Solo
Solo
“Ventos uivantes continuam a gritar; E vem uma chuva torrencial; As portas estão fechadas e trancadas agora; Enquanto aquela coisa rasteja na cidade; Diretamente do inferno
Não existe nada como ele; Seguindo sua vítima; Não olhe para trás
Rastejador noturno; Cuidado com a besta vestida de preto; Rastejador noturno
Você sabe que ele está voltando; Rastejador noturno”
Judas Priest
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A mulher era um espetáculo! Olhos azuis e cabelos pintados de laranja. Lembrava uma cascata de ouro bruto escorrendo em suaves ondas. Corpo de deusa, bunda majestosamente empinada, pernas firmes e delicadamente musculosas. Seios grandes de pontas rosadas. O que chamamos pele, em Leona, caberia melhor: seda. Perfeita! Na gíria masculina um tesão.
Secretária executiva. Solteira, inteligente, morava sozinha numa belíssima cobertura. Charmosa, fina, educada e rica. O apartamento decorado com obras de arte, objetos antigos e raridades. Gosto refinado.
Não teve uma infância muito legal. Contava com dois anos quando levou uma facada de sua mãe. Um casal a adotou salvando-a da psicopata. Foi para a faculdade e lá conheceu Marlon. Um belíssimo rapaz que a conduziu para conhecer as forças do Universo. Depois de um dos rituais da Alta Magia ela não conseguiu se lembrar de um período de oito anos de sua vida. Nunca mais viu Marlon ou a Irmandade. Ignorou a questão e dedicou-se aos estudos e trabalho. Estava bom assim. Saiu do trabalho e decidiu ir a pé para casa. Era perto. Deixou o salto alto e pôs um mais baixo para caminhar melhor. Foi.
O bebê acabou de mamar. Corpo e alma saciados, dormia tranqüilo. Com carinho colocado no berço. Um quarto decorado em tons azuis imitando o céu. As janelas do sobrado são grandes, assim como a residência.
Leona, caminhava pelas ruas quando sentiu algo estranho. Não estava sozinha. Olhou para trás viu, no fim da rua, uma figura corpulenta vestida de preto. Um sobretudo de couro abraçava o corpo maciço do homem. Uma afiada espada nas mãos. Apesar de sua roupa escura ela percebeu que o estranho emanava cálida luz branca. Temeu. Correu. Ele foi atrás.
Entrou num beco na esperança de escapar. Esperou alguns minutos. Silêncio.
Não havia mais ninguém nas ruas.
A noite estava belíssima. O manto negro cravejado de diamantes cobria a cidade de mistério. Uma brisa suave balançava as copas das árvores. A coruja arrulhou e atentou fixando o olhar em um movimento. Como uma escultura observou imóvel. Não pôde predar o animal que viu, pois, era muito maior que ela e perigosíssimo. Não o reconheceu, mas, sentiu a atmosfera da iniqüidade circundando-o.
Silêncio.
A cidade dormia. O bairro, saciado, descansava. De bem com a vida.
A coisa farejou.
Os olhos da coruja viram um homem, grande e de sobretudo de couro negro. Estava chegando perto da casa.
As escuras escamas refletiam o luar e o cromo das estrelas. Filetes alaranjados, amarelos e vermelhos serpenteavam por todo corpo. Poderosas narinas captavam aromas e os vermelhos, reptilianos, olhos enxergam quilômetros. O couro, capaz de suportar grandes ofensas. A maligna mente com telecinésia somada ao olhar hipnotizante permitiam a exclusividade da criatura. Medusa teria inveja! Esgueirando-se nas sombras parou. Cheirou. “Aaaahhhh! Que aroma! Preciso comer...”
A coruja ainda observava.
O bairro ainda dormia quando o fecho da janela silenciosamente abriu. O negror brilhante e rajado entrou no quarto. Mamãe e papai dormiam. Assim como o infante farto do leite materno.
O véu do berço, magicamente, abriu-se. As roupinhas, desabotoando-se silenciosamente, deslizaram. Despido agitou os gordos bracinhos, o sono perturbado. Para um canto do berço, as roupas se arrastaram como hediondos vermes. O móbile acima balançava com a atmosfera elétrica, agradáveis ruídos contrastavam com o sufocante e mortal silêncio.
O aroma. O prazer. “AAAhh! Carne tenra, fresca e nova!”
O bebê se moveu. A coisa apressou-se, temia acordá-lo.
Sua cabeça foi engolfada pela imensa boca com dentes serrilhados. Os olhos infantes abriram-se e perceberam que algo estava errado. Sufocava. Tentou chorar. Desespero. Seus ombros passavam pela fenda infernal. As pernas debateram-se fracamente em vão. Foi devorado inteiro como um inseto na boca do sapo. Deslizou para o fundo da garganta do monstro até as entranhas onde os sucos gástricos dissolveram carne e ossos. O bebê, mesmo com os sentidos falhando sentiu seu corpo arder. Em segundos não sentiu mais nada. Ele se foi.
A grotesca criatura levantou a cabeça, fechou os olhos, o prazer percorreu seu corpo lustroso, tremeu. Satisfeita, saiu.
John levantou-se para ir ao banheiro. Eram 3:30 da madrugada. Antes de dormir tomou uma caneca de meio litro de água. Depois de aliviar-se foi olhar o filho.
Chegando no quarto apenas teve tempo de ver um homem de sobretudo pulando a janela, para fora. Assustado, John correu para ver o que estava acontecendo: o misterioso homem rapidamente desapareceu nas sombras.
- ANETE! O bebê... – Correu para o berço. Somente roupas. A coruja ainda na árvore em frente arrulhou, dizendo o que viu. Eles não entenderam nada. Nem sequer a ouviram.
Anete ajoelhou-se no chão com as roupinhas do filho nas mãos. Grossas, pesadas e dolorosas lágrimas escorriam como aço derretido e gelado. Seu grito rasgou a noite. John juntou-se a ela.
A polícia não encontrou nenhuma pista. Absolutamente nada. O local foi duas vezes periciado. Nada. Foi invadida por um fantasma? Nem o carpete, nem o gramado após o salto afundaram sob os pés do invasor. A janela não apresentava sequer um arranhão que denunciasse uma invasão.
O tenro e saboroso corpo de Mike jamais foi encontrado.
Na cabana no meio da mata o homem retirou o sobretudo e o pendurou na parede. O gato siamês miou pedindo comida. No teto um apanhador de sonhos descansava. Nas paredes vários objetos religiosos defendiam o local dos maus espíritos. No peito uma corrente de ouro e um pingente de prata: o An’khá de Zeus, o mais poderoso amuleto da Terra. A espada foi colocada no suporte na parede de madeira. Incensos e velas aromáticas acenderam-se. Ele, nu, ajoelhou-se no centro do Círculo de Dédalos desenhado no chão. Fechou os olhos.
“Quem era aquele cara?!” – Leona estava intrigada. – “Estarei vendo coisas? Ele brilhava! Senti um medo terrível... Meu Deus!” – Olhou para o jornal. A manchete:
HOMEM DE SOBRETUDO PRETO RAPTA CRIANÇA DE SEIS MESES. PAIS DESCONSOLADOS.
- Preciso tomar mais cuidado...
Seu corpo nu estava imerso. Não parecia água, era gelatinoso e não molhava. Seus olhos bem abertos e sua mente funcionando perfeitamente assim como seu másculo corpo perceberam que uma estupenda força o dominava. Deitado no leito do que seria um rio de gelatina verde sentiu a mesma força puxando-o para a superfície. Não estava com medo, apenas confuso. Não sabia o que era medo, terror ou angústia. Era a força e a coragem personificadas. Cabelos negros, espessos, jogados para trás, lindamente bagunçados, olhos argutos e negros como a noite, barba por fazer, uma tatuagem no ombro direito. Um símbolo. Eram três argolas, uma em cima e duas embaixo. Cruzavam-se. Nas três, uma fenda. Saiu da gelatina. Flutuava agora numa imensidão escura e opressora. A rajada de luz tão repentina quanto intensa feriram seus olhos. Não podia fechá-los. A força não permitia. Planou sobre a gelatina. Braços e pernas esticados. À sua frente duas árvores desenhavam um portal luminoso multicolorido. Raios, trovões e uma fumaça branca explodiam. Ouvia vozes, canções, preces. Lentamente, ainda flutuando sem controle do seus movimentos, atravessou. Do outro lado, um bosque escurecido pela manta noturna. Uivos, silvos, galhos quebrando-se por todos os lados. Estava vestido agora. Uma espada surgiu na mão direita. Refulgia numa luz crespuscular, ressonava, vibrava. Na sua frente um imenso homem lobo se materializou. Ao lado um homem com vestes enegrecidas e imundas com presas à mostra, logo atrás patas enormes, como de aranha, avançavam devagar. Ele não podia se mexer... Avançaram. A imensa mão lupina rasgou sua garganta. O vampiro correu para lamber. A aranha avançou ensandecida com o cheiro de sangue; fantasmas o cercaram, gélidos, apodrecidos. Mesmo com a garganta dilacerada, vivia e sentia seu sangue sendo sugado... Acordou suando e ofegante. Do mesmo jeito, na mesma hora, todas as noites. Meia noite.
Novamente uma noite maravilhosa. Sexta. Leona estava arrumada, perfumada, toda vestida de preto. Um colar de diamantes ornamentava sua tez sedosamente branca. Desceu.
No alto do edifício o homem de sobretudo preto viu quando ela saiu.
Não marcara nenhum encontro. Ninguém interessante sabe? Dirigiu o Audi S8 Turbo Pérola. Foi até o Aeon Rock Bar. Um lugar aconchegante e badalado. Adorava!
- Leo!
- Oi Cléo!
- Esse é o Ravel, conhecido como Palhaço.
- Prazer Ravel, sou Leona.
- Cléo! Que amiga linda você tem hein...
- Não começa Ravel!
- Vem Leo, vamos sair de perto do Palhaço senão...
Um Pontiac Solstice V12 preto estacionou. Perfeitamente escurecidos, mais negros que o manto noturno, os vidros ofereciam ao veículo beleza e mistério. Os faróis Xenon vermelhos apagaram-se. O motor desligou. O homem desceu. Vestia um sobretudo de couro preto. Na cintura duas adagas de prata escondiam-se dos curiosos.
Descansando na perna direita a espada, cuja proteção na empunhadura era uma extensão da afiadíssima lâmina de dois cortes. Uma arma extremamente letal e única. AEON ROCK BAR brilhava à sua frente em Neon azul.
Cléo e Leona estavam dançando na pista na voz de Thijs Van Leer. Adoravam-no! Dezenas de homens usavam sobretudo naquele lugar. Não importando o calor.
- Uma cerveja. – O recém chegado pediu.
Olhava para todos os lados. Viu-a. Um loiro de olhos muito azuis aproximou-se. Também de sobretudo de couro negro. Dois punks postaram-se de cada lado.
- O que quer aqui invasor?
O estranho baixou o copo e olhou bem nos olhos do loiro:
- Não preciso me explicar. Para ninguém. – Gole na cerveja.
Sorrisinho de canto de boca do loiro.
- Você é mais petulante do que eu supunha...
- Só estou tomando uma cerveja. E você perguntou. Eu respondi.
Um dos punks pegou uma meia com uma bola de bilhar dentro. O outro colocou o soco inglês.
- Escutem. Não quero ferí-los. Não aqui, nem agora.
O loiro aproximou-se a ponto do estranho sentir o cheiro de podre vindo de sua boca.
- Cai fora!
O estranho foi arrastado para fora e jogado no chão. Levantou-se. O loiro investiu. O homem abaixou-se e com a mão direita golpeou o atacante erguendo-o no ar, como um boneco de pano o loiro foi arremessado por cima dos automóveis estatelando-se no chão pedregoso. O estranho encarou os dois com fúria: - Quem é o próximo?
Um começou a rodar a bola na meia e atacou. O homem esquivou-se e segurou o braço do infeliz. Dobrando-o ao contrário. Crrraaaaacckkkk! Um potente soco no queixo apagou-o, nem deu tempo de gritar com o braço quebrado. O outro já estava em cima quando seu nariz foi quebrado por outro fortíssimo murro. Um direto no queixo o fez dormir. O loiro estava olhando entre os carros. O estranho virou-se. Perscrutou. Podia sentí-lo. O cheiro de podre e a maldade denunciaram-no. Pegou a espada.
- O que você quer aqui forasteiro?! – Perguntou o loiro afastando-se. – Sei quem você é! Afaste-se de mim!
O estranho caminhou encarando o loiro.
Mais um carro estacionou. O estranho parou e guardou a espada. O loiro se foi. Os rapazes que desceram do carro viram os dois idiotas deitados no chão. “Essa hora e já bêbados...!” Entraram no bar. O estrangeiro seguiu-os. Sentou-se no balcão. Ninguém viu ou ouviu nada. Tudo aconteceu em questão de segundos.
A garota de cabelos alaranjados e seus amigos curtiam Motorhead nas alturas.
- Olá garanhão!
Ele olhou para a beldade que o interpelou. Não havia nada de errado com ela.
- Olá.
- Um gatão como você está sozinho nesse lugar?
- É. – Gole na cerveja.
- Posso tomar da sua cerveja?
- Sim.
- Você sempre responde com apenas uma palavra?
- Geralmente.
Os olhos dele não paravam. Sempre no alvo.
- O que você faz...
- Caço.
- Uau! Um caçador! Caça animais?
- Sim.
- Então você deve viajar bastante, presumo...
- Muito.
Não sorria. Sempre sério. Bebericava a cerveja e nem sequer olhava direito para ela.
- Meu nome é Rosie e o seu?
Ele a encarou. Pagou a cerveja e levantou-se.
- Foi um prazer Rosie. – Saiu.
Leona estava no estacionamento com sua colega.
- Vamos Leo! Beber mais um pouco...
- Não quero. Estou um pouco indisposta hoje. Quero ir para casa.
- Ai! Tá bom, tá bom. Eu vou ficar, além do Palhaço tem outros caras interessantes lá.
- Tchau Cléo.
Atrás dos vidros escuros do Pontiac Solstice dois argutos olhos acompanharam os cabelos alaranjados entrando no Audi S8.
Na estrada o S8 parou num lugar deserto. A estrada era ladeada por uma floresta. A uma distância segura com poderosos binóculos observou-a. Leona olhou para os dois lados e entrou na floresta. O forasteiro a seguiu com os binóculos. Entrou no carro, foi até lá.
Caminhando na floresta Leona olhava constantemente para trás. Como se temesse algo. Correu. Alguém estava no seu encalço.
Uma imensa sombra negra no alto de uma das árvores percebeu o movimento. A coisa era enorme. Seus olhos pingavam labaredas que esmaeciam na altura do tórax peludo. A boca lupina arreganhou-se mostrando a fileira mortal de caninos dilaceradores. Olhou para a moça e atrás dela, como um felino, um homem de sobretudo. Reparou que o estranho homem emanava uma pequena luz branca. Em toda sua vida como mulher-animal nunca sentira tal coisa. Seus pêlos eriçaram ao olhar o misterioso brilho do perseguidor que parou, bem embaixo dela.
Leona correu mais depressa. Conseguiu sair na outra estrada. Um outro carro a aguardava.
Sua bestialidade não apagava sua inteligência e raciocínio. Sentiu que ele era perigoso. Decidiu esperar. Quieta. O brilho do estranho aumentou quando olhou para cima e a viu.
Dentro do Nissan branco Leona estava a salvo. Foi para a cidade.
- Amanda... – Ele sussurrou. A espada retiniu em suas mãos. Na outra uma semi-automática de treze tiros cromada carregada com balas de prata.
Os olhos da criatura semicerraram. O arrepio deu origem à fúria. Saltou para outra árvore para se esquivar do tiro.
Correu acompanhando os movimentos do monstro.
- Há muito tempo te procuro Amanda...
A criatura subiu numa copa muito alta desaparecendo nos galhos. O homem a procurou. Seu brilho era intenso. Iluminava a clareira onde se encontrava. Estava tão imerso em si mesmo e no desejo de derrubar o monstro que não percebeu a chegada do perigo.
Era maior que o primeiro. Silencioso e mortal. Negro como a noite sem lua cheia, as garras vermelhas à mostra. Postou-se atrás do atirador.
A casa era térrea. Uma belíssima residência. A garota de oito anos dormia tranqüila em seu quarto rosado. O trinco da janela abriu-se. Algo escorreu para dentro do quarto. Uma massa de carne e escamas reluzentes. O hálito enegrecido aprofundou ainda mais o sono de Ellen. A criatura do inferno parecia ter pressa. Rapidamente a menina desapareceu na fenda do diabo. Ela jamais soube o que aconteceu. Quando acordou, estava no paraíso. A coisa arrastou-se para fora. A janela trancou-se sozinha.
Na manhã seguinte Ellen não foi para a escola. Os pais... A polícia...
O caçador sentiu algo em sua nuca. Uma enorme mão com garras cobriram boa parte da cabeça. Como um bate-estacas ergueu-o do chão e encostou-o contra a árvore. Ouviu um rosnado profundo e muito grave. Contínuo. Sentiu o bafo quente na orelha e no meio do rosnado uma frase: “Quem é você?!”
- Sou seu pior pesadelo monstro! – Nesse momento brilhou como uma estrela. O monstro que o segurava titubeou. Com uma força absurda o homem brilhante virou-se rapidamente e com um murro atingiu a axila do braço que o prendia. Com o pé direito golpeou o lobisomen nas costelas que urrou de surpresa, dor e ódio! Aquela luz... Queima! A que estava em cima da árvore saltou para cima dele. A arma na mão virou-se, rolou no chão e atirou. Atingiu Amanda bem no meio das costas peludas e enormes. Ela tombou. O outro uivou de ódio e investiu. Mais um tiro. Esquivou. Pegou o caçador pelo pescoço, suas mãos queimavam ao contato com a luz, rodopiou com o corpo nas mãos e atirou-o como se fosse uma bola de tênis. Bateu pesadamente contra um carvalho. Caiu, apagado, no chão.
As mãos da criatura fumegavam. Queimadas. Ele ajoelhou para ver a companheira. Morta. Rosnou alto. Ergueu-a no colo. Uma outra criatura, menor que ele, juntou-se, dos olhos pingavam gotas de fogo azul. A menor, também feminina, rosnou e correu para estraçalhar o assassino. Algo a fez parar. Não podia tocar naquele homem. Seu instinto a parou. O grandalhão com Amanda morta no colo meneou a cabeça em desaprovação e sugeriu que fossem embora. Em silêncio sumiram na escuridão.
Ferido, estava desacordado. Várias fraturas. Três costelas perfuraram os pulmões. Ombros, ambos deslocados, a coluna vertebral estava partida em dois. Um filete de sangue escorria-lhe do canto da boca e nariz.
O lugar era úmido e fedorento. Rostos apodrecidos e carcomidos esvoaçavam por todos os lados. Corpos acéfalos e carregados de larvas cercaram-no. Um murmúrio incessante escorria por todos os lados. Ele estava paralisado. As coisas pararam. Algo rastejava entre eles. A monstruosidade estava chegando. Sua cabeça media um metro e meio de diâmetro, a bocarra exibia dentes finos e serrilhados, salivava veneno mortal, negra. Podia-se observar estrias alaranjadas, amarelas e vermelhas por toda a extensão do corpo ofídico. Os grandes olhos como os de um gato fixaram na presa. Parecia não tocar o chão. Flutuava. A paralisia não o largava. O terror era extremo. Do alto das árvores reparou em diversos olhos, azuis, verdes, amarelos, todos amendoados, grandes e que pingavam chamas. Uivos, sussurros, palmas.
Silêncio.
Nada mais se movia.
A floresta foi invadida por uma imensa luz branca, ofuscante. Envolveu-o completamente. Ergueu-o no ar como uma mãe pega seu filho do berço. As coisas, paralisadas, apenas olhavam. Seu corpo estalou. Esticou-se. O sangue voltou a circular, seu coração batia novamente. Força e fúria renovadas. O cérebro despertou do insano e atormentado sono. Levantou-se. Seus ossos estalavam colocando-se em seus devidos lugares. Os ferimentos se fecharam. Estava amanhecendo. Olhou ao redor. Silêncio.
Leona entrou no escritório. Parecia assustada. Alguém a estava perseguindo. Há dias. Sentou-se. Pegou o telefone... Hesitou... Desligou. Afundou na cadeira. Suspirou.
Na cabana, no meio do bosque, o homem nu ajoelhou-se dentro do Círculo de Dádalos. Segurou o amuleto que sempre trazia no peito, o An’khá de Zeus. No teto o Apanhador de Sonhos balançou. Todos os amuletos do aposento tremeram. O Círculo Sagrado emanou fracamente uma luz dourada. Permaneceu ali todo o dia. “Hoje eu a matarei!”
Nancy deu boa noite aos pais. Foi para o quarto do espaçoso apartamento do terceiro andar. Seus longos e sedosos cabelos negros contrastavam com sua pele morena. Olhos muito verdes davam um toque todo especial. Nove anos, seu irmão, seis, dormia no quarto azul com motivos espaciais. Eram muito amigos. Como costume foi olhar o irmão, já estava dormindo. Ajeitou melhor o cobertor deixando a porta entreaberta. Os quartos eram um na frente do outro. A suíte master ao fundo. A babá, na sala, assistia TV. Os pais sairiam para curtirem um jantar romântico na companhia de dois amigos. Quando a menina saiu do quarto não reparou que no armário embutido dois olhos, muito atentos, observavam.
A madrugada reinava docemente. O Condomínio era arborizado e iluminado com luzes opacas dando um ar aconchegante. A coisa, como todas as criaturas das trevas, esgueirava-se pelas sombras. Seu volumoso corpo serpenteava sabiamente até sentir o aroma. Carne fresca, sangue quente. “Aaahhh! Terceiro andar! Um menino... Suculento...” O fecho da janela estalou fracamente. Os olhos no armário sorriram. A espada reluziu.
A criatura esgueirou-se. Faminta. Olhou para os lados. O garoto sonhava com Speed Racer. Ela cheirou o ar. “Uuuuhhh! Esse menino exala um cheiro maravilhoso... Hoje será especial!” – “Você nem imagina quanto!” – Os olhos pensaram.
A bocarra estava escancarada quando uma luz ofuscou-lhe toda a visão e raciocínio e numa fração de segundo não conseguiu decifrar. Tarde demais. Uma dor profunda, excruciante atingiu-a bem no topo da cabeça. Seu cérebro dissolvia-se espetado com a luminosa espada. O corpo debateu-se e a criatura pôde ver seu algoz, um homem de sobretudo negro estava à sua frente. Sussurrou: “Te peguei maldita! Não matará outra criança!” Foi sua última audição. A casa ainda dormia quando o volumoso corpo encolheu-se e transformou-se numa linda mulher de cabelos alaranjados. O corpo jazia com a espada na cabeça. O homem tirou-a. O ferimento desapareceu. A mulher estava morta.
O estranho abriu a janela do quarto. Pegou o cadáver e saltou. Ouviu um grito de criança. Foi embora...
Nancy estava na porta do quarto com a mão na boca. Seu irmão acordou e a babá correu...
Na cabana o homem de sobretudo negro colocou o corpo nu de Leona no Círculo de Dádalos. Uma luz vermelha engoliu-a.
O homem sorriu. Detestava monstros, assassinos, lobisomens, vampiros e todas as criaturas das trevas. Fora enviado de volta com uma missão: Caçar e destruir as criaturas dos infernos que assolavam a Terra.
Desde pequeno tinha o dom.
Seu nome era Neil.
Observações:
1. Para maior entendimento de alguns personagens é necessário ler outros dois contos, ambos de minha autoria e postados aqui: Lua Negra e O Terceiro Grau.
2. Créditos devidos: A personagem Leona foi gentilmente cedida por Paula Vicentin, autora de diversos textos no RL. A quem, agradeço o empréstimo. O texto da Paula onde apaixonei-me por Leona chama-se: Sou Leona, a Rainha de tua alma
Alex Holy Diver
12/11/08