200.6 - Urgh – Um Grito de Fúria sobre São Paulo.
O vampiro desceu aquele trecho da Rua Augusta em uma velocidade assombrosa.
Com seu único olho inteiro mirava o Monge que os atacara.
Este se detinha calmo, quase displicente, como se estivesse de passagem.
A mão esquerda do ser noturno fumegava em contato com a espada sagrada, que pouco a pouco corroia sua carne vampírica.
O rosto de Saturno era uma massa disforme e sangrenta.
Ia apontar o indicador para o Monge e só então notou que sua mão direita fora decepada pouco antes.
- Merda! – reclamou com a voz embargada pelo sangue em sua garganta.
Observou que Ângela continuava caída, inerte, com os olhos vidrados. Morta.
Uma estaca atravessava seu peito e de seus lábios entreabertos coagulava um filete de sangue.
O índio saltou, e em seus pensamentos pôs-se a lembrar:
Como aquela noite de outubro de 2006 que poderia ter sido agradável, descambou para aquele inferno?
No começo da tarde seus olhos abriram-se da escuridão absoluta de seu sono para uma nesga de claridade vespertina que sumia pouco a pouco.
- Ângela? – sussurrou.
Sua única resposta foi o silêncio.
Levantou-se sem fazer ruído algum e logo a encontrou.
O objeto de seu Amor sentada no escuro, observando a rua abaixo.
Morava em um prédio invadido, na Rua Aurora número 579 no centro velho de São Paulo.
Sentou-se ao lado da jovem. Ficaram calados por um longo tempo.
Uma lágrima furtiva escorreu aos olhos dela.
O vampiro índio achou aquilo estarrecedor, pois nunca havia visto um de sua raça chorar antes.
Diziam ser impossível.
- Angel... – murmurou ele.
A vampira afastou sua mão solícita.
- Saturno. Não... – ela enxugou a lágrima – Quero ficar sozinha.
Um instante depois ele estava fora do prédio.
Saltara de o décimo quarto andar, pousando como uma pluma sobre o asfalto nos fundos do prédio.
No quarto a garota encolheu o corpo em posição fetal, chorando agora abertamente.
O índio não entendia o que estava acontecendo. Fazia agora dez anos que ela fora transformada em uma criatura da noite e às vezes ela tinha crises como se ainda fosse humana.
Vampiros não tinham sentimentos.
Pelo menos não a enorme gama de nuances emocionais que os humanos experimentavam...
Só sobravam os extremos: amavam demais ou odiavam por completo.
Saturno estava incomodado por algo que não sabia como definir.
Era culpa.
Culpa por ter transformado Ângela sem a completa aceitação desta.
Precisava extravasar!
Andou pelas sombras da boca do lixo, até dar com uma cena comum: Um cliente espancava uma prostituta.
- Aí sua piranha! Não vô pagá não! Cê não feiz direito! – gritava ele entre os murros que dava.
Apesar de unidas, as outras garotas de programa se afastaram, pois viram o coldre aparecendo para fora da calça e nenhuma queria levar um tiro de graça.
A outra que se ferrasse.
- Tsc, Tsc... – reprovou Saturno acendendo um cigarro bem ao lado do casal.
O homem deu um pulo.
Nenhum dos dois havia visto o rapaz chegar.
A prostituta sorriu, já tinha ouvido falar no jovem vingador branco como marfim.
Ao ver os dentes da meretriz manchados de sangue fresco, o índio teve que se controlar, pois teve vontade de atacá-la e sugar sua vida quente.
- Coisa feia... Meteu e agora não quer pagar... – sussurrou.
O homem ficou irado.
- Cê tá loco seu nóia? Qué morrê é? – gritou ferozmente sacando o revolver e apontando para o rosto do vampiro.
Tudo aconteceu muito rápido.
Saturno agarrou o marginal e com três velozes saltos escalou as paredes do hotel barato, saindo do campo de visão das mulheres.
Do alto daquele antro de drogados ecoou um longo grito de morte e logo em seguida algo foi atirado de lá.
Algumas prostitutas correram gritando de pavor, mas a que fora espancada pelo homem se aproximou.
A pequena peça de carne caída no chão era a parte de cima de uma mandíbula, quente ainda, com dois dentes de ouro.
Ela vomitou e depois controlando o asco imenso enfiou o pedaço de seu atacante na bolsa.
Afinal aqueles dentes deviam valer uns $ 100!
Enquanto isso o vampiro, mais calmo, olhava as estrelas quando notou um movimento atrás de si.
- Ângela. Você... - começou a dizer ele sendo interrompido em seguida.
- Estou melhor agora. Vamos dar um fim nesse traste? –perguntou ela sorridente
Cortaram as pontas dos dedos e arrancaram o resto dos dentes para dificultar a identificação do cadáver.
Mais tarde Ângela esfaqueou um traficante e se alimentou enquanto este agonizava.
Andavam nas sombras da Avenida Paulista aproveitando o restante da noite.
Depois de se beijarem longamente no vão do MASP seguiram na direção da Rua Augusta onde estavam sendo esperado por amigos humanos em um barzinho de rock.
Toparam com um grupo de Pit-boys que logo perderam o sorriso irônico e alguns dentes, após serem socados por Saturno.
Correram daquele magrelo que brigava como o diabo.
Retomaram o caminho do barzinho quando o pesadelo começou.
Cruzaram com um grupo de monges capuchinhos.
Ângela riu, mas o índio ficou sério. Algo não estava certo.
Os seis monges se dividiram em duas colunas, passando ao lado dos vampiros.
O passo deles sugeria algo marcial e isso inquietava o índio.
Um leve movimento de túnicas e o imortal teve uma súbita intuição.
- Abaixa!
Praticamente se jogou com a garota no chão, bem a tempo de desviar de seis espadas desembainhadas contra seus pescoços.
Dois deles se feriram gravemente, pois não esperavam a reação dos imortais.
Saturno chutou um deles no estômago com tanta força que o atirou quatro metros ao longe. Morto.
Puxou Ângela e os dois começaram a fugir.
- Merda! São caçadores! – Gritou o rapaz.
Ouviu algo como um tiro.
Ao olhar para trás, viu um projétil vindo em alta velocidade na direção de sua amada.
Entrou na frente da garota bem a tempo de evitar que uma bolha de vidro estourasse nela.
O líquido impregnou a roupa do índio e logo que entrou em contato com a pele pôs-se a ferver.
- Água Benta! Akk! Ângela. Foge! – gritou.
- Não!
Vendo seu Amor ferido sacou uma machadinha, resoluta.
Avançou sobre os três monges com ferocidade ímpar.
Dois escaparam de seu ataque.
Ela arrancou um terço do crânio de um deles que desabou no chão, tremendo em choque.
Aproveitando-se do vácuo deixado após o golpe da vampira, um dos dois sobreviventes retirou uma estaca de carvalho de dentro das vestes.
Atravessou o corpo da moça pelas costas.
Ângela gritou e engasgou com o próprio sangue.
Caiu no solo com os olhos abertos.
- Não! – berrou Saturno.
Tudo aconteceu rápido demais para que ele pudesse ter intervindo.
Correu na direção deles com o punhal na mão.
Os dois desembainharam suas espadas e o vampiro saltou como um parafuso passando entre eles.
Chutou um na boca e sua arma atravessou a garganta do outro.
Agora restava apenas um.
Encararam-se com ódio extremo.
O imortal observou a espada de seu inimigo.
- Essa espada! Ah não! – sussurrou ele.
Era a espada sagrada em cujo cabo estava incrustado um osso que diziam ser do próprio Cristo.
Uma arma fatal para qualquer ser da escuridão.
O monge se movia com uma velocidade impressionante para um humano, atacava e defendia-se com primor.
Saturno pulou sobre um fio de alta tensão e para sua surpresa o Monge o acompanhou.
Arreganhou os dentes e os dois continuaram a lutar sobre os fios.
-“Que humano é esse?” - Pensou o noturno.
Nunca havia enfrentado um caçador assim.
Um golpe do Monge arrancou o punhal do vampiro levando sua mão junto.
Ele não notou isso no calor do momento.
Agarrou o cabo da espada de seu adversário tomando-a e acertou uma forte joelhada na boca de seu inimigo.
O caçador caiu do alto do poste gemendo alto ao encontrar o chão.
O imortal saltou do fio pronto para cortar o religioso ao meio.
O Monge atirou no ar algo parecido com uma bolinha prateada.
A espada atingiu o objeto esférico partindo-o em dois.
Uma explosão de luz iluminou o quarteirão por um instante.
Saturno foi atirado longe.
Partes de sua carne foram desintegradas em profusão enorme tudo que ele havia bebido aquela noite.
O vampiro urrou de fúria.
Luz encapsulada! Quem imaginaria aquilo?
Tinha caído a quase duzentos metros, no começo da Rua Augusta e voltava agora em uma velocidade assombrosa.
O Monge não parecia absolutamente preocupado.
A criatura da escuridão saltou quatro metros no ar.
Observou Ângela por um momento que pareceu eterno.
O caçador atirou uma dúzia de daquelas bolinhas mortais para o alto, mas o índio passou reto.
Caiu rolando e jogou a espada sagrada em uma boca-de-lobo.
As bolinhas explodiram como flashes de luz ao tocarem o chão.
O Monge ficou cego momentaneamente.
Com a mão esquerda reduzida a ossos fumegantes, o vampiro agarrou a moça feito um monte de trapos e mergulhou em um bueiro aberto.
-Maldição! – gritou o Monge quebrando um voto de silêncio que fizera a dezessete anos.
Correu na direção do bueiro e quando desceu dois degraus ouviu um ruído de algo jogado em sua direção.
Ia sair, mas foi tarde demais.
A força da explosão o atirou para cima e o monge caiu alguns metros adiante com uma perna fraturada e as vestes em chamas.
Apagou o fogo e foi se apoiando na parede até um orelhão público.
Ligou para sua ordem, pedindo uma equipe para arrumar a bagunça e recolher os corpos dos companheiros mortos. Desmaiou em seguida.
Saturno já estava longe daquele lugar, com Ângela sobre as costas. Sabia que o monge tinha sobrevivido.
Sabia também que voltariam a se encontrar e nesse momento o despedaçaria com as próprias mãos.
Havia atirado a granada que demolira parte do túnel de esgoto.
Andou pro alguns quilômetros e depositou a garota suavemente sobre os detritos.
Arrancou a estaca. Nada aconteceu.
Choraria se pudesse.
Mordeu o pescoço dela, mas o sangue roubado que corria nas veias da jovem já havia a muito coagulado.
Com os dentes cortou seu próprio pulso carbonizado. Estava seco.
Ouviu passos e sentiu o cheiro de maconha.
Três rapazes andavam pela Rua Boa Vista no Mêtro São Bento, fumando e falando barbaridades quando ouviram alguém chamar:
- EI! Vocês!
Olharam as grades sob seus pés e viram um grande par de olhos vermelhos.
A grade foi puxada e dois caíram berrando no buraco.
O último conseguiu fugir para contar aos amigos sobre a criatura que pegou seus “brothers” no subterrâneo da cidade.
Pouco antes do amanhecer alguns poucos transeuntes se espantaram com as gargalhadas que vinham debaixo da terra.
Ângela havia despertado alimentada com o sangue dos dois rapazes.
Saturno, desfigurado, despedaçado e semidestruído pela batalha da noite anterior ainda teria que esperar mais uma noite pelo precioso líquido rubro que restauraria seu corpo.
Mas estava feliz.
Sua amada estava de volta e tudo era maravilhoso outra vez...
FIM... Por enquanto