Mestre das Sombras
Nunca gostei daquela casa azul. Passar diante de suas grades verde-musgo em forma de lança causava-me, além de calafrios, a sensação de que era seguido por olhos invisíveis. Vinha também uma sensação de vazio, de sermos sugados como quando se deixa a água escorrer pelo tanque e nossos dedos são puxados pelo redemoinho. Perguntei a alguns amigos sobre aquelas impressões:
- Você é louco, cara? – era a resposta colhida em meio a risadas de deboche; ninguém compartilhava daquelas impressões.
O sobrado impunha-se sobre as moradas vizinhas. Sóbrio e austero, dizia a todos: afastem-se para que eu tome meu espaço. O velho casal Balestro, de origem provavelmente italiana, como quase todos da cidade, o habitava desde tempos imemoriais.
- São tão velhos quanto a cidade, diziam.
Sempre acelerava meus passos diante da mansão. Com a lancheira ao lado e a mochila nas costas, praticamente corria, do outro lado da calçada, evitando qualquer proximidade. As outras alternativas de trajeto tomariam muito tempo e a pressa é inimiga da prudência. Minha casa situava-se muito próxima. Um dia, descuidado, passava diante da morada pela calçada. Quando dei por mim estava diante do portão de ferro dos Balestro. Ouvi um silvo vindo da casa. Era quase um chamado:
- Venha!
Firmei os olhos sob o sol quente do verão ao meio-dia. A casa parecia derreter e tive a impressão de ver alguns corpos dançando nas paredes e a expressão dos rostos era de pavor. Congelado de medo, com o coração na boca, comecei a afastar-me andando de costas. No meio da rua bati em alguma coisa. Virei-me. O velho casal Balestro encarava-me com os olhos brilhando e um estranho sorriso nos lábios.
- O que você viu, garoto? – perguntou o velho.
Eu não conseguia responder. Com os olhos saltando para fora das órbitas, balbuciei alguma coisa e em seguida quis correr. A velha me segurou pelo ombro e encarou-me:
- Você viu alguma coisa. O que foi? Conte-nos o que viu em nossa casa?
Soltei sua mão e corri em disparada alucinada pela rua abaixo.
- Você é esperto garoto, gritou o velho, não conte a ninguém ou se verá conosco!
A partir daquele dia perdi o sossego. Os Balestro rodeavam minha casa. O velho passava na porta assobiando uma música aguda que por pouco não me arrebentava os tímpanos. Pensei em conversar com meus pais, mas o que poderia lhes dizer? O padre não era confiável. Gordo e velho, costumava dormir no confessionário e não prestava atenção em ninguém. Seja qual fosse o pecado, a penitência era sempre a mesma: cinco Aves-Marias e três Pais-Nossos.
- Você deve ter ficado confuso com o calor, meu pai diria.
Uma noite acordei e senti que era observado. Através da cortina transparente, vi quatro olhos vermelhos me observando do lado de fora. Como fosse o segundo andar, fiquei trêmulo de pavor e enfiei-me sob as cobertas. Demorei a recobrar a coragem e depois de alguns minutos percebi que os olhos haviam sumido. Não conseguia dormir e virei a noite agarrado a um terço rezando infinitas orações e pedindo a proteção de todos os santos conhecidos. Passei a alimentar-me e a dormir mal. Não demorou muito caí doente, com febre. Aquela aflição não tinha mais fim. Naturalmente fui ficando melhor e, em um sábado, percebi que minha mãe tinha visitas na sala. Desci rapidamente pensando ser alguns dos tios de que tanto gostava. Fiquei lívido quando encarei os Balestro tomando chá com minha mãe.
- Veja, filho, que agradável, os nossos amigos vieram ver como você está. Diga bom dia! – não conseguia dizer nada. Minha mãe desculpou-se alegando que eu não devia estar me sentindo muito bem.
- Você os convidou? – foi a pergunta que consegui fazer.
- Sim, meu filho, eles agora podem voltar quando quiserem.
Vi os olhos dos velhos emitindo faíscas terríveis e ouvi um pensamento dentro da minha cabeça como se dissessem em coro:
- Voltaremos quando quisermos...
Subi as escadas correndo para o meu quarto e me joguei sob as cobertas tremendo de medo. Naquela noite senti um vento frio no aposento embora fosse verão de noites de bafo quente. Abri os olhos e vi os quatro olhos vermelhos dentro do quarto. Não consegui gritar. A mão do homem tapou-me a boca. Carregaram-me voando pela janela e me levaram à sua casa. Estranhamente, os velhos foram rejuvenescendo diante e ficaram belíssimos. Deixaram-me em um sofá e começaram a dançar uma valsa em bonitos trajes. Aproximaram-se depois de um tempo e começaram a falar. A sua boa aparência fazia com que afastasse meus temores.
- Escute, você é um garoto esperto, dizia o homem. Sabemos que viu as almas presas nas paredes de nossa casa. Isso nos causou admiração. Existem poucos como você no mundo e isso o torna especial. Nós não temos filhos. Não podemos tê-los em nossa condição de seres quase eternos. Temos vida longa; muito maior do que a de qualquer mortal, mas o nosso tempo se esgota. Possuímos tesouros e muito conhecimento para transmitir a alguém que aceite ser o nosso herdeiro. Poderá ainda viver algum tempo com seus pais enquanto lhe ensinamos o que precisa saber para sobreviver ao mundo. De vez em quando poderá se alimentar de algum infeliz e o ensinaremos a fazer a melhor escolha. Aquelas almas presas nas paredes irão partir quando deixarmos esse mundo. Você terá suas próprias almas, mas elas não o importunarão. Simplesmente só podem partir quando também o formos, essa é a lei. A energia psíquica que emanam nos dá uma força extra. Sugamos seus corpos e suas vidas se atrelam à nossa pelo tempo em que vivermos. Nem todos os mortais podem assumir tal condição, somente aqueles com poderes como os que você demonstrou podem se tornar verdadeiros mestres das sombras. Daremos um tempo para que se decida. Enquanto isso, vamos mostrar-lhe as maravilhas de ser como um de nós.
Aquilo era um estranho convite. Tornar-me um ser como eles poderia ter implicações gravíssimas. Nos dias seguintes o velho Balestro me contou histórias, voou comigo pelo espaço, leu o pensamento de pessoas e me ensinou a lê-los, rasgou o véu do tempo me mostrando segredos do passado e até do futuro. Meses depois entraram no meu quarto perguntando se aceitava ser o seu herdeiro. Estendi o pescoço e, antes da mordida de ambos, respirei pela última vez como um ser humano...