O Convite da Assombração
E a loucura da Treva, e a loucura do Sonho...
Sinto-as todas em mim, num delírio medonho...
Silveira Neto
Meia-noite. Ou quase isso. E eu, deitado em uma simples mas confortável cama naquele rústico e antigo casebre no meio da mata, lia um dos mais insuportáveis livros dos últimos tempos, para mim. Tal livro discorria sobre qual seria o futuro da literatura, tentava prever qual o estilo literário, ou forma de se escrever que mais faria sucesso ou que prevaleceria, que seria mais adequado à civilização pós-pós-moderna. Pretendia ditar o que seria certo e errado em termos literários, estabelecer supostos princípios de uma literatura útil ou inútil, determinar regras de se escrever bem, com profundidade, originalidade, com relevância social, utilizando-se de certa dose de humor, de acordo com os padrões contemporâneos de se escrever para “melhorar a sociedade”. Afirmava que a literatura deveria “preocupar-se com o futuro da civilização”, e, para ser “séria” e aceita pelas exigências da crítica, estar decididamente engajada com as questões sociais e abrir mão das “baboseiras fantasiosas da literatura fantástica e suas alienadas categorias”.
Após ler torturado cerca de 30 páginas daquele presunçoso tratado de como se criar lixos literários, cartilha da mediocridade, decidi não mais desperdiçar meu tempo e levantei-me para deixar aquele atentado à alma da arte ao lado do fogão à lenha. No dia seguinte, o livro teria alguma utilidade: seria queimado para esquentar o leite. Então, voltei a deitar-me e ria-me daquelas imbecis observações do imbecil autor: “melhorar a sociedade”, “preocupar-se com o futuro da civilização”... Desde quando, pensei, a sociedade pode ser melhorada? E a que “futuro da civilização” o autor se refere? Que espécie de “futuro” espera-se que sobrevenha com este homem agônico e miserável que rasteja pela Terra?
Aos poucos, fui esquecendo o infame livro, e um sono estranho principiou a descer sobre meus olhos... Digo estranho, porque era um sono que não era sono, porque eu parecia dormir, mas permanecia acordado, porque eu parecia acordado, mas dormia... Posso dizer que era um estado letárgico bastante incomum... E foi nessa letargia que iniciei a ouvir uma espécie de gemido que soava distante... O lúgubre som foi lentamente se aproximando, aproximando-se, até que senti que estava praticamente ao lado de minha janela de madeira desprovida de vidro. Então, aquilo que emitia o constante gemido abriu a postigo, não sei exatamente como, mas o fez. Pude, assim, vislumbrar um enorme rosto macilento, de olhos perfeita e funestamente redondos, escuros e assustadores, com profundas olheiras, sendo o nariz ausente, possuindo uma boca envelhecida e cadavérica sem lábios. Daquele aspecto tétrico e fantasmal, destacava-se um par de imensas orelhas pontiagudas. Sua pele aparentava ser tão-somente uma repugnante membrana que permitia transparecer algo como uma rede de artérias de sangue arroxeado. A assombração interrompeu os gemidos para proferir as seguintes palavras em um tom pavoroso: “Vem, vem, entra no mato, entra no mato”. Imediatamente, levantei-me, sempre no estado letárgico, semi-acordado, semi-adormecido, e segui o espírito. Quando digo “segui”, não sei realmente esclarecer se seguia caminhando ou flutuando; acredito que era mais provável que flutuasse, pois passei facilmente pela janela. Já fora do casebre, observei que a assombração já ia longe, prosseguindo com seus fúnebres gemidos. Cada gemido ou grunhido proferido por aquela coisa gelava-me até as intimas entranhas. A criatura não possuía corpo, apresentando uma enorme cabeça com algo como uma coluna vertebral projetando-se longa e vaporosa, que se movimentava como uma cauda medonha. É claro que o ente flutuava, como uma luminosa aparição fosforescente por entre as árvores. Tentei segui-lo, mas rapidamente ele desapareceu na densidade fantasmagórica da floresta. Então, naquela sedutora noite de outono, de temperatura amena, permaneci vagando semiconsciente, desperto e sonhando entre o universo espectral daquela vegetação tétrica e exuberante.
No meu estado anormal de consciência, já não sabia o que deveria fazer, mas captava tudo ao meu redor de uma forma especialmente insólita, exacerbadas pelo meus sentidos alterados, e sentia minhas emoções profundamente exaltadas, e qualquer som ou imagem que percebesse era suficiente para me arrebatar em terríveis e sublimes sentimentos extemporâneos. Não ouvia mais as lamentações daquela macabra assombração, porém agora uma música tortuosa invadia meus ouvidos... Eram notas cantadas por um coro misto de vozes masculinas e femininas entrecortando-se sobrenaturalmente, em uma estranha canção inflamada e pungente, de indescritível tristeza e paixão. Desconhecia o idioma em que cantavam, era algo diferente de tudo o que já ouvira. Nas minhas percepções, a música provinha de todos os lados, não de um ponto definível, e trazia consigo miríades de cores, variando principalmente entre o violeta, o verde-escuro, o azul e o vermelho. Sim, eu ouvia e via(!) as ondas musicais sobre-humanas, que se acercavam, e flutuavam, e dançavam ao meu redor magnificamente. E ainda sentia o cheiro(!) da música por entre as árvores, cada nota possuindo um perfume característico, todos deliciosos e excitantes das emoções.
Instantes depois, a canção triste tornou-se terrivelmente furiosa, mas igualmente apaixonada, claro que agora com uma outra forma de paixão, a de um furacão sonoro sublimemente devastador. Minhas emoções e sensações ascenderam a um nível quase insuportável, e senti-me à beira da loucura. Foi então que principiei a avistar um intenso brilho anormal ao longe dentro da mata. Caminhei ou flutuei naquele sono-desperto em direção às insólitas cintilações e descobri um singelo e estreitíssimo caminho através do bosque, que nunca houvera percorrido ou percebido antes, embora já explorasse a mata exaustivamente em minhas andanças diurnas. Toda a trilha era cercada por gigantescas árvores assombrosas e ameaçadoras, arbustos tortuosos, cobertos por cipós e trepadeiras, e uma luz rarefeita e languorosa, não sei vinda de onde, tenuemente luminosa, permitia-me enxergar o sinuoso caminho à minha frente. Mais adiante, divisava aquelas cintilações fantasmagóricas que me atraiam de uma forma magnética, enquanto prosseguia a música furiosa e apaixonada, irradiando as cores miríficas e os aromas deleitosos.
Extasiado por tamanhas maravilhas estarrecedoras, parti, caminhando ou flutuando, rumo às fulgurações deslumbrantes. Conforme me aproximava, o brilho tornava-se pavorosamente intenso, ao mesmo tempo belo e assustador, impregnado de vida e morte, de amor e febre, de grandeza e ameaça. As árvores que me rodeavam sussurravam graves e delicadas orações, enquanto o sereno da madrugada parecia valsar em vapores e névoas fantasmais. No meu estado de semi-sono, todas as impressões eram extremamente profundas e marcantes. Eu sentia a alma da natureza de uma maneira absolutamente inusitada, que não consigo descrever com adequadas palavras.
Percorri mais algumas centenas de metros em direção ao brilho incomum, quando então vislumbrei um cenário tão fantástico, esplêndido, bizarro, como só havia visto nas pinturas de Bosch. Cantando e dançando aquela música inefável, vi centenas de almas dos mais variados aspectos e colorações; brancas, amarelas, verdes, azuis, lilases, cinzentas, algumas dançando sobre a grama e os arbustos, outras sentadas em elevados galhos das árvores, outras valsando em pares pelos ares carregados e fulgurantes. Uma infinidade de seres conhecidos e desconhecidos também dançava sob a fúria e paixão daquele som inconcebível... Eram corujas e corvos cintilantes, gatos selvagens e graxains fora dos padrões , envoltos por uma aura colorida... Silfos e sílfides, ondinas e nereidas, gnomos e salamandras davam-se as mãos por sobre um pequeno lago fosforescente com águas reverberantes... Os mais absurdos seres das mitologias pairavam e cantavam pelas atmosferas oníricas, como sacis ameaçadores, chispeantes mulas-sem-cabeça, gigantescos touros que se lançavam no lago e desapareciam como espíritos imateriais, curupiras provocadores, tristonhos e agourentos caiporas, mães-d’água aladas, centauros, morcegos com faces humanas e outras coisas fantásticas que não sei nomear... Arco-íris surgiam e desapareciam, saiam do nada e para o nada voltavam. Apoteose inverossímil da não-humana dança!
Acerquei-me perturbado e extasiado daqueles seres de sonho, e, em seguida, de um canto penumbroso, surgiu aquela assombração que me convidara na janela de meu quarto a entrar na floresta... Aproximou-se e proferiu lugubremente: “a humanidade não tem futuro, e logo não haverá mais motivos para se fazer literatura. Vem, abandona a civilização e junta-te a nós. Junta-te a nós! Antes, apenas, escreve um relato, como se fosse um conto, sobre tudo o que contigo ocorreu e do que viste esta noite, que eu me encarregarei de deixá-lo sobre tua cama, onde será encontrado quando teus amigos e familiares forem te procurar...” A assombração se escondeu outra vez, e eu... bem, eu aceitei o convite.
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