----O PACTO ----



Na porta da casa, conferiu o endereço mais uma vez. Coragem para entrar era outro assunto. Duas mulheres saíram rindo, uma delas deixou o portão aberto:- Tem hora marcada? Pode entrar...
- Vocês gostaram da consulta?
- Claro, ela é ótima. 
A moça atravessou o portão, encontrou a porta aberta e sentou-se no sofá. Tudo muito humilde, nada diferente das outras casas: -  Pode entrar, estou aguardando.
O som da voz vinha do quartinho, chegou devagar, espiou pelo batente e viu a mulher  sentada.  Apenas a toalha branca e outra cadeira:- Por favor, sente-se. Como vai?
- Nada bem, estou péssima. 
- Fique tranqüila, quero apenas que segure minhas mãos. Está muito nervosa, tente se acalmar para que eu possa trabalhar.
Um altar simples, apenas uma cruz de madeira e incenso. Flores de plástico e muitas bonecas. Todas vestidas de noiva. Nos mais variados modelos, cores e tamanhos. Praticamente , todo o espaço estava tomado, eram como mil olhos de vidro observassem. Vigiando a cada movimento.
Percebeu  que a mulher  era cega, os olhos azulados como cristal, pareciam duas contas claras. A  vidente falava com tranqüilidade:-Não ligue para elas, são presentes de moças satisfeitas. Sou apaixonada por minhas noivinhas.
- Elas são assustadoras. Parecem de verdade.
-  Menina, você não esperava por essa! Seu noivo foi embora, deu um chute no seu dinheiro e nas suas grosserias.
-  É verdade, Pedro  me chamou de bruxa, disse que eu ia destruir a vida dele. Meu vestido está pronto e os convites já foram distribuídos. Não aceito esta humilhação. Faltam vinte dias para o casamento, ele não pode fazer isto comigo.
-  Então é mais o orgulho ferido que amor...
-  Não interessa, fui à igreja procurar ajuda. Ia pedir ao padre que intercedesse. Uma moça  me entregou seu cartão. Disse que você podia ajudar.  Eu pensei, não tenho mais nada a perder...
-  Muito bem...mas preciso esclarecer alguns pontos: Não há como quebrar o feitiço e seu caso não vai levar nem três dias.
-   Jura? Não desmarquei nada, minha família nem imagina que brigamos.
- A menina precisa aprender a controlar o mau gênio.
- Eu pago o dobro , se garantir que dará resultado.
- Não é questão de  dinheiro. Preste muita atenção: Você é responsável por seu destino. Tem certeza que é isto que deseja? 
- Faça o que tem que ser feito. Pode deixar, sei muito bem o que eu quero.
Maria Amélia saiu da casinha enojada. Não tinha se dado conta que a noite havia passado. O cheiro forte do incenso, a cara da cega, tudo parecia surreal e confuso. Sentiu-se uma idiota desesperada, caminhando apressada pelas ruas da periferia. Fez sinal para um táxi, queria sair daquele lugar e esquecer o que havia feito.


               
                      ---BONEQUINHA---

Naquela noite, teve pesadelos horríveis com as cenas do ritual. Os momentos voltavam como uma tortura, acordou aos gritos. A mãe e as irmãs acudiram  de imediato: - O que aconteceu? Está banhada em suor, que ferimento é este na sua mão?
- Não é nada, arranhei com a faca de pão.  Já disse que não gosto daquela faquinha velha. Podem ir dormir, estou bem, saiam daqui. ..Me deixem em paz.
Conhecendo o humor da moça, a família achou melhor obedecer e não perguntar mais nada.
No dia seguinte, Maria Amélia estava pálida e com aspecto cansado. Não houve comentários, cada qual tomou seu rumo e a moça resolveu tirar o dia de folga.
A mão estava inchada e vermelha. Precisava limpar o machucado, faria isto mais tarde, estava cansada. O talho fundo,  serviu para fortalecer a magia. Um pequeno sacrifício feito com prazer.  A dor era como um lembrete e ela queria ver o resultado.
Estava cochilando no sofá,  Pedro  entrou de mansinho. Parecia assustado, com medo da reação da noiva:- Amelinha. Está com uma carinha cansada. Sua mãe disse que está  doente.
-  Me poupe da conversa fiada. O que quer?
- Puxa  Amelinha, vim pedir desculpas. Estava com a cabeça quente, nervoso com as despesas do casamento... Você sempre escolhendo o mais caro e eu sem poder te dar nada...
- Não entendo sua preocupação, meu pai está pagando tudo.
- Não precisa me humilhar assim. Eu não quero ser seu capacho Amelinha e meu amor é sincero.
- Agora é tarde, já cancelei tudo e não tem jeito. Esqueceu que me chamou de bruxa?
-  Mas meu amor, eu estou arrependido. Você sabe que eu sempre gostei de você.
- Sinto muito. Você para mim,  morreu. Morreu!
- Pois que seja, não sei porque estou  aqui. Estava trabalhando  e larguei tudo feito um doido.
-  Daqui a pouco, vai perder o emprego. Deixe meu pai saber o que você aprontou.
- Não faça isto Amelinha, sou arrimo de família.
- Você jogou a sorte pela janela. Nunca vai ser nada na vida, este casamento era sua grande chance. E você é um capacho! Só não serve mais para limpar meus pés... Fora daqui! Fora!
Maria Amélia estava felicíssima, em menos de 24 horas havia dado resultado. Agora ela queria fazer o noivo rastejar, implorar, suplicar seu perdão...até enjoar de maltratar Pedro, levaria algum tempo... Então estaria vingada e aceitaria reatar o noivado.
Sabia que Pedro era apaixonado por ela desde menino. O corte latejava terrivelmente, ficou apertando o punho, assistindo o rapaz  sair de cabeça baixa.
Minutos mais tarde, já havia esquecido o incidente e assistia TV. Enroscada no sofá, sentiu o movimento e encarou o noivo parado na sua frente: - Saia daí, quero ver o programa.
Ele sorriu e continuou em frente ao aparelho, impedindo a visão. Amelinha então, percebeu a   camisa branca empapada de sangue,  na altura do peito. A mancha aumentava mais e mais.
Tentou levantar para socorrer o rapaz. Quando estava bem próxima, estendeu a mão e não havia nada. Pedro havia desaparecido. Sentiu um mau pressentimento, tentou o celular de Pedro:- pai? O que está fazendo com o celular do Pedro? O que está acontecendo?
Amelinha desabou na cadeira.  A  firma havia sido assaltada e Pedro reagiu. Morto.
Ele havia morrido e todo o trabalho estava perdido. Sentiu vontade de voltar à casa da vidente e  reclamar. Sentiu  raiva de tudo e todos. Principalmente do morto, este sim, o maior culpado.
Trancada no quarto, livrou-se do enterro e da família. Enquanto todos respeitavam seu silêncio, Amelinha deitada no escuro, amaldiçoava a vida.  Começou a sentir fortes dores nas articulações. O corpo inteiro formigava e o cansaço não permitia que saísse da cama.
Naquela mesma noite, sentiu que não estava sozinha. Viu o noivo encostado na penteadeira. A mesma roupa ensangüentada, o ar perdido e triste:- O que quer? Você está morto, vá assombrar sua mãe.
Pedro riu e andou até a cabeceira da cama. Amelinha notou que ele tinha os olhos azulados. Vítreos. Pediu  mais uma vez que ele fosse embora:

- Patético. Até morto é patético. Pra que foi bancar o herói? Agora virou fantasma.
- Fiz de propósito. Minha mãe vai receber meu seguro de vida. Ia perder o emprego, esqueceu? Ia ficar na penúria lembra?
- Eu estava brincando, queria te fazer sofrer... ia reatar o casamento. Me deixe em paz....

- Sei o que você fez Amelinha...Sei tudo sobre sua bruxaria. E tenho tanto ódio... Quero ver seu fim minha noivinha querida.
 Completamente transtornada, começou a rir.  À princípio eram risadinhas de deboche, depois, o riso tornou-se incontrolável. 
Não conseguia relaxar os músculos faciais. O molar doía, a ponto das gargalhadas, transformarem-se em pura agonia.
Amelinha desmaiou de dor,  perdia a razão e não sabia o que fazer. Pedro não a deixava. Era uma sombra pairando a cada respiração. Todo o corpo contraído como estive levando agulhadas.
 Ela suplicava que ele a deixasse em paz. Cada aproximação do defunto, provocavam ondas de calafrios. Amelinha se debatia, queria livrar-se do algoz,  mas estavam ligados. Unidos.

Precisava  ter forças para voltar na vidente e pedir ajuda.  A garganta começou a fechar e sentiu as mãos de Pedro em seu pescoço. Amelinha sufocava, desfalecia sem conseguir respirar.
 Então,  ele se foi e o ar entrou em golfadas. O pulmão ardia pelo esforço. Respirar. Não queria morrer
, tinha muito para viver. Cada minuto, odiava mais o noivo, ele só queria  vingança.  Precisava lutar e a dor era uma inimiga poderosa. 
No terceiro dia, a mãe forçou um contato:- Filha, precisa  comer alguma coisa. Porque está tão escuro? Vou deixar entrar um ar, precisa reagir, estamos preocupados....
- Não! Esta luz dói... Não suporto esta claridade...
Quando uma réstia de luz iluminou o quarto, a  mulher tentou conter o horror. A filha estava esticada na cama, completamente  retesada.
As mãos tapavam os olhos, o cheiro forte de suor impregnava tudo. Era preciso chamar o médico urgente, Amélia estava muito doente. Rangia os dentes e gemia alto:- É Pedro! Ele veio me buscar. Tirem ele daqui...
Uma hora mais tarde, a ambulância levava a moça para o hospital. A expressão fechada do médico,  era alarmante:- Ela está com  tétano, o estado é muito grave. Não compreendo como deixaram passar tanto tempo sem socorro.
- Minha filha acabou de perder o noivo, trancou-se e não quis falar com ninguém. Foram apenas dois dias doutor. Como poderíamos imaginar?
Internada na UTI, Amelinha não reagiu ao tratamento e acabou falecendo. Após a cerimônia, todos lastimavam o destino de Maria Amélia. O casal faleceu com semanas de diferença. Um caso triste e tocante.
O cortejo já ia longe, quando duas mulheres,  aproximaram-se do túmulo lentamente.  Uma delas  depositou a boneca no jazigo recém coberto. No meio das coroas de flores, a bruxinha vestida de noiva, vertia lágrimas...
 
 
 
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Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 27/11/2008
Reeditado em 26/04/2009
Código do texto: T1306782
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