Óbolo

O som agudo e ritmado, repetitivo, foi se perdendo, distanciando-se e diminuindo até restar somente uma nota fina contínua, como o zumbido silencioso que penetra profundamente na mente quando nos deitamos para dormir. Depois, tudo ficou confuso. Sombras, vultos desfocados e silhuetas estranhas, tudo em incontáveis tons de cinza, borrado. Barulhos indefiníveis chegavam devagar, como se passassem por uma barreira líquida, murmúrios e sussurros misturados com ruídos de coisas que não estavam por perto, era quase um sonho. Se a sensação de perda irreversível, terrível, se o abatimento do ânimo e das forças não despertasse a consciência de que algo estava extremamente errado, seria fácil se convencer de que se tratava de um delírio, uma ilusão, um pesadelo.

Seres esguios de trajes esbranquiçados, que lembravam vagamente a imagem dos médicos e enfermeiros de um hospital, estavam em volta dele, que permanecia deitado. Eles o observavam com suas feições monstruosas escondidas por trás das máscaras, seus olhos opacos revelavam desconsolo. Conversavam entre si, no entanto, era impossível entender o que diziam. A urgência de escapar tornava o desespero de não conseguir se mexer mais horrível, o corpo não respondia a sua vontade. Deixaram a sala, mas ele tinha certeza que não podia continuar ali quando eles voltassem. Era como se não pudessem, mesmo ao encará-lo, ver que ele estava consciente. Sirenes, sinos, rebentação, trovões ecoavam na distância acompanhados por gritos de dor e sibilos secretos; e incontáveis correntes ensurdecedoras sendo arrastadas por todos os cantos, se aproximando. O ar trazia consigo um peso estagnado, misturado a um miasma insuportável. Ele sentia que uma tempestade se aproximava trazendo destruição, era preciso fugir.

Sentiu entre os dedos uma moeda, a examinando através do tato, reconheceu a familiaridade de sua superfície e lembrou-se de quando ganhara aquela moeda de seu pai, no funeral de sua mãe. A voz calma e triste de seu pai, de joelhos, com as mãos sobre seus ombros o encarando nos olhos, explicando que antigamente, quando alguém falecia, era costume deixar uma moeda com o corpo da pessoa para pagar a sua passagem para um lugar melhor. Que aquela moeda era para ele dar para a sua mãe, para mostrar a ela que sempre iria amá-la, não importava para onde ela fosse. A lembrança súbita reavivou a vergonha infantil e a culpa de ter escondido a moeda que o pai havia lhe dado e de não ter cumprido a promessa de entregar para sua mãe o pagamento de sua passagem para o céu. Ele a queria com ele, não queria perdê-la, por isso guardou para si a moeda e manteve segredo. Quando seu pai morreu anos mais tarde, ele pensou em devolver a seu pai a moeda, para que ele pedisse desculpa a sua mãe por ele, porém não conseguiu se desfazer daquela lembrança e novamente perdeu a chance de fazer a coisa certa. O que significaria aquela moeda em sua mão agora? Em um descuido, a moeda escapou de seus dedos e caiu no chão causando um estrondo ensurdecedor. A frustração foi tão exagerada que ele por pouco não rompeu em choro, descontrolado.

A necessidade de lembrar mais o fez lutar contra a sua inércia e descobriu-se coberto por pesadas correntes que ao se mexer, ele derrubava da maca. Sem controle de seus movimentos desengonçados, acabou caindo da cama, foi tudo tão rápido que ele teve a impressão de ter atravessado a maca. A dor de cair contra o azulejo frio o trouxe de volta para a realidade. O chão estava sujo de sangue escuro, as correntes que derrubara haviam sumido. Ele rastejando conseguiu recuperar sua moeda. Estava exausto pelo esforço que aquilo custara, entretanto sentia-se feliz por poder contar com algo que o fizesse pensar em outra coisa além daquela situação insustentável. Virou-se de costas para o chão e fitando o teto, começou a tentar estimular a memória. Pôs as mãos sobre o peito e tocando a moeda com os dedos, fechou os olhos, concentrado. Ouviu o tilintar de ferro contra ferro e abriu os olhos para ver o que era. Uma coisa, uma figura manchada começou a se formar no teto e rapidamente foi se assemelhando mais e mais a um homem maltrapilho, coberto por um capote, com botas e uma máscara de oxigênio sobre o rosto. Ele caminhava pela parede e vinha devagar em sua direção, parecia não só ser capaz de vê-lo, como se aproximava com uma atitude hostil, carregando um grilhão com algemas.

A fadiga o impossibilitava de fugir, nem mesmo gritar, nem um só fiapo de voz saía de sua garganta. Segurou a moeda consigo forte, consumido pelo pavor ao ver as garras daquele ser medonho puxar algo que estava sobre seus olhos e que ele não se dera conta. A substância viscosa e grudenta depois que fora arrancada de sobre sua face, devolveu sua visão e audição, todavia antes ele não tivesse visto a criatura o pregar em ferrolhos, fazendo-o de escravo, dizendo com sua voz tuberculosa e de uma ironia maléfica:

“_Bem-vindo ao outro lado, inquieto. Você agora me pertence, veremos se você vai fazer jus à chance de poder me servir, ou se vai ser mais útil servindo como distração para os terrores do Limbo, enquanto eu fujo da Tempestade.”

José Rodolfo Klimek Depetris Machado
Enviado por José Rodolfo Klimek Depetris Machado em 17/11/2008
Reeditado em 15/07/2011
Código do texto: T1288278