Curiosidade Mata

Eu tenho sérias tendências ao empirismo. Sempre que tenho a oportunidade, gosto de mergulhar fundo em uma experiência interessante. Acredito convictamente na validade da imersão como forma de se adquirir experiência. E, no caso de ser um escritor, isso é ainda mais importante. As impressões adquiridas podem ser transferidas para o papel com maior fidedignidade.

Eu escrevo, sim. É um hobby, algo que me deixa mais vivo. Clarice Lispector disse que ela não existia sem a escrita; ela simplesmente vegetava quando não conseguia escrever. Acho que sou um pouco assim. E há ainda esse afã pelas coisas novas, pelo sabor do desconhecido, por sentir na pele as fascinantes experiências do outro, coisa que já disse. A escrita e a vontade são parte da minha alma, indissociáveis de mim.

Tendo dito isto, posso confessar o que fiz. Espero que consiga ler em meio à zona que encontrou nesse quarto imundo. Uma kitchenette na periferia foi o local mais discreto que consegui encontrar para essa experiência, e, se você está segurando essas anotações sujas, é porque merece saber.

Tudo começou quando me fiz uma indagação meio estapafúrdia: “como será matar alguém?” Muitas pessoas devem ter feito essa pergunta ao longo dos anos, e muitas outras devem ter encontrado a resposta sem nunca ter pensado no assunto de modo racional. Mas eu o fiz, em uma tarde quente e enfadonha de outubro. A cabeça estava sem idéias, o coração urgia por pôr algo no papel, e as mãos estavam imóveis. Os olhos focavam a opressão branca do papel, inertes. Era assim que eu estava. E não há nada pior para um escritor do que querer escrever e não conseguir extrair coisa alguma da mente.

Como será matar alguém?, escrevi no papel. Eu conheço assassinos. Poderia ter perguntado a eles sobre a experiência de ceifar a vida alheia, de amealhar almas em corpos cheios de vida, pulsantes. Mas isso não seria suficiente. As impressões seriam afastadas demais da minha realidade, de minhas idiossincrasias. Não. Eu não precisava apenas saber: eu precisava sentir.

E precisava de uma vítima. Mas havia um problema: não sou uma pessoa injusta. Minha consciência – ou qualquer protótipo disso que eu tenha – costuma me cobrar pesadamente quando cometo algo que vá de encontro a meus valores. A vida, enquanto instituição, é preciosa. Todavia, há vidas descartáveis. E era de uma dessas que eu precisava.

Foi então que Marcus entrou na minha vida. Todos no bairro o conheciam por sua fama de durão e de bandido. Os mais chegados diziam que ele já havia matado mais de vinte. Ele mesmo me confessou isso, quando ficamos íntimos. Vou falar sobre isso no momento oportuno.

Resolvi me aproximar de Marcus. Ele freqüentava um bar no centro da cidade, e passei a ir para lá também. Depois da terceira vez, puxei papo e paguei uma bebida. Esse tipo de gente está acostumado a ser tratado ora como divindade, ora como escória. Quando se trata uma pessoa assim como igual, com respeito, olhando no olho, é fácil conquistar sua confiança. Os extremos costumam criar um gosto peculiar pela parcimônia em espíritos calejados, eis minha teoria.

Em duas semanas, eu era o melhor amigo de Marcus. Era convidado às festas mais loucas, regadas a muito uísque barato, merla e prostitutas. Ele passou a me pedir conselhos para sua vida; não sabia o que fazer com a ex-mulher, que ameaçava processá-lo para que pagasse pensão alimentícia para a filha. Era abril, fazia um frio dos diabos, e resolvi testá-lo.

- Se eu fosse você – disse, com a voz deliberadamente mais baixa, de modo que só ele me ouvisse em meio à algazarra generalizada – eu dava um cala-boca nela pro resto da vida.

Dois dias depois, encontraram a mulher com a cabeça do lado do corpo em um matagal na zoina rural. É, ele era capaz de matar, sim. E ele estava sob meu controle. Era como fazer uma experiência com ratinhos brancos em um grande laboratório. Remorso? Inútil. Era só mais um corpo.

Fazia mais de seis meses que eu tinha contato com ele, e a vontade ainda permanecia em mim. A convivência com Marcus não se provou algo que me afastasse de meu plano. Pelo contrário; quanto mais o conhecia, mais o desprezava. Os preparativos estavam indo a contento, afinal. Isso me empolgava.

No feriado de Finados, em 2 de novembro, ele me ligou, desesperado. Disse que a polícia estava atrás dele, e que iria para a kitchenette que eu recomendei que ele comprasse. A oportunidade estava ali, sorrindo para mim. E eu a agarrei. Disse que iria encontrá-lo à noite, por volta das nove horas, na portaria do prédio. Disse também que ia levar umas cervejas, para a gente beber e relaxar. Ele agradeceu e desligou.

Às oito e cinqüenta e sete daquela noite, eu cheguei à portaria. Ele estava fumando um fedorento cigarro paraguaio – comprava centenas de caixas, ficava com algumas e revendia o resto para camelôs – e parecia ansioso. Eu estava com dois engradados de cerveja, que havia acabado de comprar num supermercado a dois quarteirões dali. Ele me abraçou e me acompanhou até o diminuto apartamento. Também tinha levado um tubo de salaminho – ele não comia nada de porco, até hoje não sei porquê, mas eu adoro essas guloseimas.

Tudo se passou com certa fluidez. Enquanto eu bebia uma latinha de cerveja, ele bebia quatro. Tomei só duas, para disfarçar. Ele bebeu o resto inteiro. Tinha uma grande tolerância ao álcool, por isso levei essa quantidade de bebida. Ele se levantou para ir ao banheiro e, quando fechou a porta, eu fui até o armário do setor que seria a cozinha. Tirei uma grande faca de aço inox, que estava cega, e uma tábua de carne de madeira. Havia uma pedra de amolar por perto, e, sob o fluxo de água da torneira, amolei a faca.

- Que é isso, meu negão? – perguntou ele.

- É para cortar o salaminho. Trouxe pra mim. Tu sabe que eu adoro.

- Essa merda ainda vai te matar.

Eu ri, mais da ironia da admoestação do que da fala engrolada de bêbado que atravessava seus lábios. Tirei o salaminho da embalagem e comecei a cortá-lo lentamente, concentrando-me para que as rodelas fossem o mais finas possível. Escutei-o abrir outra lata, e senti a adrenalina ocupar cada centímetro de meu corpo. Um furacão alojou-se em meu estômago, enregelando-o. A ansiedade e a excitação eram enormes, quase opressoras. Aquela era a última lata de cerveja. O momento havia chegado.

Lavei as mãos e o cabo da faca, para tirar a gordura do salaminho. Enxuguei, para manter a firmeza do tato, e me aproximei dele por trás em passos medidos. Marcus estava todo recostado no espaldar de uma poltrona imunda, a face mirando o teto, os olhos fechados.

Quando segurei seu queixo, ele abriu os olhos, um tanto surpreso. E, rapidamente, a surpresa se transformou em horror quando ele viu a faca surgindo num raio prateado. Ele estava letárgico em virtude da bebida, e seu corpo franzino não conseguiria me afastar. Encostei a lâmina do lado esquerdo do pescoço, e puxei.

Por um momento, a faca fez parte de meu corpo. Eu consegui sentir o gume abrindo pele e carne, lacerando veias, tendões e traquéia num movimento uniforme, quase belo. Um jorro de sangue molhou a faca e minhas mãos, sangue quente e rubro brilhando à meia-luz daquele moquifo cheio de pulgas e crostas de sujeita. Eu olhei nos olhos daquele homem, vi o desespero, ouvi o som gorgolejante de seu grito abafado pelo sangue, e me senti leve. Não havia terror em tirar a vida de uma pessoa assim, na surdina, conquistando-lhe a confiança, utilizando-se de pura maquiavelia assassina.

Vi a luz apagando-se de seus olhos, e sorri, suave. O sangue ainda escorria do ferimento, um sorriso de morte profundo. Deixei que a cabeça tombasse para frente. As roupas baratas dele estavam embebidas em seu sangue. A faca está em sua posição no faqueiro de seis peças, na terceira porta, da direita para a esquerda, no armário sobre a geladeira.

Depois disso, tranquei o apartamento dele e dissolvi as chaves num tubo de ensaio de um dos laboratórios de química da faculdade. Deve estar ainda um cheiro horrível aí dentro, mesmo depois de terem recolhido o corpo. O que fiz foi desprezível? Talvez. Espero que não caia no lugar-comum enganoso de me avaliar de acordo com seus juízos de valor. Fiz o que fiz, e não me arrependo. As sensações que tive serão minhas pelo resto da vida, um presente que dei a mim mesmo. Mas você se engana se pensa que Marcus me serviu somente para isso. Não. Sua morte me fez saber como é matar uma pessoa. Mas há algo novo que me ocorreu: como deve ser morrer?

Quer me ajudar a descobrir?