de um rochedo. Abaixo dele existem quatro vilarejos, um em cada direção, Leste, Oeste, Norte e Sul. Você deverá seguir para um desses vilarejos se quiser se libertar...

Sua voz falhou, trazendo-lhe lágrimas ao rosto obscurecido. Escondeu-o entre as mãos cicatrizadas.

Lin deu as costas ao encapuzado, mastigando cada palavra, e também o tom de voz com que o sujeito se expressara. Aquela voz acendera-lhe o subconsciente...lembrava alguém. Seus olhos pousaram sobre uma alta estaca de madeira cravada no meio do planalto. Haviam, presas a ela, quatro placas indicadoras para cada direção. Liam-se "Serenidade, Caos, Indiferença, Fim". Girou em torno de si, observando os horizontes, e tentou associar A com B...

- Se libertar? - perguntou o rapaz perdido - se libertar de quê?

Mas a pergunta se esvaiu com o vento...pois não havia ninguém lá. Nenhum sinal do encapuzado.

Os quatro vilarejos no horizonte, idênticos entre si, despertavam uma angústia no peito de Lin. As novas ideias não abriam conexões lógicas. Deveria simplesmente adentrar um dos vilarejos e pedir informação para retornar à sua cidade?

Mantinha a mesma expressão intrigante, e com ela continuava a observar o horizonte, os vilarejos, respectivamente tracejados e mapeados como um trevo, um em cada direção. Bufou, pousando a palma da mão na testa... sentia tonturas. Pensar não adiantaria muito. Desceu a colina para uma direção, sem saber realmente onde ia; seu futuro seria guiado pelas asas da incerteza...

A força do acaso o carregava, deliberadamente, para uma névoa de mistérios. Encontrava-se num mundo surreal, onde nada tinha explicação, e sem motivos aparentes. Os véus do novo mundo enigmático o acolhiam, não sabia se como uma nova cria, ou como um filho bastardo. Era agora a vítima do destino nas mãos de um outro alguém.

De pronto, notou a atmosfera mudar. Estava a poucos metros do portal do vilarejo, que permanecia descerrado, quando o sol se desabrochou das nuvens carregadas, trazendo consigo os sons da natureza que despertavam a paz e a prosperidade. Os pássaros acompanhavam uma cantoria comumente agradável. Vozes de crianças, risos otimistas, finalmente completavam a sinfonia de concórdia. Lin ergueu os olhos da vegetação rasteira e bem cuidada do local e se fixou adiante. Pessoas dispostas e felizes passavam para lá e para cá com mercadorias, crianças implicavam umas com as outras e no fim deitavam no gramado se acabando de tanto rir, maridos beijando suas esposas e dizendo coisas doces... um lugar que certamente Lin não estava acostumado a frequentar; ou quem sabe porque, onde quer que fosse, a paz perdia o seu brilho natural. Continuou dando passos adiante, examinando os rostos mais próximos afim de eleger, por meio de critérios próprios, qual seria o mais indicado para lhe passar informações. Viu de relance uma mulher parda recostada na cerca de uma plantação próxima. Ela escondia o rosto entre os cabelos cacheados e castanhos, embora passasse a Lin a ligeira impressão de estar monitorando alguém ou algo. A mulher atravessou o portão e desapareceu de vista.

Uma menininha correu até o jardim, pegou uma rosa, e correu até Lin, entregando-a.

- Para você, moço - disse ela, com sorriso e olhos radiantes.

Lin segurou a flor, ainda em torpor por causa das novidades. Os pais da criança o cumprimentavam alegremente.

"Bem vindo a Serenidade", dizia um letreiro na entrada do ambiente. Lembrou-se das indicações nas placas anteriores. Viu-se entre todas as pessoas alegres, porém, isso sequer o irritava. Considerava a cena estranha, curiosa. Seu tempo ali, talvez, seria diminuto. Caso demorasse, hospedar-se-ia em algum estabelecimento em troca de serviços gratuitos.

Atravessou a multidão bem-humorada até chegar num pátio do vilarejo, sem tantas pessoas. No minuto seguinte, uma cena que congelou seus olhos. Algo que misturou suas noções do novo mundo paralelo com a realidade do dia-a-dia: Alexander estava lá, sentado num banquinho de mãos dadas com... sua irmã, Louise. Outra vez!

Certamente o que aconteceu a seguir não foi nenhum efeito paranormal, nem magia do novo mundo paralelo. O cenário de bondade se apagou dos olhos de Lin de modo que tudo ficasse quase negro, restando apenas um caminho pouco-iluminado entre ele e o casal. As pernas de Lin andaram automaticamente, reduzindo cada vez mais a distância entre os três. No segundo seguinte, estava com uma pá gigante de cavar nas mãos, pronto para...

Louise gritou agoniada. Viu o amante cambaleando até a cerca da fazenda; os dedos inutilmente procurando estancar o volume de sangue que jorrava do corte na nuca. Com dificuldade, encarou o olhar em chamas de Lin.

À medida que os moradores da vila se aproximavam da cena, formando um círculo em volta da área de conflito, o dia foi se transformando em noite rapidamente. O negro da noite, por sua vez, foi dando lugar a um escarlate caótico. Todos olhavam para Lin, que certamente estava quebrando a magia do lugar.

A mulher que guarnecia o portão do lugar se aproximou. Lin se assustou. Era Fran, sua colega de faculdade, apontando-lhe uma faca que beijava seu pescoço.

- Suma desse vilarejo, traidor - proferiu, transparecendo sua fúria quase descontrolada.

Os demais moradores ergueram suas ferramentas de trabalho que serviam como armas. Pás, martelos, machados, bastões e tudo o que conseguiam improvisar como defesa.

Lin, ainda portando-se com a mesma indiferença de sempre, deixou a vila, mesmo sem escutar os burburinhos de vaias. No portão não mais se anunciava "Bem vindo a Serenidade". Agora, estava escrito "Bem vindos ao Caos".

Continuou caminhando, até adentrar a próxima vila.

"Bem vindos a Indiferença", dizia o segundo letreiro. Observou o novo ambiente com curiosidade, ainda sentindo o efeito das confusões que incrivelmente remediavam o mal-estar adquirido nas montanhas. Sabia, sem tanta certeza, contudo, que uma hora despertaria em sua cama sentido o cheiro abafado e característicos dos cômodos escuros do seu quarto. O pesadelo tinha de acabar uma hora.

"O Pesadelo Tinha de Acabar", repetia para si mesmo.

Já esperava o que encontraria na vila seguinte, levando em conta o que o próprio nome delatava: trabalhadores rurais andando para lá e para cá, como robôs programados para viver dentro de suas próprias mentes esquizofrênicas e egoístas. E foi isso que viu, ao atravessar os portões de "boas-vindas" (embora não houvesse nenhuma forma de recepção calorosa). Uma rajada de vento carregando neve atingiu seu corpo de supetão. Percebeu então o sentido das coisas. Ausência, vazio, frio, por dentro e fora da alma...a indiferença se manifestando no novo mundo paralelo. Seus dedos estalavam, e seus pés afundavam na neve grossa.

Atravessou a vila lentamente, os ossos se queixando da baixa temperatura, mas ainda assim aceitando as ordens cerebrais. As vilas, todas, eram idênticas entre si... mudando apenas o clima e o comportamento das pessoas, que por sinal também eram praticamente as mesmas.

- Isso é loucura! - tartamudeou Lin

De fato, era.

A mesma menina que outrora lhe entregara uma flor, agora estava agachada num ressalto da neve, modelando um boneco de neve. Os olhos, que pareciam cristais, estavam fixos na pequena escultura que produzia; o movimento das mãos, tão mortiços quanto o próprio olhar. Era como estar criando uma compensação para uma vida tão sem graça. A frieza e indiferença estavam estampadas na imagem de todos os moradores do local. Exceto uma pessoa...

...que o observava num banco próximo, sentado ao lado da amante. Lin se assustou com o rapaz, muito parecido com Carlos, o padre pateta que o mandara direto para aquele mundo. Carregava, porém, um semblante tão psicopata e anti-social quanto o seu. Lin estava prestes a ignorar o olhar irritante do moço, mas foi surpreendido por sua voz:

- Eu também estou perdido como você - disse, pautadamente - ou melhor, nós estamos.

Sua amante o abraçou, pousando a cabeça em seu ombro, e assentindo. Lin girou o pescoço, observando-os com curiosidade.

- Fui mandado de onde estava para esse lugar maluco, e minha namorada deu o azar de estar me acompanhando exatamente naquele dia - afirmou, com sarcasmo na voz, enquanto sua namorada o fungava no pescoço - merda de infortúnio - acrescentou, caindo na risada.

- Como eu saio daqui? - perguntou impulsivo Lin

O jovem homem de cachos bagunçados e cavanhaque o encarou no fundo dos olhos.

- Do mesmo jeito que você entrou - disse com convicção, e fez menção de recostar no banco, mas ao observar o semblante do rapaz perdido, se inclinou novamente para frente e sibilou - você deve fechar o ciclo. Existem duas maneiras de fechá-lo, você terá de escolher.

- Quais? Como?

- Depende, cada um tem a sua provação - respondeu, sério.

Lin apertou os olhos, tentando ignorar o frio.

- Amor, vamos entrar? - perguntou a amante do jovem sentado.

- Claro, minha deusa...

- Por que você não faz nada? - interrompeu Lin, os dentes chacoalhando na boca.

- Ainda não decifrei a minha provação, caro colega...

E se foram, os dois.

- Como chegou aqui? - gritou Lin, mas engasgou logo em seguida

- Fiz muita merda, pode acreditar - gritou de volta o rapaz.

Lin seguiu numa direção qualquer, sem objetivo, só para amenizar o frio que a neve causava. Precisava raciocinar melhor. A cidade respirava calmamente, dispersando sua misantropia cândida e apática para todos os cantos, sem poupar nada nem ninguém. Um senhor de terceira idade abria os portões de uma capela, benzendo-se fervorosamente ao primeiro contato com a atmosfera exterior. Lin galgou alguns aglomerados de neve, dirigindo-se aos portões da igreja, enquanto as pessoas passavam por ele inanimada e decididamente, sem observá-lo, e sem observar mais ninguém.

Tocou-lhe os ombros:

- Senhor, gostaria de... - as mãos do velho afastaram as suas, e o mesmo deu continuidade às suas ações comuns do dia-a-dia.

- Escute, velhote, mais respeito! - tentou novamente, mesmo com a repressão que o frio lhe causava. O padre passou a fechadura nos portões e atravessou Lin, sem reações.

Lin andou até o velho, puxou-o pela gola das vestes, e o jogou com força contra a parede da capela. No exato momento em que os olhos do clérigo cruzaram com os seus, Lin notou a ventania perder força. Deu alguns passos, tirou um canivete do bolso e o ergueu de modo que aquele par de olhos anciães e experientes de vida se intimidassem de receio.

- Eu quero ir embora desse mundo - sibilou Lin - E alguém aqui desse lugar imprestável me dirá. Tenho muitas coisas para fazer, sabia, velhote ? Tenho traumas, tenho rancores, tenho contas para acertar com o cara lá de cima e o maldito lá de baixo!

O senhor gemeu e fitou receoso alguma coisa acima deles. Lin ergueu o queixo. A ventania, depois de terminada, deu lugar ao fenômeno que já tinha presenciado muito bem. O lugar cedia ao caos. A coloração do céu e das nuvens se enrubescia. A neve começava a refletir o escarlate. As pessoas interrompiam seus hábitos monótonos para procurar o causador de todo aquele infortúnio. As mãos de Lin ainda amarrotavam a gola das vestes eclesiásticas. Caiu em si:

- Ah! - gritou - me desculpe, me desculpe! - e soltou o velho padre num susto. A cor do céu foi voltando à normalidade, trazendo consigo as constantes ventanias gélidas e a monotonia dos afazeres comuns do povoado.

Será que sua provação nunca poderia ser encontrada naquele lugar? Mas claro que não! Num lugar tão anti-social como aquele alguém chega para pedir assistência?

Notou que era praticamente impossível procurar ajuda num lugar onde todos são escravos do próprio pensamento, extraviados dentro de si mesmos, onde não se encontrava motivação para ornar nem colorir a própria vida, quanto mais para dar atenção a visitantes perdidos. Caminhou de volta à entrada. De dentro do seu corpo brotavam sensações de impaciência que culminavam em pequenas doses de ódio em cada uma de suas artérias. Seus passos se enrijeciam, enquanto suas pernas o conduziam lentamente ao planalto pelo qual aterrissara no mundo paralelo.

Mas aquele reino se mostrava especial. Diferente de tudo que Lin e todos nós conhecemos como realidade. Os sentimentos das pessoas eram como poros no ar que juntos, numa sinfonia harmônica, se misturavam e compartilhavam o calor do mesmo estado de espírito. Quando alguém aparece no lugar com uma energia diferente, gerando uma química desestabilizadora, os poros permitem a transição do novo sentimento, e como ocorreu no vilarejo anterior, acontecia com "Indiferença"; o rosto da menininha modelando o boneco girava lentamente em direção ao viajante, que ia embora, como se algo nele provocasse um cutucar em sua pele de criança. Aos poucos, todos iam sentindo o mesmo. Muito atrás de Lin, sem que ele percebesse, o velho padre resmungava para si a despeito da recém agressão sofrida. E mais uma vez o efeito dominó foi transformando a vila, agora há 30 metros de Lin, em uma nova onda de caos e fobia.

Lin galgou exaustivamente as últimas elevações de pedra e foi até o trevo de placas, apoiando-se nos joelhos de tanto cansaço. A neblina era intensa, prejudicando a ação do sol que restava naquele fim de tarde; o pouco que conseguia enxergar pelas brechas do ar eram três dos quatro horizontes correspondentes à cada vilarejo. Três deles sob o clima caótico. Restava apenas um, e afinal, não tinha escolha: ou ia na direção da placa que indicava a "Fim", ou retornava a um dos três vilarejos amaldiçoados e se entregava por ter desarmonizado cada um dos sentimentos-mães. E como conseguiria sua liberdade? Como descobriria sua provação? Não estaria em um dos lugares amaldiçoados? Era suicídio! Se voltasse, seria pego. Não acataria a nobreza de re-harmonizar os vilarejos. Não, não acataria...

Correu até a última vila: "Fim".

A tarde se aglomerou com a noite, e nesta, permaneceu. Livrou-se do frio, que foi embora junto com a neblina. Seus olhos notaram a mesma vila, intacta... e totalmente vazia. Os objetos deixados, ferramentas presas no solo, portões mal trancados, davam um ar ainda mais melancólico do que em "Indiferença". Não havia ninguém, nada. Lin viu ruínas nos lugares das casas, outrora bem cuidadas; a Igreja era apenas um entulhos de blocos de cimento, e as casas, restos de madeiras. Revirou caixotes, sem encontrar objetos. Os solos não fertilizavam. De novo, naquele lugar, só um grande espaço destinado a sepulturas... um vasto cemitério, com todos os antigos moradores! Lin, assustado, notou que alguém atrás da árvore o observava. Uma mulher. Lin pôde divisar seus cabelos negros esvoaçando ao sabor do vento noturno. Caminhou até ela, e logo percebeu quem era: a mulher que havia tirado de dentro do cubículo - lugar onde também vira Mariana deitada na maca. Sim, lembrava-se... havia resgatado-a, saiu do cubículo, alcançou a próxima porta e então... o negrume, o novo reino!

Tudo parecia um imenso quebra-cabeças sem sentido; e a próxima cena apenas confirmou a ideia: a mulher, saiu em disparada para o cemitério. Lin apertou o passo. Adentraram o vasto cemitério, mal-iluminado, ficando impossível delinear seus limites; as colunas de lápides pareciam não ter fim naquele mar de gramado. Chegaram à parte mais espaçosa, onde restavam apenas algumas lápides isoladas. A mulher se colocou na frente de uma das lápides, ficando entre a mesma e um buraco recém cavado - uma massa enegrecida de infinidade e solidão dentro dele. Permaneceu estática, encarando Lin nos olhos.

- Espere! O que está acontecendo? - perguntou Lin, nervoso, parando à 5 metros do buraco retangular. Lin, sem perceber, se aproximou ainda mais.

Ela ergueu a mão, fazendo-o parar. As folhas das árvores, ao longe, se queixavam com mais consistência. Ouviram-se sons de asas farfalhando sendo trazidas pelo vento.

De repente, uma tempestade de ventos e folhas. Não o bastante para tirá-los de suas posições, mas sim para surpreendê-los. Um barulho de piano vindo da direção da capela em ruínas... as notas bastante graves. Lin girou o pescoço para os lados e para trás. Três pessoas se aproximavam da dupla de jovens; uma em cada direção. Todas carregavam nas costas grandes asas, plumadas, e deslumbrantes. Anjos? O mais imponente, que vinha por trás de Lin, andava cabisbaixo, carregando um crucifixo prateado. Estava encapuzado. Lin continuava a observar atentamente. Ajoelhou-se de cansaço.

O primeiro anjo chegou da direita, e Lin o reconheceu na hora. Carlos! O jovem excêntrico vestido de padre que viu na faculdade, responsável por ter sido trancafiado no novo mundo! Aquele que o mandou para o cubículo das duas mulheres presas, e por consequência, aos quatro vilarejos.

O segundo, vindo da esquerda, alto e de cabelos muito curtos, observava os irmãos serenamente.

E o terceiro...

- Você passou exatamente a vida inteira pecando, usando pessoas que queriam o seu bem para lucros pessoais, seguindo exatamente o índex de atitudes que elas não esperavam de você - começou Carlos, mais sério do que quando Lin o vira pela última vez - na verdade esse quadro se acentuou depois que você... bem, isso não importa. Os poderes angelicais resolveram te dar uma chance, uma nova chance para provar que você tinha algum vestígio de benevolência dentro de si. Uma possível salvação para a sua vida.

Silêncio. Lin respirava. Então o anjo Carlos continuou:

- Você foi mandado a um cômodo onde encontravam-se duas mulheres: uma pedindo por socorro, e a outra num estado de paz e quietude. Você fez a coisa certa, abriu a porta da mulher em desespero e a resgatou, certo?

A voz do anjo ressoava calma e esplendidamente, abafando parte do desespero de Lin.

- Sim...

- Errado - sentenciou Carlos - uma mulher gritando a plenos pulmões todos sabemos que está gozando de plena saúde, mesmo que sentindo uma imensa dor. A mulher ao lado, que acredito ter sido uma conhecida sua, estava com dificuldades respiratórias, imóvel, e precisando urgentemente de resgate. Você fez a escolha errada, Lin. Nem ao menos o fino laço de convivência entre vocês dois foi capaz de ajudá-lo a fazer a coisa certa.

A expressão de Lin ia mudando aos poucos. Seu queixo tremia.

- E então, na escolha equivocada que fez, você foi mandado para uma nova tentativa de remissão. Ficou diante de quatro vilarejos, cada um com sua virtude, boa ou ruim. Todas, no entanto, continham uma tentação pecadora para você, nascida dentro do seu próprio coração. No reino de bondade, você trouxe a maldade. No reino da indiferença, você também trouxe a maldade. Os dois que sobraram, eram os vilarejos pré-determinados a uma inclinação negativa: "Caos" e "Fim"

Carlos pronunciava cada palavra com calma controlada, apesar da expressão mostrar imensa desaprovação para Lin.

- Sua missão era controlar os impulsos pecadores da vida real, e principalmente manter sua energia negativa longe das pessoas dos vilarejos. Sinto dizer... você não passou nas provações.

O anjo andou até a mulher que tapava a leitura da lápide.

- Essa foi a mulher que você salvou - disse, enquanto ela mantinha os olhos vidrados e inexpressivos em Lin - Essa mulher, Lin... se chama Morte. Você escolheu a Morte...

Lin abriu a boca, sem conseguir respirar. Então viu a mulher abrindo espaço para as escrituras na lápide serem lidas. Estava escrito "Lin Amberfield - 1985 - 2010". Arregalou os olhos em desespero. Baixou os olhos para o buraco cavado, esperando-o para ser trancafiado para sempre.

- Sinto muito - sibilou o anjo - posso imaginar como você está se sentindo nesse momento. Que deveria ter feito o bem enquanto podia. É esse o tipo de reação que a maioria das pessoas tem quando não passam em algum tipo de provação...

- Estou...cansado...de pecar.... - regurgitou Lin, em meio a lágrimas pesadas.

Os três anjos o olharam com curiosidade. A reação do acusado não fazia sentido para eles.

- Passei anos da minha vida fingindo ser o que não sou - continuou Lin, soluçando com dificuldade - Não sei se vocês sabem... eu perdi o meu irmão quando era muito novo, e ele foi a única pessoa do universo que me entendia, que me dava apoio até nas horas que eu não precisava. Meu irmão foi assassinado! Meu irmão foi tirado à força de mim! Justo a pessoa que eu mais amava nesse mundo! Passei anos da minha vida jurando vingança contra o assassino desgraçado... até que uma hora da minha vida me dei conta que ele nunca mais ia reaparecer; então o único lugar que eu certamente o encontraria, seria no inferno. Para chegar até o inferno, eu precisava encarnar todos os pecados que conseguisse. Me tornar uma pessoa má. Isso custou muito de mim, ser quem não sou, mas minha vida já estava arruinada! Forçar pensamentos, atitudes, esconder a vontade de liberar lágrimas, de dar amor às pessoas que precisavam. Não havia outra certeza. Eu não fazia ideia de que estava sob uma provação, recentemente. Mas sabia que deveria tomar as atitudes erradas até ser julgado como culpado por vocês, anjos. Meu sacrifício termina por aqui...

Todos os três anjos abandonaram a serenidade. Entreolhavam-se como meros humanos incrédulos.

Lin, por fim, gritou. Chorou, copiosamente, e impetuosamente. Um oceano de tristeza que continha, em cada lágrima, todo o arrependimento por cada pecado que cometeu em toda a sua vida. O universo inteiro, incluindo o plano da realidade, estava ressoando aquele grito de remissão.

Atrás dele, o terceiro anjo despia o capuz...

Lin virou as costas, e sentiu um arrepio na espinha. Uma sensação de que todo o passado esquecido tivesse voltado para ele como tiro de canhão certeiro. Jerry... seu falecido irmão! Pela primeira vez em anos, quem sabe uma década, seu coração carregou um impulso de emoção fraterna aos olhos. Os mesmos traços da infância... a mesma voz... voz? Resgatou algo que seu subconsciente havia plantado há algumas horas atrás, quando acabava de acordar no planalto. A voz do homem encapuzado sentado na pedra... era ele! Era Jerry! Seu irmão, assassinado pelo ex-namorado de suas mães! O fato que tentara esquecer durante toda a infância e juventude, embora nunca tenha conseguido.

- Meu irmão.... é um anjo?

Jerry meneou positivamente a cabeça. Também chorava. Tentou se aproximar de Lin, mas o irmão ergueu a mão:

- Não... eu escolhi a morte. Vou aguardar sob o condado de Lúcifer o seu assassino. Eu amo você, meu irmão, nunca esqueça...

A Morte caminhou até Lin, abraçando-o por trás, agora na forma de uma sombra em contornos femininos. Ela girou o pescoço de Lin até o seu e deu-lhe um beijo na boca. A pele de Lin foi se tornando cadavérica, e os três anjos hesitaram em intervir, mais incrédulos do que nunca.

Lin deixou o corpo cair dentro da sepultura.

Pelos corredores da universidade, seu corpo nunca mais foi encontrado.

Gibran Lahud
Enviado por Gibran Lahud em 06/01/2009
Reeditado em 15/03/2015
Código do texto: T1369647
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