-Meio copo de café -

 
Cinco em ponto, o carrilhão inunda a casa, som agudo e odioso. Empurro a cadeira de rodas de papai.  Após o derrame, ele usa um babador ridículo e precisa de ajuda para tudo. Por isso ela permitiu que eu voltasse, para cuidar da parte pesada e suja.

Mesa posta, ela sorri enquanto ajeita bolos e pães. O bule de porcelana inglesa, herança de família. Meu pai deixa-se servir. Antes, fatiava o queijo com precisão cirúrgica. Hoje baba e resmunga  palavras desconexas. Torradas e biscoitinhos amanteigados perfumam o ar.
Finalmente,  na cadeira de espaldar alto, ela sorria orgulhosa. É permitido, então, deliciar-se: “... use o guardanapo de pano, não respingue nada na toalha, o creme de leite escorre no pires, fiz esta receita com nozes e castanhas”.

O ritual sempre existiu desde os tempos da minha avó: a velha  inglesa, fundadora da primeira ''casa de raparigas'' da cidade.  Dizem que fez história. E a maldita tinha este hábito de chá. Puta aristocrática.
Sim, somos descendentes de europeus.  E moramos em Manaus, cidade quente  como a estufa do inferno. Rio Negro, vertente  de fantásticas lendas e todo tipo de gente. Tomamos chá diariamente, mesmo que lá fora o termômetro marque 40 graus. Forte e aromático.
A decadência  nos cômodos mofados, paredes  descascadas, jardim de ervas daninhas. Um ódio crescente qual tumor pestilento, sufoca e irrita. Olho  a toalha de linho branco e pequenas porções de torta de limão. A faquinha de pão ali, tão pertinho, ao alcance das mãos... ávidas.

''O primeiro golpe  penetra  a carne, talho certeiro na jugular. Mãe tenta  impedir o fluxo com as mãos, olhos esbugalhados, dedo em riste  apontando. Não penso.  Uso a faca sem corte e empregando o dobro de força, espeto  o peito do pai.  Diversas vezes. Coitado! Preso à cadeira de rodas, recebe os golpes em surpreendente apatia. A boca torta, tentando murmurar alguma coisa. Incompreensível.'' 
 
                                    
- Quer um pedaço de bolo inglês?

- Não. Não gosto. Nunca gostei, não lembra?

- Você está cada dia mais agressivo. São as drogas! Era um menino tão bom! 

-  Merda! Tem que ficar repetindo.

-  Agora não! Esta hora é sagrada. Tome seu chá, vai esfriar...

- Eu odeio chá.  Detesto estas xícaras branquinhas. Vou embora, não agüento mais...

- Não nos deixe. Como vou cuidar de seu pai? Não quero estranhos em minha casa.   

- Eu sou um estranho. Não percebe?

Levantei com toda a raiva acumulada. Peguei  um copo de vidro e duas colheres bem cheias de açúcar. A garrafa térmica, escondida no armário, ainda pela metade. Derramei o líquido num misto de desafio e satisfação. Bebi o café, saboreando cada gole, delícia de cafeína...No instante seguinte, os dois corpos estavam caídos,  manchando a toalha imaculada. Perdi as contas das inúmeras vezes que a lâmina afiada penetrou a carne murcha.

Peguei a mochila e saí daquela casa odiosa. Na pia, esquecido, meio copo de café. Frio.

 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 03/01/2009
Reeditado em 06/01/2009
Código do texto: T1364580
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